21 Julho 2017
“Do mesmo modo como um dia desapareceram as diferenças entre conservadores e liberais, obstinados inimigos em outros tempos, vão desaparecendo as distâncias entre a direita e a esquerda, e chegará o momento em que serão a mesma coisa, como agora o são conservadores e liberais, que passaram a constituir o neoliberalismo. E isso acontece porque a disputa entre direita/esquerda se dá tão somente no interior do paradigma eurocêntrico. Mas, com a emergência de outros paradigmas provenientes da alteridade ou de fora do eurocentrismo, podem ser vistas mais claramente outra dicotomias que durante 500 anos eles não quiseram ver”. A análise é de Atawallpa Oviedo Freire, equatoriano, doutor em Jurisprudência, em artigo publicado por Alai, 19-07-2017. A tradução é de André Langer.
Segundo ele, "a esquerda, órfã de projeto, precisa com urgência abandonar as utopias que vieram do século XIX e substituí-las por outras, adaptadas aos tempos atuais”.
Até cerca de 15 anos atrás, não era qualquer um que se dizia ser de esquerda. Era inclusive necessário proteger-se ao dizê-lo [ser de esquerda], pois os familiares, a sociedade e o Estado procuravam estigmatizá-lo com o propósito de demovê-lo dos seus propósitos. Durante muitos anos, reivindicar ser de esquerda ou socialista ou revolucionário implicava em passar por muitos riscos: ser atacado, processado, desprezado, morto, etc. Algo semelhante ao que hoje enfrenta uma pessoa que se declara homossexual (degenerado) ou uma “mulher liberal” (prostituta); ou semelhante ao que continuam a viver durante 500 anos aqueles que têm uma aparência física de tipo indígena ou negro.
Naquela época, a maioria das pessoas da esquerda vinha de estratos populares, havendo também um bom grupo de pessoas que fazia parte daquilo que Marx chamava de “pequena burguesia”, embora ironicamente, na maioria dos casos, fossem os dirigentes da esquerda. Em grande porcentagem eram pessoas realmente comprometidas e alguns inclusive estavam dispostos a entregar sua vida pela “causa”. Muitos deles morreram como guerrilheiros, naquilo que se chamou de “foquismo”, ou por seu desespero pequeno-burguês para mudar imediatamente o sistema por meio da violência armada.
No entanto, embora alguns tenham lucrado e se aproveitado de certas situações quando estiveram no poder de uma organização de esquerda ou perto do governo federal de turno, a grande maioria foi coerente e consequente com seus princípios. Ser de esquerda implicava em correr riscos, nos quais a família era a que mais tinha a padecer, razão pela qual alguns caíram na tentação do “homem da maleta” proporcionada pela direita. Os riscos de ser de esquerda implicavam um medo, mas aí se via quem realmente era quem, pois apresentar-se publicamente e de esquerda podia representar menos oportunidades de trabalho e, por conseguinte, econômicas, motivo pelo qual muitos optaram por não se declarar dessa tendência, embora no fundo se sentissem simpatizantes da esquerda.
Na nossa época de universidade, conhecemos alguns que se diziam de esquerda, mas que depois se declararam abertamente de direita, ou seja, passaram a assumir postos nos partidos e organizações da burguesia e do Estado colonial. Declarar-se de direita abria muitas portas ou possibilitava escalar postos dentro do sistema, o que na linguagem marxista chamava-se de “carreirismo pequeno-burguês”. Outros, um pouco mais honestos, simplesmente se afastaram de suas lutas e optaram por acomodar-se economicamente dentro do sistema o melhor possível, embora mantivessem alguma simpatia pela esquerda.
Obviamente, as pessoas da direita eram maioria em relação às da esquerda, ou havia muito mais pessoas que se declaravam de direita ou de centro, do que de esquerda. Como, da mesma forma, o pensamento da sociedade nacional era majoritariamente de direita, ou era formado pela direita em seus princípios e valores conservadores e liberais, ambos de origem eurocêntrica. Além disso, durante muito tempo dizer-se “marxista” ou “socialista” ou “comunista” era inclusive um “palavrão”, motivo pelo qual tinham o orgulho de se dizer conservador ou liberal, ou social-democrata ou democrata-cristão, etc.
Assim funcionava o imaginário da esquerda dentro da sociedade, até que chegou a época dos autodenominados “governos progressistas”. No começo, muitos personagens tradicionais da esquerda faziam parte destes governos, mas depois foram substituídos ou se retiraram voluntariamente. Aqueles que permaneceram, embora já não figurassem em postos chaves, fizeram-no sob o argumento de que era preciso continuar lutando “dentro da revolução” e decidiram tomar distância em relação àqueles que optaram fazê-lo a partir de fora, isto é, preferiram ser companheiros e aliados dos novos personagens de esquerda que apareceram de repente na época “progressista”, do que dos velhos companheiros de luta. (1)
Aqueles que permaneceram, tinham muitas críticas dentro dos seus feudos aos governos “progressistas” e que, em muitos casos, coincidiam com aqueles que estavam fora, mas o exteriorizavam apenas parcialmente ou preferiam guardar silêncio por “tática política”, já que consideravam que era preciso avançar pouco a pouco. Alguns deles estão esperando pelas condições “objetivas” e “subjetivas” para “assaltar a direção dos partidos progressistas” e, na sequência, proceder à “tomada do poder” do Estado-nação e impulsionar o seu projeto “verdadeiramente” revolucionário.
Os de fora, por sua vez, optaram por desmascarar os progressistas, na perspectiva de que são a “nova direita”, mas com linguagem de “esquerda”. Seu propósito é derrotar eleitoralmente progressistas, socialdemocratas, neoliberais, etc., para de igual maneira realizar uma “verdadeira” transformação a partir do governo central do Estado crioulo-burguês. Esquecem-se, ou não aprenderam até agora, que “as sociedades que quiseram impor a igualdade de baixo para cima não conseguiram maior equidade. Os países nórdicos são os mais igualitários sem um sistema autoritário nem verdade única”. (2)
No entanto, o mais estranho ou raro desta época do Socialismo do Século 21 é que da noite para o dia apareceram muitas figuras nos governos progressistas que se diziam de esquerda, revolucionárias, socialistas, quando anteriormente se acotovelavam ou bamboleavam nos corredores da direita. E outros, que simplesmente dedicaram-se a acumular títulos acadêmicos e que não se importaram absolutamente com a política, apareceram como que por um ato de magia reclamando ser de esquerda ou revolucionários. Eles eram em sua grande maioria uma série de tecnocratas, que se dedicaram a estudar nas melhores universidades do “imperialismo” e do “eurocentrismo” e que tinham um certo sentido social, mas, acima de tudo, um certo sentido para acomodar-se e aproveitar-se do poder. Um deles tornou-se inclusive presidente do Equador (Rafael Correa), enquanto que nos demais países “progressistas” foram velhas figuras da esquerda que chegaram ao poder central.
Muitos destes tecnocratas, e que passaram a integrar a burocracia do Estado capitalista, não hesitaram em declarar-se de esquerda num simples piscar de olhos, alegando que eram “uma esquerda moderna” ou uma “nova esquerda”; a esquerda tradicional age simplesmente para classificá-la como extremista, desta maneira separando-se e marcando diferenças com a velha esquerda, que é apresentada agora como caduca ou atrasada e que “faz o jogo da direita”.
Para muitos, foi fácil aderir à esquerda; dessa maneira, podia-se ser simultaneamente católico, positivista, cartesiano, liberal, empresário, moderno, indigenista, etc. Um pós-modernismo em que cabia tudo, sob o título de “esquerda moderna”. Atualmente, tornou-se normal, comum e corriqueiro ver uma série de pessoas oriundas da pequena burguesia e até da burguesia (empresários), como ministros, assessores, deputados, representantes, diretores, dos governos de esquerda. Uma série de “infantilizados” ou de pessoas light encabeçando uma série de funções e organismos nacionais e internacionais em nome da “esquerda”.
Chegamos, inclusive, ao extremo de ver pessoas tão superficiais e incompetentes como Nicolás Maduro ou Diosdado Cabello como máximos dirigentes de uma “revolução de esquerda”, sendo realmente patético e o exemplo mais claro de onde chegou a esquerda. Dá vergonha de ver a geração de “revolucionários” que apareceram na “década ganhada”. Cabello acaba de assinalar que, “algum dia, precisa aparecer um Hugo Chávez na Colômbia”, em concordância com outra frase de Maduro, que dizia: “Cuidado, pode lhes aparecer um Chávez na Colômbia. A Colômbia tem necessidade de um Chávez para que vocês vejam como esse povo vai atrás desse Chávez”. Nestas frases podemos semanticamente ler quem são estes “revolucionários”, que acreditam que o problema da história consiste no aparecimento de grandes messias que acabem com as penúrias dos povos.
Esse é o populismo dos governos progressistas, desde os mais grosseiros até os mais sofisticados ou leitosos como García Linera. Como bem assinala Zibechi: “A esquerda é parte do problema e não a solução. Porque, a rigor, embora agora comecem a aparecer os limites, os progressismos são ingredientes da mesma trama. Olhemos o PT de Lula. Eles negam a corrupção que é evidente há uma década, quando Frei Betto escreveu A mosca azul após renunciar ao seu cargo no primeiro governo Lula, quando foi descoberto o escândalo do mensalão”. (3)
Do mesmo modo como um dia desapareceram as diferenças entre conservadores e liberais, obstinados inimigos em outros tempos, vão desaparecendo as distâncias entre a direita e a esquerda, e chegará o momento em que serão a mesma coisa, como agora o são conservadores e liberais, que passaram a constituir o neoliberalismo. E isso acontece porque a disputa entre direita/esquerda se dá tão somente no interior do paradigma eurocêntrico. Mas, com a emergência de outros paradigmas provenientes da alteridade ou de fora do eurocentrismo, podem ser vistas mais claramente outra dicotomias que durante 500 anos eles não quiseram ver. A este respeito, disse Zibechi: “A polarização direita-esquerda é falsa, não explica quase nada do que vem acontecendo no mundo. Mas o pior é que a esquerda tornou-se proporcional à direita em um ponto chave: a obsessão pelo poder”.
O eurocentrismo via apenas um problema de classe social, mas agora se entende que há um problema de gênero, de espécie, de cultura, etc., mas, principalmente, que é ontológico e epistêmico. Agora, o eurocentrismo pode debater o problema de gênero ou de cultura, mas se recusa a confrontar-se com outras epistemes, que ele continua a considerar posturas étnicas ou pseudo-filosofias ou para-ciências, etc.
O eurocentrismo deu seu braço a torcer em relações às contradições no interior de suas concepções, mas com respeito a outros paradigmas das periferias ou das externalidades, segue inferiorizando-as ou racializando-as para não entrar e assumir outras dimensões e categorias. O fechamento do eurocentrismo não permite que eles enxerguem além dos seus narizes, convencidos de que são o princípio e o fim do conhecimento. E a esquerda em geral segue esta linha, a alteridade segue sendo inferior a todas as epistemes do Ocidente, em especial ao pensamento marxista considerado o mais avançado da história humana. Além disso, para a academia, a alteridade não tem epistemes, filosofias, ciências, pois esta é uma capacidade exclusiva que só o Ocidente desenvolveu.
A esquerda ocidentalizada é, agora, uma esquerda conservadora em relação à racionalidade da alteridade, que tem muitas variáveis que admitem a convivência com a diferença e a diversidade, ao contrário de muitas cargas hegemônicas e homogeneizantes que o pensamento piramidal eurocêntrico tem no seu lado direito e esquerdo. Por exemplo, o indígena, para a esquerda, é um problema de classe, e para outros, um pouco mais profundos, é uma questão de identidade. Mas para a racionalidade indígena é uma coisa muito mais ampla e que tem a ver com uma maneira de conceber o mundo e um modo de viver. Não se trata de conservar a língua ou certos trajes ou determinadas festas, mas de uma série de epistemes que diferenciam diferentes formas de relacionar-se com o mundo e que dão um sentido diferente do trabalho, da doença, da economia, da morte, do tempo, da natureza, dos ancestrais, do futuro, da espiritualidade, etc. Para a esquerda eurocentrada, é uma questão de fenótipos ou de etnias ou de raças ou de culturas: brancos, negros, índios, mestiços. Essa é uma visão racista e/culturalista, posto que o que diferencia os seres humanos são suas posições epistêmicas e suas atitudes ontológicas.
Além do mais, com a globalização em curso, hoje a maioria das pessoas com fenótipo indígena/negro pensa e vive eurocentricamente. São muito poucos aqueles que operam a chamada “racionalidade indígena” ou “cosmovisão indígena” ou “filosofia indígena”. Há inclusive mais mestiços do que índios que as conhecem. Muitos ecologistas e ambientalistas que vivem modos sustentáveis de vida e que realizam produção agroecológica, estão mais perto das epistemes indígenas ou ancestrais do que muitos índios que adoram o Deus do colonizador e que utilizam uma série de pesticidas que fazem muito mal à Pachamama.
Este é o tipo de pessoa alternativa, ao contrário e diferentemente do eurocentrismo de direita e de esquerda. São os terceiro-excluídos do esquema eurocentrado, que sempre os deslocou e inferiorizou ou minorizou não apenas por sua classe ou por sua etnia, mas principalmente por suas epistemes, que consideravam (e ainda consideram) selvagens e primitivas. Eles são os anátemas daqueles que acreditaram ser os donos do conhecimento ou do pensamento único e universal, e que os segregaram ou excluíram não apenas por seu fenótipo, mas sobretudo por suas formas de conceber a “realidade”, qualificando-as de endemoniadas ou esotéricas.
Cada época tem seus personagens revolucionários. Como na sua época foram os materialistas em relação aos idealistas, os positivistas em relação aos subjetivistas, os liberais em relação aos conservadores, a esquerda em relação à direita, hoje, são os “alternativos”, os “terceiro-excluídos”, os “anátemas” do eurocentrismo liberal e marxista aqueles que são a transformação, o profundo, o integral, o holístico, o complexo. A esquerda teria que se descolonizar para fazer parte da rebeldia anatemista, ou deveria ressignificar-se para tornar-se um membro a mais do alternativo, ou reinventar-se para incorporar-se aos terceiro-excluídos.
Contudo, essa seria uma tarefa muito difícil, como a dos eco-marxistas ou ecossocialistas, que fazem parte do eurocentrismo de esquerda e que procuram reanimar o decrépito, que seguem acreditando que o marxismo e o positivismo são o todo, quando, na verdade, são uma parte do conhecimento. Ou certos decoloniais, que criticam a colonialidade com as mesmas epistemes, princípios, categorias e variáveis do pensamento civilizatório ou eurocêntrico. Que falam da alteridade, mas que desconhecem suas epistemes e ontologias e que os diferenciam como alteridade por seus fenótipos. Enquanto eles continuam a falar da dicotomia ocidental direita/esquerda, na alteridade fala-se verticalmente: os de cima e os de baixo. “Lênin encarregou-se de nos explicar que as revoluções dificilmente se fazem de baixo para cima e, embora a lição tenha custado a vida de milhões de vidas e reclusões em gulags, são muitos aqueles que nunca conseguem entendê-la”. (4)
Quando, talvez, o mais simples e sábio seja fazer uma revolução interna, entrando em sintonia com a racionalidade da alteridade para caminhar rumo a grandes e profundas mudanças, antes que o extrativismo – de direita e de esquerda – acabe com a espécie humana. “A esquerda, órfã de projeto, precisa com urgência abandonar as utopias que vieram do século XIX e substituí-las por outras, adaptadas aos tempos atuais”. (5)
Notas:
1.- “A esquerda. À luz do que aconteceu na região nas duas últimas décadas, podemos chegar a uma redefinição do conceito de esquerda: é a força política que luta pelo poder, apoiando-se nos setores populares, para incrustar seus quadros nas instituições que, com o passar dos anos e o controle dos mecanismos de decisão, transformam-se em uma nova elite que pode substituir as anteriores, negociar ou fundir-se com elas. Ou combinações das três”. Raúl Zibechi, “Cuando la izquierda es el problema”, Brecha, Montevidéu, 07-04-2017.
2.- Jorge León, “Tanto sacrificio para lo mismo”, El Comercio, Quito, 10-07-2017.
3.- Raúl Zibecchi, “Cuando la izquierda es el problema”, Brecha, Montevidéu, 07-04-2017.
4.- Jorge Suazo, “Nosotros los populistas, los idiotas de la historia”, Página Siete, La Paz, 16-07-2017.
5.- Jorge León, “Tanto sacrificio para lo mismo”, El Comercio, Quito, 10-07-2017.
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O que é a esquerda hoje. Artigo de Atawallpa Oviedo Freire - Instituto Humanitas Unisinos - IHU