21 Setembro 2018
“Nossa nova hipótese democrática vai precisar ser fabricada a partir dessas experiências que dilatam o que conhecemos como “política”, nos chamam para um mundo povoado de elementos não visíveis. Produzir resistências assim como um novo paradigma de direitos é, portanto, assumir que nossa guerra é também uma guerra de mundos, fazendo da nossa própria existência um campo de batalha por destruir e deslocar fronteiras”, escreve Alana Moraes, antropóloga, doutoranda no Museu Nacional - UFRJ.
O artigo abaixo é a exposição de Moraes: Novas experiências de politização, feita no Ciclo de debates Cenários para o Brasil contemporâneo, realizado em agosto pelo CEPAT, em parceria com Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR, Cáritas - Regional Paraná, Comunidades de Vida Cristã (CVX) - Regional Sul e Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Suely Rolnik, em seu mais recente livro de ensaios, oferece imagens potentes para seguirmos vivas, conectadas com o saber-do-corpo e insistindo em cartografias que possam revelar o poder atuando ativamente em territórios subjetivos, não apenas nas relações econômicas. Na versão financeirizada do capitalismo, sustenta a filósofa, “é da própria vida que o capital se apropria”, “bem como da cooperação da qual tal potência depende” (Rolnik, 2018). O que eu venho propondo é uma espécie de radiografia antropológica da crise instaurada no Brasil, tentando pensar esse momento em que vivemos não só como um episódio grave de rupturas institucionais que se expressam no terreno da macropolítica, mas como um fenômeno de desvelamento de conflitos latentes, presentes nas dinâmicas societais cotidianas da sociedade brasileira como o racismo, o machismo e ódio de classe, mas que agora encontram forças e formas de expressão de incríveis magnitudes. Trata-se, portanto, não apenas de uma crise política constitucional que esgota o chamado “pacto de 1988”, mas também de uma crise de modos de existência – uma guerra ontológica, portanto, onde a perspectiva de trégua parece desmanchar no horizonte.
Nesse sentido, nos parece importante honrar esse abismo e o que ele nos oferece. É possível pensar a crise democrática da qual depende a sobrevivência do neoliberalismo hoje como uma crise produzida pelos becos sem saída construídos pelo próprio sistema e ao mesmo tempo como uma resposta a um ciclo global vigoroso de lutas antissistêmicas que vem denunciando as incongruências da democracia neoliberal desde a crise de 2008.
As reformas exigidas pelas forças financeirizadas e pelo capital monopolista não podem ser feitas sem que produza desemprego e endividamento, consequências que, por sua vez, são fábricas de um forte mal-estar social, frustrações, sensação de desamparo e espoliação. A aliança entre forças financeiras e conservadoras atua, portanto, nessa nova configuração, oferecendo um projeto moral de reorganização do tecido social, convocando forças moribundas da sociedade e se expressando na figura decadente e mais atingida pelas novas lutas no Brasil e o no mundo, assim como pela própria dinâmica do empobrecimento: o homem branco de setores médios e altos.
Outra forma de ler esses tempos de crise é como uma guerra de fronteiras. As fronteiras são ao mesmo tempo materiais e simbólicas, ordenam a vida social de forma mais profunda: o que é doméstico e o que é público, o que é feminino e o masculino, o sagrado e o profano, o que é o sucesso ou o fracasso, a dignidade e a infâmia, a nação e seus inimigos, a própria ideia de justiça, o que é digno de humanidade e o que não é, as vidas que são dignas de luto e comoção e aquelas que não são. Pensando a partir desses terrenos éticos, é possível afirmar que a luta política é sempre uma luta por e contra fronteiras – seja para erguer muros fortes, seja para deslocá-los, ou mesmo torná-los obsoletos. Fronteiras que também disputam sensibilidades sobre o mundo social. Pensando a partir da guerra de fronteiras, é possível enxergar o movimento feminista e o movimento negro antirracista como movimentos que vem deslocando, incansavelmente, as fronteiras estabelecidas pelo suposto universalismo do homem branco ocidental: “vidas negras importam” ou “nenhuma a menos” são formulações contemporâneas que dão conta de instituir o que é considerado como uma vida que conta. Como afirma Amador Savater: "precisamos saber ler a conjuntura política não simplesmente como uma disputa entre diferentes grupos pelo poder, mas como um choque entre diferentes percepções da vida social, entre diferentes sensibilidades da vida em comum".
Pensar em termos de guerra de fronteiras é considerar as disputas pela própria delimitação do que seja política e vida e o que separa uma da outra. Nessa guerra de fronteiras, temos hoje no Brasil duas forças importantes: de um lado, o fascismo – que historicamente atua nas crises do capitalismo com a promessa de restituir os muros, as fronteiras, o ordenamento das hierarquias de raça e gênero, ou seja, as identidades que podem voltar a oferecer alguma segurança ao homem branco proprietário – e todos aqueles que se sentem “protegidos” por esses muros. É importante lembrar que quem está fora da fronteira, esse “outro” perigoso, entra imediatamente em uma zona governada pela necropolítica: uma zona da punição, da destruição e de morte. A “nação” é um dispositivo historicamente muito eficaz para o reestabelecimento de identidades, mas agora o “homem de bem” parece também ser mais um elemento dessa fórmula. Alckmin e Bolsonaro são duas faces, na política brasileira, do mesmo modo de operar esse ordenamento.
Não é à toa que o dia da votação do impeachment da Dilma foi um momento crucial de reorganização tática das forças conservadoras. Tal evento crítico revelou algumas instituições mais importantes de delimitação de fronteiras que ali foram evocadas repetidas vezes: a nação, a família heteropatriarcal, o homem de bem. Também não é por acaso que os debates mais intensos no período recente tem a ver com os dois marcadores de fronteiras mais importantes da sociedade capitalista: o gênero, com o debate da “ideologia de gênero” e também a redução da maioridade penal que tem por trás o marcador de raça – o jovem negro é o inimigo, são os corpos matáveis, assim como a feminilidade e masculinidade devem ser resguardadas em seus papéis tradicionais dentro da hierarquia de gênero, ocultando assim o fato de que a família heteropatriarcal continua sendo o locus privilegiado da violência de gênero em nossa sociedade.
Mas do outro lado dessa guerra de fronteiras, tem o que eu venho chamando de novas experiências de politização – experiências que, justamente, vem deslocando fronteiras e produzindo outras formas de fazer política. O “outro” dessa necropolítica que fortalece fronteiras e identidades é então uma vitapolítica que restitui a possibilidade de criação de uma vida coletiva, fazendo da diferença não mais o bode expiatório da crise do neoliberalismo, mas a força que desloca fronteiras, borrando o que separa a vida da política, fazendo da existência como um todo um terreno de batalha.
Eu falo aqui das ocupações urbanas de terreno vazio, feitas e mantidas pelos sem-teto nas franjas da cidade, da onda de ocupações nas escolas públicas, das experiências territoriais de quilombos, aldeias, ocupações culturais, a produção de um novo urbanismo do comum, mas também a luta contra a violência policial e o extermínio de Estado que hoje se consolida como projeto. Como diz Preciado, não nos basta agora reivindicar a reapropriação dos modos de produção, mas mais do que nunca nos importa a urgência da reapropriação dos modos de reprodução.
O que muitas dessas experiências têm em comum é a forma-ocupação como tecnologia política. Se nas décadas de 70, 80, o novo sindicalismo emergia dentro das fábricas, lutando contra o capital na esfera da produção – em um novo contexto de crise da sociedade salarial as ocupações se erguem, no entanto, com o trabalho sempre invisível da reprodução da vida. Nas ocupações, só é possível existir por conta daqueles trabalhos domésticos que sempre fizemos nas sombras: cozinhar, limpar, cuidar uns dos outros; o trabalho não remunerado, exilado das zonas de importância da luta de classes. Quando se compartilha uma cozinha, uma refeição, ou a responsabilidade de cuidar de outras pessoas, não importa muito os marcadores de gênero ou raça – o que importa é fazer funcionar aquela vida coletiva diante dos poderes constituídos que constantemente ameaçam sua existência sempre provisória.
Mas não só isso. Nas ocupações, é preciso também um constante esforço de produção de relações, manutenção de vínculos, fabricação de pertencimentos, escutas. Quando não há mais nada: salário, emprego, hospitais públicos, o que fica somos nós, mulheres. Nas ocupações dos secundaristas, eram meninas as principais lideranças, e o dia a dia das ocupações era feito de uma concepção muito ampliada de educação: era preciso pensar sobre a vida, sobre como manter uma vida comum vivível e as fronteiras de gênero eram continuamente deslocadas: os meninos tinham que ficar responsáveis pela alimentação e pela limpeza. A heterossexualidade também era uma fronteira em contínuo deslocamento, assim como o marcador de raça. Era preciso dar atenção para o fato de que qualquer opção por enfrentamento direto contra forças policiais teria que conter o fato de que a repressão de Estado é racista e procura o corpo negro.
Mas essas novas experiências de politização não são apenas reativas, não são o que sobram. São experiências que seguem nos fornecendo pistas de organização. O que é resistir se não, continuamente, podermos cuidar-nos juntos, podermos produzir um corpo que se cura da paralisia, do medo, da solidão. O que é resistir se não deslocar as fronteiras morais dos poderes constituídos, seja ela da heterossexualidade doméstica ou da propriedade privada (na verdade, uma é feita da outra). Uma das frases mais ouvidas nas ocupações de sem-teto é “aqui eu me curei”. A cura que se produz nas ocupações vem da possibilidade de compartilhar um espaço, uma vida, marcas de sofrimento – antes encerrados nos espaços domésticos. É parte da experiência compartilhada de deslocar fronteiras antes vistas como inabaláveis.
Esses espaços, as ocupações, produzem uma política no feminino, uma política que assume a nossa vulnerabilidade, que arrasta o cuidado com as relações para o centro da cena política – a grande mobilização das mulheres na argentina pela legalização do aborto, mulheres que bravamente ocuparam as ruas durante dias de baixo de chuva, de frio, mais uma vez encenam essa poderosa inversão, o borramento de fronteiras: a rua vira casa, um espaço ampliado de cuidados, relações, encontros, comer junto. Uma inversão espacial que marca uma cartografia política de novo tipo: uma política que está na vida e não fora dela – como supõe uma certa noção de cidadania masculina, um borramento da fronteira que separar o doméstico e o público.
Seriam experiências políticas, que como chama a intelectual negra Beatriz Nascimento, de aquilombamento – territórios existenciais, práticas de refugio e autonomia, onde a liberdade precisa ser feita e refeita todos os dias, com cuidado, atenção, presença e uma nova economia de confianças e pertencimento?
Essas experiências políticas denunciam também que muitos lares, em seu sentido patriarcal, se tornaram infernais, lugares inseguros nos quais acontecem a maior parte dos feminicídios e violência sexual, além das violências cotidianas de vários tipos.
A partir desses pontos de vista é possível compreender que o movimento majoritário e mais significativo ao longo do história desse sistema econômico não foi a “exploração da mão de obra assalariada”, mas foi a destruição de modos de vida e a expropriação das formas coletivas de cuidado e conhecimento – a família heteropatriarcal erguendo fronteiras contra a vida coletiva e a solidariedade entre mulheres; o Estado neocolonial erguendo fronteiras contra nossa capacidade de organizarmos a nós mesmas, de pensar juntas nossas soluções não punitivistas; não patriarcais.
Se, de um lado, temos a força dessas experiências apontando para outros lugares, de outro, a reação conservadora aposta na produção de masculinidades fortes e ordenadoras, que possam sustentar as fronteiras, exterminar o inimigo, ou seja, todos aqueles que desafiam ao ordenamento hierárquico do capitalismo e seus pilares racistas, machistas, homofóbicos. A “masculinidade” está agora sendo exigida, inclusive, em edital de concurso público.
Se fizéssemos um exercício de continuar simplificando os antagonismos do nosso tempo, poderíamos dizer também que o Estado neoliberal e suas muletas autoritárias agem exatamente rompendo e destruindo relações, enquanto o comum, essa vitapolítica, é a prática permanente de conectar, de relacionar.
Para terminar, com mais uma dessas fortes experiências de politização que no Brasil recente também é fabricada pela dor, eu gostaria de ecoar a frase da Bruna Silva, mãe do Marcos Vinícius, o menino que foi assassinado na Maré em uma operação policial quando ia para escola. Carregando para todos os lugares o uniforme manchado de sangue, Bruna tem repetido: “O Estado está doente” “O Estado levou meu filho” – como se o Estado encarnasse mesmo essa figura masculinizada, autoritária e com desejo de extermínio.
Em uma conversa que tivemos, Bruna contava das profundas conexões que conseguiu estabelecer a partir desse sofrimento incontornável. “Encontrei a mãe de um policial que foi morto em uma operação. Nos abraçamos, choramos. Eu falei pra ela: o mesmo Estado que matou meu filho, matou o seu também”. Do mesmo modo Bruna fala do encontro que teve com a mãe de Marielle: “Sentimos que a filha dela agora está cuidando do meu filho lá no céu, e eu estou aqui agora cuidando dela”.
As mães que perdem seus filhos vítimas da violência policial tem fabricado um dos idiomas de conexão mais potentes dos nossos dias: “nossos mortos têm voz” elas repetem, narrando e atualizando permanentemente a memória dos seus filhos: o que faziam, que música ouviam, o que gostavam de comer. Elas atuam justamente contra a ofensiva do Estado e seus dispositivos autoritários, mostrando que os meninos na verdade são filhos, irmãos, são maridos, faziam parte de uma trama de relacionalidade que também é morta quando eles são mortos – elas são insistentes conectoras, de imagens, de memórias, quase todas adoecem e evocam o mundo dos vivos e dos mortos (deslocam mais essa fronteira!) para expressar sua luta por justiça. “Eu vou falar da minha luta, vou falar do meu filho, mas eu não vou chorar. Porque quando eu choro ninguém presta atenção no que eu falo”, insiste Bruna.
Nossa nova hipótese democrática vai precisar ser fabricada a partir dessas experiências que dilatam o que conhecemos como “política”, nos chamam para um mundo povoado de elementos não visíveis. Produzir resistências assim como um novo paradigma de direitos é, portanto, assumir que nossa guerra é também uma guerra de mundos, fazendo da nossa própria existência um campo de batalha por destruir e deslocar fronteiras.
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Uma guerra de fronteiras. Artigo de Alana Moraes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU