Por: André Langer | 29 Mai 2024
Após o fim da Guerra Fria, os Estado Unidos reivindicam para si e de maneira unilateral a tarefa de “estruturar o mundo”, o que passa pela “capacidade de enfrentar qualquer ameaça aos seus interesses em qualquer parte do mundo e a construção de uma ordem econômica liberal global (a chamada globalização econômica)”.
A expansão da OTAN, a colocação de bases militares estadunidenses e a imposição de políticas econômicas neoliberais (Terapia de Choque) mundo afora fazem parte desta estratégia de manter os demais países sob rédeas curtas.
Mas toda ação gera uma reação, o que vale também para as questões geopolíticas. Rússia e China, temendo as ameaças representadas pelos Estados Unidos, dão passos significativos de aproximação e articulação, rompendo com a ordem unipolar imposta na década de 1990 pelos EUA, com a consequente “fragmentação desta ordem do ponto de vista político e seu reflexo sobre os ordenamentos econômicos, monetários e financeiros” e a instauração de uma nova ordem: a ordem multipolar.
As reflexões são de Maurício Metri feitas durante a sua fala que deu sequência, no dia 11 de maio, à série de debates [online] Questões do Antropoceno, abordando o tema Mundo em guerra: fragmentação, conflitos e riscos existenciais. A iniciativa do CEPAT conta com a parceria e o apoio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU; do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental – SARES; do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá – UEM e do Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB.
Mauricio Metri (UFRJ)
Mauricio Metri é professor associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI) do Instituto de Economia da UFRJ. É doutor, mestre e graduado em Economia pelo Instituto de Economia da UFRJ. Coordenador do Laboratório Orti Oricellari de Estudos em Economia Política Internacional, vinculado ao IRID-UFRJ e ao PEPI-UFRJ. Membro do Grupo de Pesquisa Poder Global e Geopolítica do Capitalismo vinculado ao PEPI-UFRJ e CNPq.
Maurício Metri é autor do livro História e diplomacia monetária, publicado pela Editora Dialética, que serviu de base para as suas reflexões.
Metri começou sua exposição fazendo referência a um acontecimento recente, do início do mês, que, segundo ele, aponta para o que está em jogo hoje. O presidente da China, Xi Jimping, esteve na Sérvia, em visita a Belgrado, e uma das razões da visita foram os 25 anos do bombardeio da OTAN à Sérvia. E neste bombardeio, a embaixada chinesa foi alvo do ataque e destruição. Já na época houve publicações de jornalistas importantes que mostravam que este incidente não foi um ato acidental, como alegou o governo dos Estados Unidos. Na verdade, existiu ali uma intenção deliberada.
É bem significativo que o presidente da China faça uma viagem à Sérvia e faça questão de sublinhar este atentado ocorrido há 25 anos. Em março de 1999, aconteceu o primeiro passo do processo de expansão da OTAN, o qual foi seguido pelo bombardeio da Sérvia sem a autorização do Conselho de Segurança da ONU, onde a Rússia e a China já tinham manifestado sua contrariedade.
O que é importante perceber, segundo Metri, é que esta conjuntura do final do século é um ponto de inflexão e que nos ajuda a compreender o que está acontecendo hoje no mundo. Ponto de inflexão em relação a uma ordem que foi anunciada em 1991, em razão do fim da Guerra Fria, uma nova ordem mundial anunciada pelos EUA em função da sua vitória na disputa geopolítica com a União Soviética. Existe – diferente de outras disputas de outras potências em que ocorreram negociações de paz, tratados de paz – neste conflito, embora não tenha ocorrido nenhuma confrontação direta, um documento oficial dos EUA em que eles, como vencedores, reivindicam para si a estruturação do mundo no pós-Guerra Fria.
Este é um documento rotineiro publicado pela Casa Branca, neste caso sob a administração do Bush pai. E o documento é muito explícito em relação às intenções de como os EUA queriam estruturar o mundo, e de fato o organizaram. Este documento apresenta dois pontos fundamentais: a capacidade de enfrentar qualquer ameaça aos seus interesses em qualquer parte do mundo e a construção de uma ordem econômica liberal global (a chamada globalização econômica).
Dentro destas duas linhas principais existem três diretrizes básicas e um ângulo cego, analisa Metri. A principal diretriz que ali constava era que a Rússia continuaria sendo a principal ameaça aos EUA e à ordem centrada em Washington. Isso porque, a despeito do processo de colapso do bloco soviético, a Rússia ainda seria detentora de um importante arsenal atômico. E a implosão do bloco soviético tornou, naquele momento, a Europa Central do Leste o tabuleiro prioritário da disputa e de projeção do poder estadunidense. E apontou também a ideia de guerras preventivas.
E tem um ângulo cego nesta doutrina que diz respeito à China. Naquele momento, a China não era percebida como uma ameaça aos interesses dos EUA; o problema maior era a Rússia. E em relação à Rússia, que saiu da Guerra Fria derrotada, nada muito diferente do que a história ensina em relação aos tratados de paz, ao pós-guerra, às ordens que nascem depois de um período de confrontação, no caso, de uma confrontação indireta.
Com o débâcle da União Soviética, a Rússia teve perdas territoriais, sofreu guerras separatistas fomentadas por potências estrangeiras, e o mais simbólico de tudo foi a imposição de um programa econômico que se convencionou chamar de Terapia de Choque. Na verdade, foi uma violência bastante significativa em termos de reorganização da vida econômica interna, cujos resultados são impressionantes. Tem-se de 1990 a 1998 uma diminuição do PIB real em 51%. Em termos sociais, a população pobre em 1988 na União Soviética era de 2% e passou para 39% da população russa em 1995. Foi um verdadeiro desastre social e econômico. Vale lembrar que a Terapia de Choque foi coordenada por economistas ocidentais, que tinham como objetivo central a desestruturação da economia russa.
Simultaneamente, houve um processo de expansão da OTAN. A despeito da vitória na Guerra Fria, os EUA acharam por bem manter a OTAN em funcionamento, e não só mantendo-a como fomentando a sua expansão, uma vez que a Rússia continuava a ser vista como a principal ameaça à ordem internacional, à sua segurança e aos seus interesses. De 1990 a 2020, a OTAN saltou de 16 membros para cerca de 30. E hoje, as distâncias entre as fronteiras da OTAN e as principais cidades da Rússia – São Petersburgo e Moscou – são relativamente curtas: respectivamente 130 km e 580 km.
Outro elemento de suma importância, na análise de Metri, é o abandono, por parte dos Estados Unidos e de maneira unilateral, do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos, de 1972, que implicava o não desenvolvimento de sistemas defensivos contra os mísseis balísticos. Isso quer dizer que, se uma vez uma potência conseguiu construir um sistema antimísseis, torna inócua a capacidade ofensiva dos seus adversários.
Neste sentido, recriar-se-ia a vantagem estratégica de que os EUA desfrutaram em 1945 quando de fato bombardearam o Japão com duas armas nucleares. Portanto, em 2002, os EUA romperam este acordo e passaram a desenvolver sistemas antibalísticos, uma tentativa de tornar o arsenal russo inócuo perante uma tentativa de ataque estadunidense.
Em resumo, a partir desta conjuntura dos anos 1990, o que se percebeu é a expansão da OTAN, uma estrutura militar global que segue viva até hoje.
Atualmente, os EUA dispõem de 750 bases militares fora do seu território nacional, um verdadeiro império militar global. Nos últimos 30 anos, os EUA fizeram uma cronologia de guerras que impressiona. De 1990 a 2020, fizeram 47 guerras ou intervenções militares, o que dá uma média de uma guerra a cada 7 meses durante 30 anos. Algumas dessas guerras duraram duas décadas, como a guerra do Afeganistão (2001-2021).
Este é, pois, o mundo do pós-Guerra Fria. É uma tentativa de criar uma ordem unilateral e centralizada em Washington.
Mas quem financia este processo? Para surpresa de muita gente, não são os cidadãos estadunidenses, mas os cidadãos do mundo inteiro. Por quê? Porque a construção de uma ordem liberal pós-1991 apresenta alguns fenômenos importantes: uma expansão desmesurada dos fluxos de capitais que passaram a contar com uma enorme liberdade de movimentação, e neste mundo marcado por uma desregulamentação e uma liberalização financeira, o resultado é uma enorme pressão sobre as economias nacionais e até mesmo sobre os agentes econômicos que cooperam a nível internacional. Tudo isso multiplicou as crises econômicas nos últimos 30 anos decorrentes de ataques especulativos ou de bolhas em mercados de capitais.
Diante deste quadro de desregulamentação financeira, a principal estratégia para todos os países e os principais agentes econômicos que atuam internacionalmente passou a ser acumular reservas denominadas em dólar, sobretudo títulos da dívida pública americana. Porque este passou a se constituir no principal elemento que permite, no caso dos bancos centrais, evitar no mercado de câmbio os ataques especulativos.
Em decorrência, se o mundo passa a entesourar sem limite aparente ativos denominados em dólar, sobretudo títulos da dívida pública estadunidense, o que acontece do ponto de vista do Estado americano é uma capacidade de emissão de títulos em uma capacidade de endividamento e gasto absolutamente desproporcional a qualquer outro país.
Assim, prossegue Metri, não é difícil perceber que os EUA conseguiram construir um sistema monetário internacional que funciona na prática como um mecanismo de extorsão, porque se os países são compelidos a entesourar títulos da dívida pública estadunidense para poderem se inserir nesta ordem internacional, a consequência disso é uma capacidade de gasto e endividamento da autoridade americana que lhe permite sustentar, entre várias outras coisas, um complexo industrial e militar absolutamente gigantesco, uma cronologia de guerras de 30 anos, a maior aliança do planeta que não para de se expandir (a OTAN) e uma descomunal estrutura de bases militares mundo afora.
Diante deste contexto, não é difícil perceber a posição da Rússia e da China frente a essa projeção e pressão dos Estados Unidos. E tem uma regra que a longa história nos ensina e que nos mostra que esta situação atual não é nova. Ou seja, tornou-se um imperativo a Rússia e a China, que são os principais alvos da projeção estadunidense, reagirem a este processo e formarem uma aliança contra o que sentem também como ameaça.
E, para ilustrar este ponto, Metri apresenta dois fatos históricos: 1º) quando Luís XIV começou suas cronologias de guerra, enquanto teve (Jean-Baptiste) Colbert como assessor nas suas primeiras guerras, conseguiu evitar uma projeção excessiva da França que empurrasse outros atores a uma aliança antifrancesa. Mas bastou Colbert morrer durante a Guerra dos 9 anos (também conhecida como Guerra da Grande Aliança), no final do século XVII, para que a máquina de guerra do monarca francês passasse a operar numa lógica de ir contra todos. E quanto mais persistiu nessa lógica, mais empurrou os outros atores a uma lógica antifrancesa.
2º fato) outra situação é quando o chanceler (Otto von) Bismarck, no final do século XIX, após a unificação da Alemanha, operou uma política externa evitando uma aliança antigermânica dentro da Europa. Mas bastou a ascensão do imperador Guilherme II para destituir Bismarck e colocar a Alemanha numa lógica militarista, expansionista, preparada para uma guerra contra todos os europeus numa aliança de países de outras potências. E o resultado é a formação de uma aliança impensável naquele tempo entre a França, a Inglaterra e a Rússia.
Voltando à questão atual, não é de se estranhar, portanto, que diante da posição dos Estados Unidos se arme uma aliança contra essa ordem militar estadunidense unipolar. Já em 1997,ou seja, dois anos antes da expansão da OTAN, o mais importante diplomata americano do pós-Segunda Guerra, George Kennan, formulador da política de contenção, escreveu um artigo no New York Times intitulado “Um erro fatal”, no qual já havia identificado este processo.
Na visão de Kennan, se os EUA seguissem uma lógica expansionista, empurrariam a Rússia a uma postura nacionalista, militarista, antiocidental e que buscasse convergências com outros atores que também pudessem se sentir pressionados pelos Estados Unidos. E foi exatamente neste erro que os EUA incorreram logo depois, como mostram os fatos acima narrados. E no início deste século, a China e a Rússia começaram a resgatar uma série de iniciativas e a aprofundá-las.
O mundo caminha para uma ordem política fragmentada. Ao mesmo tempo, a economia internacional vai responder a esta fragmentação política criando uma ordem multipolar.
No entanto, adverte Metri, nos últimos anos, os Estados Unidos vêm apostando numa lógica militar, em detrimento da lógica diplomática para a resolução de conflitos. E isso fundamentalmente em três tabuleiros.
1. Guerra na Ucrânia. A Ucrânia tornou-se um elemento central, um espaço de disputa, para Estados Unidos, Atlântico Norte e a Rússia, devido à sua posição geopolítica. Moscou teme que a Ucrânia entre no guarda-chuva da OTAN, aproximando seu raio de influência ainda mais para perto de suas fronteiras, o que Moscou não toleraria. Moscou sempre estabeleceu que a Ucrânia nunca poderia entrar na OTAN, dada a pressão que isso significa para a sua segurança.
Mauricio Metri (UFRJ) e André Langer (Cepat), durante o debate
Kissinger, em 2014, defendeu a transformação da Ucrânia em zona neutra, como era a Finlândia até recentemente. Infelizmente, a decisão de Washington foi provocar a guerra, com incidentes que remontam, segundo Metri, pelo menos, a 2014 (deposição de um governo pró-Moscou e apoio a um pró-Washington).
A Alemanha, sob Angela Merkel, começou a estabelecer parcerias estratégicas com a Rússia, sobretudo na questão energética com a construção do gasoduto Nord Stream. Esta relação é um dos elementos de uma espécie de interdito geopolítico consagrado há muito tempo. Do ponto de vista do Atlântico Norte não pode haver uma parceria estratégica entre Berlim e Moscou, interdito que está na estruturação da criação da própria OTAN. De acordo com um dos seus idealizadores, a OTAN serve para manter os Estados Unidos dentro da Europa, a Rússia fora da Europa e a Alemanha agachada. Este é um princípio muito caro.
A guerra da Ucrânia e o gasoduto Nord Stream recolocaram o fosso entre a Alemanha e a Rússia. A guerra, do ponto de vista dos Estados Unidos, cumpre um papel importante, mesmo sabendo que não a vencerão no campo de batalha contra a Rússia devido a uma revolução na arte da guerra. A tentativa de militarização da Ucrânia empurrou a Rússia para uma intervenção numa linha vermelha que ela já tinha sinalizado e que parte da elite americana já havia percebido que o resultado seria este (vide Kennan e Kissinger).
2. Mar do sul da China. Este é outro tabuleiro onde os Estados Unidos apostam na militarização, com destaque para Taiwan, onde se encontram dois cinturões de bases militares americanas que remontam aos anos 1950 para bloquear a saída da China aos mares. Neste contexto, a iniciativa chinesa da Rota da Seda é uma tentativa geoeconômica que responde a uma geopolítica que se deu pelo bloqueio dos Estados Unidos à saída da China aos mares. Portanto, o que ali acontece é uma crescente militarização promovida e financiada por Washington.
3. Oriente Médio. Mas o tabuleiro mais dramático está no sudoeste asiático em razão do genocídio israelense do povo palestino em Gaza. Israel é um instrumento dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos nesta região, em que o principal desafio dos EUA é o Irã. No ano passado, o Irã entrou na Organização para Cooperação de Xangai, que é uma organização de cooperação militar coordenada por Moscou e Pequim. Além disso, também no ano passado, entrou nos BRICS, e a China mediou a restauração das relações diplomáticas entre Teerã (Irã) e Riad (Arábia Saudita), que estavam interditadas desde 2016. E a Arábia Saudita também entrou nos BRICS.
Portanto, do ponto de vista dos Estados Unidos, é do seu interesse a militarização, a crescente escalada da violência no tabuleiro do Oriente Médio de forma a acentuar rivalidades e financiando o genocídio israelense. O Irã é o principal ente do que se convencionou chamar de Eixo da Resistência, que articula o Hamas, o Hezbolah, forças de resistências na Síria contra o Estado Islâmico e as forças de resistências no Iraque contra as posições estadunidenses neste território.
Neste sentido, o Irã tem uma participação absolutamente chave nestas tensões e rivalidades que estão nesta configuração geopolítica do sudoeste asiático. Vale lembrar que o Irã mostrou, nas últimas semanas, uma capacidade militar ofensiva efetiva que não havia mostrado desde 1979, ao atingir duas bases militares israelenses. A correlação de forças mudou completamente no Oriente Médio por conta destes acontecimentos recentes na região, na análise de Metri.
Sintetizando, a OTAN não vai assistir imóvel a esse quadro de capacidade de reação defensiva de um eixo que está articulando cada vez mais Moscou, Pequim e Teerã. Haverá, portanto, uma reação desse eixo, o que já está acontecendo, o que nos coloca diante de dois caminhos: prevalece o grupo mais ligado ao pensamento militar; mas existe a esperança de que prevaleçam os canais diplomáticos.
Mas em ambos os casos, a fragmentação já é um processo inevitável, ou seja, já vivemos em uma ordem multipolar – a Rússia e a China já têm autonomia sobre seus espaços e conseguem defender seus interesses estratégicos frente à pressão do Atlântico Norte. E a tendência que o mundo tem apontado é para a fragmentação desta ordem do ponto de vista político e seu reflexo sobre os ordenamentos econômicos, monetários e financeiros.
Abaixo, disponibilizamos a íntegra da exposição e debate.
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Estados Unidos. Da estruturação do mundo no pós-Guerra Fria à ordem multipolar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU