01 Junho 2018
"A inquietação popular consequente a toda essa desordem institucionalizada que se pretende impor como lei e direito, como advertia Roberto Lyra Filho, criando interrogações angustiadas todos os dias, está minando a esperança de se vencer uma crise levada ao extremo desde o golpe de 2016", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Quando não se fala de outra coisa, muitas outras, tão ou mais importantes quanto, são esquecidas, inclusive pela conveniência de quem não as quer lembradas. Antes de deflagrada a atual greve dos caminhoneiros, o Brasil inteiro esteve com a sua atenção voltada quase exclusivamente para o trágico desabamento de um edifício no Largo Paissandu em São Paulo. Depoimentos de moradoras/es de prédios nas mesmas precárias condições daquele foram tomados, lembrando-se dramas semelhantes ocorridos no passado, caracterizados sempre por um sem número de promessas das administrações públicas de serem tomadas as providências necessárias e urgentes para se enfrentar o problema secular de acesso da população pobre ao seu direito de moradia. De tão prorrogado permanentemente, de direito esse só tem o nome.
Assim que os caminhoneiros pararam o país todo aquele debate foi distraído para essa nova fonte de atenção, discussão, polêmica, troca de acusações sobre responsabilidades, bombeiros da política de improvisação tomando providências descabidas, tentando apagar o fogo de pressões mais do que previsíveis, sem qualquer resultado prático. A greve parou o país, filas de automóveis se formam nos postos de gasolina e venda de gás, as mercadorias começam a desaparecer dos supermercados, aulas são suspensas, e o (des)governo sob o qual estamos sujeitos passa um atestado sucessivo e itinerante de incompetência tratando com aspirina uma doença que já infeccionou o corpo todo do povo paciente.
Caminhões parados, descontado seja o absurdo de alguns dos seus condutores se servirem de um protesto para pedirem “intervenção militar”, podem abrir caminhos, paradoxalmente, para se refletir sobre tudo o que depende desse transporte direta e indiretamente, seja para afirmar, seja para ameaçar ou violar direitos. Caminhão pode ser entendido também como o aumentativo de caminho. Se o caminhão para - seja por iniciativa de caminhoneiros fazendo greve, ou de seus patrões impondo locaute, é outro problema - sofre tudo o que depende da sua circulação, como está acontecendo agora, mas serve também para confirmar (des)caminhões há muito denunciados e todos eles com placas indicativas de perigo colocadas nas estradas por onde eles passam:
a) a mais completa falta de controle com que o atual (des)governo do Brasil mantém a nação num (des)caminhão de insegurança, precipitação, (des)orientação e incerteza;
b) (des)velar a injusta, inconstitucional instauração de toda uma política disfarçada de pública, mas na realidade privatista, adepta de um novo colonialismo entreguista do nosso território, das nossas riquezas, da Petrobras, do pré-sal, como forma de abrir um novo (des)caminhão para o capital estrangeiro, aqui, ampliar o domínio que já exerce de fato;
c) provar sua mais completa indiferença pelas garantias devidas aos direitos sociais do seu povo, inclusive as que lhe serviriam de caminho do acesso à terra urbana e rural, condição física de alimentação e moradia, carregando tudo isso no conhecido (des)caminhão do lixo de preconceitos ideológicos que confundem direitos humanos fundamentais de gente pobre com o crime;
d) desmontar todas as possibilidades abertas pela Constituição Federal e pelas leis tendentes a, se não eliminar, pelo menos diminuir, os efeitos perversos do mau uso, do abuso aqui prevalecendo da chamada liberdade de iniciativa econômica. Ela é responsável pela costumeira barragem ideológica interpretativa da lei, que corta qualquer caminho capaz de detectar o (des)caminhão onde se despeja e despacha para a inexistência a função social do direito de propriedade, principal causa de violação dos direitos humanos fundamentais sociais;
A inquietação popular consequente a toda essa desordem institucionalizada que se pretende impor como lei e direito, como advertia Roberto Lyra Filho, criando interrogações angustiadas todos os dias, está minando a esperança de se vencer uma crise levada ao extremo desde o golpe de 2016. O arrastão da publicidade enganosa da sua sustentação levou multidão de ingênuas/os e desinformadas/os às ruas, agora está sendo substituído por outra. A de um golpe sobre o golpe, ao patrocínio do qual é chamada a violência intervencionista das forças armadas. Não poderia haver saída - e isso possa se imaginar como saída - mais inconveniente e inoportuna, que o comprovem as Comissões da Verdade. Se os remédios receitados pelo (des)governo de hoje só agravam o estado do povo paciente, não há de ser o medo, a violência, nem a ameaça, nem a tortura, nem o assassinato armados de ontem que o curarão.
O (des)caminhão de 1964 e de outros golpes anteriores sofridos pela nação tem de ser contido, como a história já se encarregou de mostrar, pela conscientização popular do que sempre lhes serve de motivação, um poder de dominação e repressão da cidadania reproduzido a partir de sua própria força de reprodução indefinida, covardemente disfarçada de pública e republicana. Se para isso não bastam discursos inflamados de indignação ética, a coragem da ação contrária tem de ser realista. Precisa vencer o complexo de inferioridade que lhe foi imposto, convenientemente e de fora, como se toda a desobediência, protesto, rebeldia e subversão fossem injustas e estivessem viciadas de ilegitimidade.
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Caminhão é também aumentativo de caminho? – Sim, e há prova! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU