31 Agosto 2018
“Os postos de trabalho são muito vinculados às indicações políticas da “FSLN de Daniel”, sendo o Estado em seus níveis de governo o maior empregador do país. Isso vincula a “participação nominal” às necessidades imediatas e o seguidismo. A justa tradição beligerante do sandinismo vem sendo apropriada pelo orteguismo, o que implica em repressão massiva, desaparecimentos e assassinatos seletivos”, escreve Bruno Lima Rocha.
Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia, doutor e mestre em ciência política, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; graduado em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, professor nos cursos de relações internacionais e jornalismo na Unisinos.
O artigo foi publicado, originalmente, na revista IHU On-Line, no. 527 que pode ser acessada aqui.
No século XXI retorna ao Poder Executivo uma força política cuja trajetória dista do exercício atual de governo. Trata-se da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), fundada em 1961 para combater a dinastia do clã dos Somoza — general inventado, armado e treinado nos EUA — e sua Guarda Nacional. O termo “sandinista” vem obviamente do exemplo de Augusto César Sandino, militante social que se transforma em líder guerrilheiro estando à frente do Exército Defensor (1927-1934), peleando justamente contra a invasão estadunidense ao país dos cinco vulcões. Sandino perdeu apenas para si, pois sua força beligerante começa com 34 combatentes — a maioria composta de indígenas mizquitos — e conclui com mais de 6 mil voluntários e a retirada das tropas imperialistas do país. Em 1934, convocado para uma reunião de “paz” com Somoza, é assassinado junto ao seu Estado-maior. Sandino até hoje marca a cultura política do país.
Daniel Ortega estava à frente de um dos três setores da FSLN e foi eleito presidente em 1984, quando a Nicarágua sandinista caminhava para uma versão de socialismo com democracia. Da vitória de 1979 até esta data, o país foi governado por uma junta indicada pelo Conselho de Estado, um parlamento com partidos e forças sociais após Somoza. Ortega não foi reeleito, perdendo para a conservadora Violeta Chamorro. “Dona” Violeta concorreu pela União Nacional Opositora, frente ampla de centro-direita que ia da espinha dorsal composta por forças que hoje compõem o Partido Conservador Nacionalista (PCN), até frações de esquerda não sandinista, como o Partido Socialista (social-democrata), Partido Comunista (linha de Moscou) e os antigos rivais Liberais. Em fevereiro de 1990 o governo em Manágua se realinha com Washington, rendendo-se ao imperialismo.
A conservadora Chamorro foi sucedida por dois liberais do PLC; primeiro com Arnoldo Alemán em 1996 e depois, em novembro de 2001, com Enrique Bolaños. Nas eleições de 2006, 2011 e mais recentemente 2016, ganhou Daniel Ortega, sendo que a vice-presidente, Rosario Murillo, veterana intelectual filiada a FSLN desde 1969, também é a primeira-dama. Desde o primeiro governo Ortega no século XXI que o Estado da Nicarágua é atravessado pelo “sandinismo de Daniel”. A presença política é tanto visual — com os emblemas da Frente pintados em ruas, dezenas de monumentos por municípios e a bandeira do partido ao lado da nacional — como também no controle dos postos-chave. A FSLN foi vitoriosa em 125 municípios, os conservadores do PLC em 11, a Aliança Liberal Nacionalista (ALN) em um e o Cidadão pela Liberdade (CxL) ganha em quatro, mas não leva, sendo impugnadas e destinadas para rivais políticos.
No dia 18 de abril o presidente da Nicarágua Daniel Ortega (eleito em 2006, reeleito em 2011 e eleito novamente em 2016) assinou uma medida semelhante à Reforma da Previdência. Esta, diferentemente da brasileira, partiu de exigências vindas de acertos com organismos internacionais, especificamente o FMl. A reforma continha o aumento na contribuição de trabalhadores, que passaria de 6,25% para 7%; sendo que os aposentados passariam a ter uma dedução de 5% da sua pensão para cobrir despesas médicas. As empresas também seriam afetadas. A proposta do governo era fazer um aumento progressivo nas contribuições das companhias privadas, dos atuais 19% para 22,2% em 2022. Supostamente, a razão do decreto presidencial seria arrecadar cerca de Usd 254 milhões de dólares e assim resgatar o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). E parte da confusa retórica policlassista vinda dos protestos vêm do fato da sobretaxa atingir trabalhadores e empresas.
A revolta popular foi imediata e, ao contrário do que se especula, sendo basicamente autoconvocada. As mesmas bases sociais que foram o berço do sandinismo, como os estudantes universitários de Manágua (concentrados na UNAN), ou redutos históricos como León, Chinandega e em especial o município de Masaya, se levantaram contra esta medida autoritária. Cinco dias e 30 mortos depois, o presidente que usurpa o legado do sandinismo, controla o partido FSLN (e a maior oferta de postos de trabalho no país através de indicações políticas sem concurso), prepara sua esposa e vice-presidente Rosario Murillo como provável sucessora (as próximas eleições seriam em agosto de 2021), reabilita controvertidos contra revolucionários como o criminoso Éden Pastora, alias Comandante Zero (ex-dirigente da Contra na Costa Rica) e não hesita em reprimir de forma ilegal acionando paramilitares, é derrotado.
No dia 22 de abril Ortega recua da decisão e não aplica a “reforma” da Previdência. Mas, a partir desta luta pontual, houve um conjunto de ressentimentos, sensação de bloqueio ao acesso aos recursos públicos e uma confusa sensação de povo traído por um ex-guerrilheiro autotransformado em dirigente máximo, comandando um governo autoritário de base familiar e clientelista. De abril para cá ultrapassam as 400 mortes, mais de 200 desaparecidos e 1200 feridos. Há uma sensação de absoluta insegurança no país. Ao mesmo tempo, em escala latino-americana, o aparelho de propaganda do orteguismo vincula seu governo às tradições sandinistas, o que não corresponde de forma alguma. Passa de uma centena a lista de dirigentes históricos críticos a Daniel, tanto da geração que enfrentou a Somoza por quase vinte anos, quanto o pioneirismo dos anos ’80, quando voluntários enfrentaram a Contra nas fronteiras de Honduras e Costa Rica.
O governo de Ortega pode ter perdido legitimidade internacional e há sim a presença parasitária e aproveitadora da oposição à direita, mas as condições de impor a vontade através das forças repressivas de Estado continuam. O legado sandinista se vê manipulado por uma dinastia familiar e o controle dos postos de trabalho; eis a encruzilhada da luta popular nicaraguense.
Coordenadores do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.) e Profª Drª Nádia Barbacovi (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.).
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Nicarágua: o orteguismo e o abuso do poder de Estado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU