21 Novembro 2018
John Cavadini é um dos teólogos americanos mais influentes de sua geração. Ele acredita que há uma forte conexão entre o Papa Francisco e seu antecessor, Papa emérito Bento XVI, quando se trata da ênfase colocada por ambos em lembrar a Igreja Católica dos elementos básicos da fé e seu propósito no mundo: a evangelização.
"Temos que lembrar que não proclamamos proposições ou fórmulas, proclamamos a Palavra feita carne para a glória de Deus Pai no Espírito Santo", disse Cavadini.
Cavadini é diretor do McGrath Institute for Church Life Biblical Studies [Instituto McGrath para Estudos Bíblicos da Vida da Igreja, em português] na Universidade de Notre Dame. Para ele a divisão esquerda/direita nos Estados Unidos está levando a ambos os lados tentarem "possuir" ou "reivindicar" o Papa Francisco para si, mas que não o compreendem totalmente em seu propósito.
Cavadini foi entrevistado no início de novembro, antes de uma conferência marcando o 50º aniversário do livro Introdução ao Cristianismo, escrito por um então jovem teólogo alemão, Joseph Ratzinger, que mais tarde se tornaria o Papa Bento XVI.
A entrevista é de Inés San Martín, publicada por Crux, 20-11-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Como você descreveria a situação da teologia católica atualmente, e como o Papa Francisco está influenciando a discussão?
Eu arriscaria apontar aquilo que considero marcas dessa influência, se há de fato uma influência. Penso que em Evangelii Gaudium, Francisco nos diz para nos concentrarmos naquilo que é mais importante, belo e atraente no Evangelho. Ele está dizendo que se esquecermos o que é atraente e não nos concentrarmos no básico, não seremos persuasivos.
Francisco fez uma distinção entre evangelização e proselitismo. Ele fala da evangelização como um processo de atração e como um convite. Eu mesmo me sinto atraído por essa concepção.
Esta conferência sobre o 50º aniversário do livro Introdução ao Cristianismo de Bento XVI me fez lembrar o quão central era para o papa emérito, e como o é para Francisco, Cristo, o mistério da pessoa de Cristo, sua encarnação, morte e ressurreição. Nós não devemos nos surpreender com o fato do Papa Francisco citar a primeira encíclica de Bento XVI, Deus Caritas Est, quando diz que o cristianismo não é uma ideia elevada ou um sistema moral, mas um encontro.
Quando o Papa Francisco aponta o que é mais atraente no mistério da pessoa de Cristo e da proclamação de sua morte e ressurreição, penso que tenhamos que nos perguntar se fomos agentes dessa proclamação ou agentes para dar vazão às disputas internas da Igreja.
Sinto que se a Igreja, a teologia e os professores de teologia aceitassem esse chamado, nós veríamos o que eu diria ser a influência do Papa Francisco, que vai muito em continuidade com aquilo que Bento XVI diz.
Isso pode soar controverso ou incompreensível, mas Francisco de certa forma parece ser “Bento XVI para Iniciantes", no sentido de que ele é capaz de colocar em palavras a fé de uma forma que todos, mesmo aqueles sem um fundo teológico ou eclesiológico, possam entender. Como você diz, temos que voltar ao básico, e a Igreja é mais do que uma guerra entre qualquer teologia específica, mas sobre um encontro com Cristo. Ratzinger escreveu sobre isso na Introdução ao Cristianismo, e Francisco em Evangelii Gaudium.
Acho que isso é verdade em certo sentido. Francisco faz uma espécie de tradução disso em modo de homilia, ou de alcance popular, o que não é algo acessível aos teólogos. Porque, como ele diz em Evangelii Gaudium, você não precisa de um doutorado em teologia para proclamar o Evangelho e ser um evangelizador.
Mas, por outro lado, também acho que os teólogos, tendo estudado sobre esses fundamentos, não fazem o seu trabalho a menos que eles estejam dispostos a participar da maneira que se espera deles. Contudo, o que o Papa Francisco está a nos convocando a recordar é algo que diz o Catecismo: a fé não se encerra nas proposições sobre a fé, mas nas realidades às quais se referem as proposições.
Temos que lembrar que não proclamamos proposições ou fórmulas, proclamamos a Palavra feita carne para a glória de Deus Pai no Espírito Santo.
Esquecemos disso por um tempo, não é?
Não acho que tenhamos nos esquecido, mas às vezes somos tão zelosos para comunicar com precisão, que podemos perder a noção do todo pelas partes. Particularmente, tenho tentado enfatizar a maravilhosa capacidade da fé para abraçar o intelecto e ser um lar para a razão, de tal forma que a razão se torne uma ferramenta evangelizadora ao invés de ter a fé reduzida à razão de uma forma rígida e racionalista.
Também diria, de volta à sua primeira pergunta, outra marca da influência do Papa Francisco seria a maneira pela qual ele realmente colocou ênfase sobre os pobres de uma forma muito ampla. Estou pensando na Laudato si', em que ele fala sobre sistemas econômicos que produzem lixo humano como um subproduto descartável. Isso também se aplica a nossa casa comum e como parece que estamos dispostos a destruí-la. Francisco está chamando a atenção para isso. E, de certo modo, essa Encíclica é intensamente teológica. É outro domínio de influência.
Penso que a Laudato si' se tornou prisioneira de suas recomendações políticas. Essencialmente, isso não é o que a Igreja tem para oferecer. Mas sim, a profundidade da sabedoria teológica que pode ser acionada sobre um problema que tem implicações teológicas muito profundas.
O Papa Francisco é conhecido por seguir a Teologia do Povo, uma versão Argentina da Teologia da Libertação não influenciada pelo marxismo. Você vê presente esta linha de pensamento na discussão teológica dos EUA?
Em Evangelii Gaudium, onde penso que algumas dessas ideias são refletidas, Francisco diz que todos nós somos chamados a ser discípulos missionários. Isso significa duas coisas: aqueles que querem ser evangelizadores não podem ficar sentados à espera das pessoas. Temos que estar dispostos a irmos para as periferias, e isso é uma aventura.
Bem, eis que chega o chamado para irmos às periferias. E o que fazemos lá? Nós falamos, mas também ouvimos. Você está proclamando para alguém, e você tem que ouvir aquele a quem você está proclamando. É uma via de mão dupla.
Mas penso também que exista o sentido de que somos todos discípulos missionários, e você não tem que ter um doutorado em teologia para ser um evangelizador, pois evangelizar é essencialmente testemunhar a fé que está em você. O Papa também diz que os católicos parecem sempre estar voltando de um funeral, ou que os cristãos estão numa Quaresma perpétua sem a Páscoa. Este é um apelo para sermos alegres, mesmo em circunstâncias desesperadoras.
É verdade, você não precisa de um doutorado em teologia para ser discípulo missionário. Todos nós temos um papel a desempenhar neste processo. E à luz das perguntas que vêm da alta cultura e emergem para todos, como o novo ateísmo, por exemplo, que trata os seres humanos como se fôssemos meros conjuntos de forças impessoais. Confrontado com essas investidas de despersonalização, o trabalho do teólogo é ajudar as pessoas a verem através dessas ilusões, e você precisa do trabalho intelectual para fazer isso. Se os teólogos estão fazendo seu trabalho direito, aqueles que não são teólogos podem, de alguma forma, sentir a confiança de que o que está sendo dito tem algum tipo de amparo intelectual. Mesmo que não tenha tal amparo. Essa é a beleza da Igreja, um corpo com muitos dons.
Acredito que os teólogos precisam estar cientes de que são membros desse corpo e que o seu trabalho constrói esse corpo. Isso tornaria a Igreja ainda mais eficaz. Nós, teólogos, às vezes temos dificuldade em usar a linguagem da evangelização. Nós nos sentimos inquietos a utilizando porque às vezes caíamos na ilusão de que as universidades não deveriam defender algo, mas serem espaços neutros de diálogo. Isso é uma ilusão total.
O cardeal alemão Walter Kasper disse: a teologia é intrinsecamente dirigida à proclamação, é um verdadeiro ministério da Palavra. Se o que você está fazendo não é dirigido a proclamar a palavra, então não é teologia, é outra coisa. E este é um dos pontos em que Kasper e Bento XVI convergiram.
O ano de 2020 marcará o 20º aniversário de Ex Corde Ecclesiae, constituição apostólica lançada pelo Papa João Paulo II sobre faculdades e universidades católicas. Você acha que houve alguma mudança na forma como os bispos e teólogos se relacionam por causa dela? Ainda é um documento relevante?
Acho que houve uma mudança. Os bispos têm se aproximado. Por exemplo, todos os anos da última década houve uma conferência da Comissão sobre a Doutrina para os teólogos mais jovens em relação a temas de interesse mútuo. É uma oportunidade para todos discutirmos aquilo temos interesse. Ou seja, transmitir a fé numa modalidade intelectual.
Por exemplo, há um interesse comum em desmascarar o mito de que existe um conflito entre a ciência e a religião. Outro interesse comum são os catequistas: como podemos apoiá-los e o que podemos aprender com eles?
Os lugares onde a Academia e a Igreja naturalmente se cruzam estão se tornando menos abstratos. Temos projetos comuns mais concretos em que trabalhamos em conjunto enquanto partes interessadas.
No ano passado tivemos o 50º aniversário da Declaração de Land O’Lakes, feita aqui em Notre Dame, que apresentou uma visão para as instituições católicas serem universidades "no sentido moderno e pleno do termo". Em que pé estamos em termos da identidade das universidades católicas?
Acho que a Declaração de Land O'Lakes é algo que tivemos que passar para tentar fazer emergir um certo tipo de independência de pensamento e pesquisa. Ao mesmo tempo, penso que estamos tão vinculados à Igreja, que as pessoas que fizeram a declaração não conseguiram pensar numa situação em que esses laços haviam desaparecido. Ainda que fosse uma declaração de autonomia, estava dentro de um quadro de reações e dependências.
Pensar que o documento se aplicaria hoje, como há 50 anos, sem repensar essas relações, seria um erro. Precisamos reconhecer que a perda dessa relação não foi de todo positiva para a teologia.
Pode dar um exemplo?
Um exemplo seria algo que o Papa Francisco tem chamado nossa atenção. O modo como a teologia pode esquecer que a única razão pela qual existe é sua conexão com a Igreja.
Estamos tão interessados em falar apenas no contexto intelectual, que às vezes desconsideramos o principal propósito da Igreja: evangelizar.
A divisão direita/esquerda na Igreja americana é surpreendente. Você acha que isso afeta a maneira como o Papa é interpretado e ouvido nos EUA?
De certa forma, a esquerda e a direita neste país têm tanto interesse em lutar entre si, que não estão dispostos a escutar com os ouvidos do coração. Algumas coisas que o Papa Francisco diz não são tão bem-vindas à direita, e algumas não são bem-vindas à esquerda. No esforço destes grupos para o possuir ou o reivindicar para si, algumas das intenções de Francisco, o discernimento que ele pede, não são compreendidos.
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Teólogo americano aponta forte conexão entre Bento XVI e Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU