24 Julho 2017
Diante da crise venezuelana, a esquerda latino-americana dividiu-se e está imersa em um debate, diante de um desafio e de um dilema. De um lado estão aqueles que interpretam os acontecimentos na Venezuela como fruto de uma estratégia agressiva do imperialismo e aplaudem a saída repressiva do governo de Maduro e a dissolução da Assembleia Legislativa para substituí-la por uma Assembleia Constituinte “cubanizando”, assim, o chavismo. E, de outro lado, aqueles que entendem que o governo de Maduro não é democrático e acreditam que a defesa de toda ingerência estrangeira deve basear-se em mais democracia e não em mais autoritarismo. A reflexão é de Rafael Rojas, historiador e escritor, em artigo publicado por revista Envío, editada pelos jesuítas da Nicarágua, 19-07-2017. A tradução é de André Langer.
Diante do giro dado pela situação venezuelana com a prolongada mobilização popular contra o governo de Nicolás Maduro e a convocação oficial de uma Assembleia Nacional Constituinte, a esquerda latino-americana partidária do Socialismo do Século XXI dividiu-se.
Ela o fez de um modo muito parecido ao que fez a velha esquerda revolucionária em 1971, quando o governo de Fidel Castro prendeu o poeta Heberto Padilla e o obrigou a fazer uma confissão pública perante os escritores e artistas cubanos.
Naqueles anos, o que estava em jogo era se aquela esquerda aceitava ou não a sovietização do socialismo cubano. Hoje, o que se debate na esquerda é, em boa medida, se ela aceita a definitiva cubanização do chavismo.
Desde meados de 2000, quando Hugo Chávez lançou o projeto do Socialismo do Século XXI, em diálogo permanente com Fidel Castro, a opinião pública latino-americana começou a reproduzir o clichê de que a Venezuela estava se inclinando para o modelo cubano. Chávez, Fidel e alguns de seus subordinados, como o então vice-presidente cubano Carlos Lage e o chanceler Felipe Pérez Roque, asseguravam que Venezuela e Cuba encaminhavam-se a algum tipo de integração ou a ser “um mesmo país com dois presidentes”, como chegou a declarar Lage. Entre 2006 e 2007, quando chegaram ao poder Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador, e foi criada a ALBA, a imprensa cubana e venezuelana incumbiram-se da tarefa de apresentar a ascensão das novas esquerdas como uma vitória do modelo cubano.
Mas apenas dois anos depois, com as novas Constituições boliviana e equatoriana aprovadas, ficou evidente que esse triângulo diverso formado por Venezuela, Equador e Bolívia – democracia participativa, mecanismos plebiscitários, direitos de terceira e quarta geração, autonomia de povos originários –, não nada tinha a ver com o sistema político cubano. Os três governos bolivarianos eram aliados da Cuba de Raúl Castro – nessa época, Fidel já tinha se retirado –, mas sua normativa constitucional e sua institucionalidade política eram claramente diferentes das do modelo cubano. Em nenhum desses países foi estabelecido um regime de partido comunista único, nem se estatizou a economia e a sociedade civil, nem se deu um absoluto controle governamental dos meios de comunicação.
Apesar da evidência, tanto na esquerda como na direita latino-americanas, amplos setores confundiram a geopolítica com a ideologia e assumiram que os Socialismos do Século XXI se inclinavam para o modelo cubano. A propaganda “bolivariana” de meios de comunicação como Telesur, Granma e Cubadebate contribuiu decisivamente para esse equívoco, que chegou a ter ampla ressonância em meios intelectuais e acadêmicos das ciências sociais, como no Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), onde a história das ideias da América Latina é substituída por uma sucessão de ícones, acriticamente superpostos, entre Simón Bolívar e Hugo Chávez, e José Martí e Fidel Castro.
Agora, com a dissolução de fato da Assembleia Nacional venezuelana, que implicou a transferência de funções legislativas para o Supremo Tribunal de Justiça, e com o anúncio de um novo processo constituinte, que colocará um fim à constitucionalidade chavista, processos resolutamente apoiados por Havana, fica claro que o sistema político venezuelano não reproduzia, em suas linhas fundamentais, o cubano.
A verdadeira reprodução começa a partir de julho, com a proposição de uma nova Assembleia Constituinte sem o aval plebiscitário do povo, como soberano originário, como fez Chávez em 1999 e, ao contrário, ao proceder a uma eleição de representantes por “setores” – e não por meio do sufrágio universal, direto e secreto da população –, como funciona o sistema eleitoral e representativo cubano.
Na esquerda latino-americana, os argumentos dos defensores dessa opção do governo de Nicolás Maduro compartilham a mesma duplicidade do discurso tradicional a favor, primeiro, da Revolução Cubana e, depois, do regime político que derivou da mesma e que subsiste até hoje. Duplicidade, porque se trata de um discurso que opera em dois níveis: um, imediato, político, majoritariamente defensivo – Cuba é agredida pelo império, motivo pelo qual é preciso se solidarizar com ela –, e outro, mais ideológico e programático, que defende que diante da situação de assedio, a saída deve ser sempre a mais “radical” em termos “socialistas” e isso significa a concentração de todo o poder para administrar o país sobre bases não capitalistas e não democráticas.
Dois intelectuais argentinos, o sociólogo e cientista político Atilio Borón e o economista Claudio Katz são, talvez, aqueles que formularam mais claramente esse duplo sentido do apoio a Maduro.
Em um artigo reproduzido por Cubadebate, a página eletrônica do Partido Comunista de Cuba, Borón move-se no primeiro nível do discurso, sustentando que o conflito venezuelano não tem sua origem em uma disputa entre dois poderes legitimamente eleitos, o Executivo de Nicolás Maduro, e o Legislativo de um parlamento majoritariamente opositor. Sua origem seria a agressão imperialista dos Estados Unidos, da qual faz parte toda a oposição. O conflito venezuelano é, portanto, uma guerra econômica, política, civil ou “não convencional”, na qual é preciso tomar partido.
Borón escreve: “A única atitude sensata e racional que resta ao governo do Presidente Nicolás Maduro é proceder à enérgica defesa da ordem constitucional vigente e mobilizar sem demora o conjunto das suas forças armadas para esmagar a contra-revolução e restaurar a normalidade da vida social. A Venezuela é objeto não apenas de uma guerra econômica e uma brutal ofensiva diplomática e midiática, mas de uma guerra não convencional que custou mais de 50 mortos e produziu enormes prejuízos materiais. ‘Plano contra plano’, dizia Martí. E se uma força social declara guerra contra o governo requer-se deste uma resposta militar. O tempo das palavras já se esgotou e seus resultados são evidentes”.
Katz, por sua vez, torna explícito o segundo plano da argumentação: a ideia de que uma situação de guerra civil ou, mais precisamente, de guerra anti-imperialista, é a conjuntura ideal para avançar rumo a uma reconstituição do regime chavista pela via do anticapitalismo radical. Em uma entrevista concedida ao sítio Rebelión, o economista sugere esse caminho e, de passagem, questiona a falsa alternativa que, segundo ele, propuseram até agora as esquerdas latino-americanas no poder que não se somam a um verdadeiro projeto anticapitalista. “Ao contrário de Manuel Zelaya, Dilma ou Lugo – disse Katz –, Maduro não se entrega” e “essa decisão de resistir explica o ódio dos poderosos da região”. Suas analogias históricas remetem a Salvador Allende em setembro de 1973, e sua referência teórica é nada menos que Antonio Gramsci.
Katz disse: “Estamos no meio da batalha e o resultado final não está escrito. Houve uma interessante reativação dos mecanismos para aliviar o desabastecimento e foi adotada a excelente iniciativa de retirar o país da OEA. A única forma de vencer a direita é transformar em fatos o discurso socialista. Em situações limite e frente ao abismo o projeto bolivariano pode renascer com um perfil mais radical... A aplicação de Gramsci à Venezuela implicaria hoje assumir decisões revolucionárias. O líder comunista convocava a adotar essas decisões sem nenhum vacilo. Por isso, ponderou a ação dos bolcheviques como uma “revolução contra o Capital”, no sentido de processos que fragilizam todas as prescrições anteriores. Ele destacou a inexistência de um curso predeterminado da história. Esmagar a sabotagem dos capitalistas com o poder comunal seria o equivalente à ação dos sovietes que Gramsci reivindicava.
Diante de posições como as de Katz e Borón mobiliza-se outro flanco da esquerda socialista latino-americana, que demanda lealdade ao legado da constitucionalidade chavista e, sobretudo, ao modelo da democracia participativa, subscrito na Constituição venezuelana de 1999, na boliviana de 2008 e na equatoriana de 2009.
Talvez a figura central, dentro da Venezuela, desse posicionamento seja a procuradora-geral Luisa Ortega Díaz, quem mostrou abertamente sua insatisfação com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte e as bases eleitorais do processo. A procuradora chegou a interpretar um recurso de inconstitucionalidade contra o governo de Maduro porque, embora reconhecesse seu direito para a iniciativa da Constituinte, não respeita a soberania originária ao não submeter a convocação a referendo popular. A resposta do governo à interpelação da procuradora é, além de lhe lançar os qualificativos de “traidora” e “terrorista”, a ameaça de que, ao ser instalada a nova Assembleia, será destituída do cargo.
Uma posição similar à de Ortega defendem intelectuais da esquerda chavista, como o sociólogo Edgardo Lander, professor da Universidade Central da Venezuela e autor do importante livro Neoliberalismo, sociedade civil e democracia (1995), que antecipou muitos dos debates da esquerda latino-americana nas duas últimas décadas.
Em abril passado e em uma conversa com a Rede Filosófica do Uruguai, Lander observava que o fechamento de vias institucionais para a solução do conflito – desconsideração da Assembleia Nacional pelo Executivo, permanência do mesmo Conselho Nacional Eleitoral, anulação do referendo revogatório, adiamento de eleições regionais e locais... – provocou um aumento da repressão e da violência, tanto do governo como dos protestos populares.
Depois da vitória da oposição nas eleições legislativas de 2015, a lógica de Maduro foi a concentração do poder – dizia Lander: “Estamos em uma situação em que há uma concentração total de poder no Executivo. Não há Assembleia Legislativa. Maduro já está há mais de um ano governando por decreto de emergência auto-renovado, quando deve ser ratificado pela Assembleia. Estamos muito longe de algo que possa ser chamado de prática democrática. Nesse contexto, as respostas que se dão são cada vez mais violentas – dos meios de comunicação e da oposição. E a reação do governo, já incapacitado de fazer outra coisa, é a repressão das manifestações e dos presos políticos. Utilizam-se todos os instrumentos do poder em função da preservação no poder”.
A socióloga argentina Maristella Svampa, estudiosa dos movimentos sociais latino-americanos e dos processos de descolonização da esquerda bolivariana, especialmente do caso boliviano, concorda com Lander em seu diagnóstico da situação da Venezuela.
Em um artigo assinado com Roberto Gargarella, um importante constitucionalista argentino, que estudou minuciosamente as experiências mais recentes da esquerda sul-americana, Svampa retomava as posições de Lander. O artigo de Gargarella e Svampa no Página/12, o jornal da esquerda argentina, com o título “O desafio da esquerda: não ficar calada”, provocou as respectivas respostas de Atilio Borón e Modesto Emilio Gerrero.
Em seu texto, Svampa e Gargarella diziam: “Esta dinâmica, que começou quando o Executivo passou a ignorar outros ramos do poder, a Assembleia Legislativa, onde a oposição hoje conta com maioria, depois da vitória nas eleições de dezembro de 2015, foi se agravando e potenciando exponencialmente com o posterior bloqueio e adiamento do referendo revogatório – uma ferramenta democratizadora introduzida pela própria Constituição chavista –, o adiamento das eleições para governadores em 2016, até chegar ao recente e falido anti-golpe do Executivo. Tudo isso gerou um novo cenário político, marcado pela violência e pela ingovernabilidade, cujas consequências dramáticas aparecem ilustradas no aumento diário de vítimas provocadas pelos enfrentamentos entre a oposição e as forças governamentais, em um contexto de repressão institucional cada vez maior”.
A resposta de Borón a Gargarella e Svampa e, através destes, a Lander, intitulada “Venezuela: não ficar calado, mas dizer a verdade”, centrava-se na chamada “ausência” analítica dos acadêmicos argentinos: o governo dos Estados Unidos. Sem esse ator, colocado em primeiro plano, não havia maneira de encontrar a “realidade” e a “verdade” da Venezuela. E assim, tudo o que o governo Maduro havia decidido desde dezembro de 2015 para combater a existência de um Poder Legislativo de maioria opositora, legitimamente eleito de acordo com as normas da República Bolivariana de 1999, fazia parte de uma estratégia de defesa da soberania da Venezuela frente ao imperialismo norte-americano.
De maneira que o autoritarismo, que o próprio Borón reconhecia, era lícito se o que estava em jogo era a permanência no poder de um governo “revolucionário”, que se assume como sinônimo da nação e da pátria. Os opositores a esse governo, por mais pacíficos e constitucionais que sejam, são, portanto, apátridas e inimigos, traidores e terroristas, como a procuradora Ortega Díaz.
Da Argentina, o debate transferiu-se rapidamente para foros internacionais da esquerda intelectual, como a Associação de Estudos Latino-Americanos (LASA, por sua sigla em inglês), que realizou seu último congresso em Lima, no Peru.
Em abril, o grupo de Estudos Venezuelanos da LASA, formado por Margarita López Maya, Lara Putnam, Iria Puyosa e Juan Pablo Lupi, entre outros, denunciou a “ação autoritária” da transferência de funções legislativas para o Supremo Tribunal de Justiça, com base nas sentenças 155 e 156, e pediu a “libertação de presos políticos” e o “restabelecimento do calendário eleitoral”, assim como a “destituição dos magistrados do Supremo Tribunal de Justiça”. O posicionamento dos acadêmicos venezuelanos foi respaldado por dezenas de adesões e deu forma a uma Declaração sobre a Venezuela, assinada por vários membros do Comitê Executivo da LASA, o que provocou a reação do setor madurista, fundamentalmente cubano, da LASA.
Na resposta, “A LASA não é a OEA”, reproduzida por Cubadebate, os oficialistas cubanos reprovavam que a crítica estivesse prioritariamente dirigida ao governo de Maduro e não levasse em conta atitudes da oposição, cujo “único propósito era a derrubada” do governo. “A oposição venezuelana está longe de praticar consequentemente sua suposta defesa da democracia”, diziam os acadêmicos, militantes em sua maioria do Partido Comunista que rege na Ilha, e denunciavam a LASA por ter convidado o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, para o seu congresso em Lima.
No fim de maio, enquanto avançava o projeto de uma nova Assembleia Nacional Constituinte sobre bases “setoriais” e “comunais” e enquanto aumentava a violência nas ruas, provocando mais de 70 mortos desde o início dos protestos, um grupo de intelectuais de esquerda lançou um ‘Apelo internacional urgente para deter a escalada de violência. Olhar a Venezuela para além da polarização’.
O documento, escrito por Svampa e Gargarella e assinado, entre outros, por referências da esquerda como Boaventura de Sousa Santos, Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Carlos Altamirano e Beatriz Sarlo, admitia em uma de suas passagens a responsabilidade do setor mais violento da direita venezuelana na crise: “Como intelectuais de esquerda, também não desconhecemos a realidade geopolítica regional e global. Fica claro que existem setores extremistas da oposição (que é muito ampla e heterogênea), que também buscam uma saída violenta. Para estes, trata-se de exterminar, de uma vez por todas, o imaginário popular associado a ideias tão perigosas como a organização popular, a democracia participativa, a transformação profunda da sociedade em favor do mundo subalterno. Estes grupos mais extremistas da direita contaram, pelo menos desde o golpe de Estado de 2002, com apoio político e financeiro do Departamento de Estado dos Estados Unidos”.
Mas acrescentam: “Dito isso, não acreditamos, como afirmam certos setores da esquerda latino-americana, que hoje se trate de sair em defesa de “um governo popular anti-imperialista”. Este apoio incondicional de certos ativistas e intelectuais não revela apenas uma cegueira ideológica, mas é prejudicial, pois contribui lamentavelmente para a consolidação de um regime autoritário. A identificação da mudança, mesmo a partir da crítica ao capitalismo, não pode vir da mão de projetos antidemocráticos, os quais podem acabar por justificar uma intervenção externa “em nome da democracia”. Na nossa perspectiva, a defesa contra toda ingerência estrangeira deve basear-se em mais democracia e não em mais autoritarismo”.
A resposta a este documento veio da Rede de Intelectuais e Artistas em Defesa da Humanidade, com um texto intitulado ‘Com a Revolução Bolivariana para sempre’. O texto reproduzia, quase textualmente, intervenções anteriores de Borón e Katz, com as mesmas citações de Gramsci.
Em suma, ele sustentava que havia, na Venezuela, um golpe de Estado em andamento, como aqueles que derrubaram Manuel Zelaya em Honduras, Fernando Lugo no Paraguai e Dilma Rousseff no Brasil – e antes a Salvador Allende no Chile, João Goulart no Brasil e Jacobo Arbenz na Guatemala –, perpetrados pelo imperialismo e sua vanguarda venezuelana, na qual se incluía toda a oposição, por mais heterogênea que fosse.
O dilema na Venezuela – diziam – não era entre um Poder Executivo, que ignora um Parlamento legítimo e governa com faculdades extraordinárias, e uma oposição, que se lança às ruas por falta de vias institucionais para exercer sua legitimidade. É entre Império e Revolução, como essa esquerda sempre entendeu a questão cubana.
Lembremos que na primavera de 2003, quando o governo de Fidel Castro fuzilou três jovens que tentaram emigrar para os Estados Unidos e prendeu 75 opositores pacíficos, provocando o repúdio de alguns intelectuais da esquerda ocidental como Noam Chomsky, José Saramago e, em certa medida, Eduardo Galeano, Gabriel García Márquez e Mario Benedetti, esta rede divulgou uma carta intitulada ‘Mensagem aos amigos que estão longe’, assinada pelos mesmos que hoje, da Ilha, subscrevem o apoio incondicional a Nicolás Maduro. Naquela carta se lia: “Nosso pequeno país está hoje mais ameaçado do que nunca pela superpotência que pretende impor uma ditadura fascista em escala planetário. Para defender-se, Cuba viu-se obrigada a tomar medidas enérgicas que, naturalmente, não desejava. Não se deve julgá-la por essas medidas tirando-as do seu contexto”.
Agora, no novo documento dos intelectuais e artistas “em defesa da Humanidade”, dizem: “Evidentemente, há um processo de militarização e uma escalada da violência. Mas longe de ser o resultado de fatores internos, esta militarização é permanentemente induzida pela agressão imperialista em todos os seus níveis (diplomático, político, econômico, militar, midiático, financeiro). Ou, talvez, devêssemos que enumerar os golpes de Estado em Honduras, Paraguai e Brasil que antecedem o presente ataque? São sem serventia as grosseiras teorias dos dois demônios para analisar as causas da violência venezuelana. Ou o que significa, então, a ‘origem complexa e compartilhada da violência’ assinalada pelo ‘apelo urgente’? Ou a identificação, aparentemente simétrica, de “extremistas” de direita e totalitários de esquerda, que redunda, ao finalizar o texto, no apontamento de um único e sem precedente responsável pela violência: o Estado e o governo bolivariano! Justo aqueles que insistem em uma estratégia de paz! O que, segundo estes intelectuais, deveriam ter feito Fidel Castro e os revolucionários cubanos diante da invasão de Playa Girón? Sentar-se para falar com diplomatas inexistentes enquanto as bombas trovejavam sobre a Baía dos Porcos? Enfrentar com cartazes eleitorais os fuzis dos mercenários? Fazer cautelosamente pedidos à OEA?”
O documento também contém muitas críticas àquilo que os assinantes chamam de “fetichização” das instituições da democracia liberal: sintomático uso, por estes intelectuais, do conhecido conceito de Karl Marx com um pensamento mais que fetichista, icônico e maniqueísta, que divide de maneira obsessiva o mundo entre o bem revolucionário e o mal imperial.
Logicamente, nesse tipo de racionalidade não cabem as instituições da democracia liberal, porque se trata precisamente da destruição de uma plataforma jurídica e política – representação, eleições, referendos, plebiscitos – sem a qual qualquer democracia é inconcebível, inclusive a participativa, introduzida pelas constituições bolivarianas do século XXI.
O que acontece na América Latina, de acordo com os partidários do manifesto da Rede em Defesa da Humanidade (Roberto Fernández Retamar, Silvio Rodríguez, Pablo González Casanova, Víctor Flores Olea...), é um Girón diário, um conflito potencialmente militar provocado pelos Estados Unidos que justifica o despotismo e a repressão.
Mesmo admitindo os erros da oposição venezuelana ou o intervencionismo dos Estados Unidos na região, que, do ponto de vista estritamente geopolítico, não só deveria incluir as sanções da administração de Barack Obama contra a Venezuela, mas também seu entendimento com o governo de Raúl Castro, a reabertura de embaixadas e as medidas de flexibilização do embargo comercial, a ausência total de crítica diante do comportamento do governo de Nicolás Maduro implica um endosso da violência de Estado na Venezuela.
Um respaldo que não é conjuntural, mas que responde ao projeto explícito de avançar rumo a um socialismo de tipo cubano na América Latina. A nova Assembleia Constituinte venezuelana, ao proceder à eleição de seus representantes pela via “setorial” e “comunal”, e não por meio do sufrágio universal direto e secreto, reproduz um elemento chave do sistema político da Ilha.
Cuba é o único país do hemisfério onde a população não elege de maneira direta o Chefe de Estado. São os membros do Parlamento, designados por comissões de candidatura integradas por representantes dos setores do país – operários, camponeses, mulheres, estudantes... –, devidamente agrupados em organizações governamentais, que elegem o titular do Poder Executivo. De acordo com esse método, que começou em 1976, Fidel Castro se reelegeu sete vezes e Raúl Castro já vai para o seu terceiro mandato.
O modelo cubano não aparece, portanto, como ideal para um regime socialista, mas como último recurso para a gestão repressiva da política nacional venezuelana. O governo de Nicolás Maduro opta pela via cubana em meio a uma crise de legitimidade que não pode enfrentar a partir das normas democráticas, já que se arriscaria a perder o poder.
Cuba lhe oferece o método adequado para perpetuar o comando sem necessidade de recorrer à prática eleitoral propriamente democrática, nem a mecanismos plebiscitários, que nunca são convocados na Ilha. Os intelectuais que respaldam essa deriva autoritária só podem recorrer a uma duplicidade que apresenta o paradigma da “verdadeira democracia” – o socialismo cubano – como necessidade peremptória em uma situação de emergência.
Na esquerda autoritária, a ideologia acaba subordinada à geopolítica. Nesse imaginário, a “democracia” deixa de ser uma síntese de valores igualitários e justiceiros e transforma-se em um dispositivo meramente instrumental para manter ou aumentar o poder.
Os acadêmicos e intelectuais que se pensam como atores “orgânicos” desses processos, apelando a Antonio Gramsci, entendem e praticam sua organicidade não com respeito à cidadania ou à sociedade civil, mas em lealdade e adesão ao Estado. Eles são porta-vozes de poderes concretos – o governo cubano ou o governo venezuelano –, que, além de exercerem a repressão sistemática em ambos os países, procuram monopolizar o lugar da esquerda na América Latina, com a finalidade de inclinar todos os países da região para a ditadura.
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O desafio da esquerda diante da crise da Venezuela. Artigo de Rafael Rojas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU