04 Mai 2017
O presidente da Autoridade de Informação Financeira (AIF), René Brülhart, falou sobre a reforma financeira do Vaticano na noite de quinta-feira, na Blavatbik School of Government, da Universidade de Oxford. Brülhart procurou criar um sistema de regulação "sob medida" - termo usado diversas vezes em sua palestra - que alinha o Vaticano aos padrões europeus contemporâneos sem sacrificar sua singularidade.
A reportagem é de Austen Ivereigh, autor do importante livro The Great Reformer: Francis and the Making of a Radical Pope, publicada por Crux, 29-04-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Foi uma maneira fora do comum de uma autoridade do Vaticano começar uma palestra a estudantes de política públicas na brilhante escola da Universidade de Oxford: lembrando a memória de um cardeal. Ainda mais tratando-se de um leigo.
Depois de começar brincando que o Vaticano tinha paredes um pouco mais grossas e menos janelas do que a Blavatbik, que é feita de aço e vidro - "mas nós esperamos estar introduzindo a transparência do nosso jeito" -, René Brülhart pediu um minuto de silêncio aos alunos e professores por seu predecessor na chefia da vigilância financeira do Vaticano, o Cardeal Attilio Nicora, que morreu no início desta semana.
O líder suíço, presidente da Autoridade de Informação do Vaticano (AIF) desde 2012, teve um sucesso notável na criação e implementação de novas leis e regulações para que as finanças de Roma não se tornassem escândalos novamente. Depois de vê-lo falar com os alunos de gestão da mudança, acho que entendi o porquê.
O auditor - que chegou ao Vaticano depois de um notável sucesso na resolução desse outro centro tradicional europeu de lavagem de dinheiro, Lichtenstein - é instrumento de reforma e mudança. Ele deve ser uma grande ameaça à velha guarda do Vaticano, que sempre desconfia de especialistas externos que demonstram saber mais.
No entanto, esse gesto em relação ao seu antecessor mostra sua sensibilidade à cultura da cúria. Muitas das perguntas da plateia, previsivelmente, convidaram-no a contar histórias das tensões envolvidas, mas ele nunca criticou ninguém.
Ele foi calorosamente recebido, como disse ("as paredes podem ser mais grossas, mas as pessoas no Vaticano são muito calorosas"), havia uma "grande curiosidade para aprender e entender" e ele só conseguiu começar a mudar por causa do enorme apoio que recebia de cima.
O sucesso de Brülhart no Vaticano deve-se em grande parte por ter entendido a sua singularidade enquanto instituição soberana e global. Em vez da conversa agressiva sobre a "modernização" do Vaticano, Brülhart procurou criar um sistema de regulação "sob medida" - um termo que ele usou muitas vezes em sua palestra -, que alinha o Vaticano com os padrões europeus contemporâneos sem sacrificar sua singularidade.
Ao mesmo tempo, ele relaciona a conclusão da reforma ao bem da instituição, a obrigação moral com os católicos ao redor do mundo de que seu dinheiro seja bem administrado. E a proteção da soberania do Vaticano: ajustar as regulações significa torná-lo menos vulnerável ao controle estrangeiro (especialmente italiano).
"Houve uma grande tentação de tentar mudar tudo" quando ele chegou, em setembro de 2012, como contou aos alunos em um inglês suave e com sotaque.
Brülhart, uma das duas principais nomeações financeiras de Bento XVI na véspera da sua renúncia, enfrentou um cenário dramático: o cartão de crédito e os caixas eletrônicos do Vaticano haviam sido bloqueados pelo Banca d'Italia, as relações entre o IOR - o "Banco do Vaticano" e os bancos correspondentes tinham se deteriorado a ponto de suas transferências estarem congeladas.
O diretor reformista do IOR, Ettore Gotti Tedeschi, havia sido expulso e MoneyVal, o cão de guarda europeu anti-lavagem de dinheiro, estava em cima de Roma, pressionando por mudanças. E ao contrário de Lichtenstein, que passa despercebido na maior parte do tempo, os escândalos financeiros do Vaticano eram constantemente registrados pela grande mídia global.
No entanto, Brülhart manteve-se discreto, em movimentos lentos, escutando e observando.
"Tentei entender o que tinha acontecido. Como é que os caixas eletrônicos estavam congelados? Eu estava tentando entender como isso tinha acontecido. Quem eram os autores principais? O sistema legal era suficiente? Poderíamos fazer o trabalho necessário?”
Em 2013 e 2014, os ditos "alicerces" da revisão financeira do Vaticano foram implementados: um novo sistema de supervisão, reformas do código penal e mudanças nos estatutos da AIF concedendo-a claros poderes de regulação.
Então, em meados de 2014, veio a nova Secretaria de Economia e foi criado o cargo de auditor geral.
"Mas quando o quadro legal e regulamentar está alinhado, vem o desafio da implementação", disse Brülhart, que está contente com o que foi alcançado, mas continua salientando que é um "processo".
Os ganhos até aqui são facilmente rastreáveis nos relatórios anuais da AIF. Houve apenas cerca de 12 compartilhamentos de informações - do AIF a reguladores em outros países - em 2012, comparado com mais de 1.500 até o final de 2016. Da mesma forma, os relatórios de atividades suspeitas (sinalizando dinheiro que pode estar conectado a criminosos ou terroristas) aumentaram de apenas um em 2012 para mais de 1.000 em 2016.Os fundos do IOR não foram mais congelados.
Existe cooperação internacional. Os regulamentos financeiros que pertencem a outros lugares da Europa estão sendo aplicados ao Vaticano. Pelo quinto ano, a AIF vai emitir um relatório anual em algumas semanas e será interrogada por repórteres em uma conferência de imprensa.
E, é claro, houve uma limpeza no IOR, inclusive com o fechamento de 5.000 contas cujos titulares tinham relações duvidosas com o Vaticano. Foi a existência dessas contas nebulosas que permitiram não apenas a lavagem de dinheiro, mas a exploração - com a conivência de funcionários corruptos do Vaticano - dos instrumentos financeiros da Igreja por redes criminosas e até mesmo maçônicas.
Atualmente, segundo Brülhart, o IOR "está voltando às suas origens, aos seus estatutos, ao que realmente representa, que é servir às obras da Igreja em todo o mundo".
Mas e as acusações?, pergunto. Tem havido muita cooperação com as autoridades italianas, o que permitiu que a polícia da Itália investigasse e prendesse criminosos - mas nenhum, até agora, no próprio Vaticano.
Em dezembro de 2015, a Moneyval queixou-se de que não havia "resultados reais" nas acusações de crimes financeiros pelas leis do Vaticano, nem mesmo confiscos de bens. Dizem que há 40 casos levantados por Brülhart na mesa do procurador-chefe do Vaticano, o chamado Promotor da Justiça, até agora sem nenhuma condenação.
Brülhart diz que o sistema de relatórios atual realmente só começou a funcionar em 2013-2014, o que significa que a AIF investiga relatórios de atividades suspeitas e, ao encontrar suspeita de irregularidades, passa o caso ao Promotor de Justiça.
Brülhart não diz isso, mas muitos temem que esses casos - extremamente complexos, como tendem a ser os crimes de colarinho branco - vão além da competência do Promotor de Justiça, que não tem os recursos e o know-how para processá-los.
Mas Brülhart logo me surpreende: ele vai anunciar em breve os primeiros processos por crimes financeiros. "No ano passado começaram os primeiros processos, não são vários, mas demos os primeiros passos. É um processo, mas que está sendo resolvido e nós publicaremos os dados relevantes em breve."
Ele concorda com MoneyVal que esta é uma "questão-chave". Se ninguém for processado pelo novo quadro regulamentar, não há por quê. "Começou em algum ponto e tem que terminar em outro, é preciso percorrer toda a cadeia", considera ele.
Mas enquanto houver tais obstáculos - "às vezes há pedras e montanhas" - Brülhart não cai no erro de se ver indo contra o sistema. "Estamos juntos neste caminho", descreve.
Então, que lições - perguntou - ele pode compartilhar sobre coordenar a mudança em instituições estabelecidas?
Brülhart começa mostrando as atitudes que fizeram com que ele conquistasse amigos em Roma - ele não é o reformador, mas "apenas um humilde servo", a mudança é o trabalho em equipe, e assim por diante. Ele não menciona o papa nem acha que tudo vem da Santa Marta. O principal agente de transformação, diz ele, é que esta é a coisa certa a fazer - e é por isso que ele não pensa que a mudança vai acontecer em um futuro papado. A partir disto, ele tinha duas sugestões.
A primeira era comunicar-se constantemente, construindo pontes através do diálogo claro sobre o que está sendo feito, por que isso precisa ser feito e as consequências de não fazê-lo. A principal razão para a resistência em qualquer instituição é o medo de perder o que se tem, de dar poder a outra pessoa.
No entanto, quando as pessoas compreendem que é preciso agir, elas superam seus medos. "As pessoas que resistem no início podem se tornar seus maiores apoiadores", diz ele.
A segunda é "retirar o fator emoção da situação". A mudança sempre provoca reações emocionais, que são guias pobres. Qual o seu conselho? "Opte por uma abordagem objetiva. Seja chato. Acredite nos fatos. Como nós podemos melhorar isto?"
Como receita para reformar o Vaticano, pode não ser a abordagem que mais gera manchetes. Mas está funcionando.
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O reformador sereno do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU