Em pesquisa que será apresentada em livro, teóloga revela como as faces femininas foram sendo apagadas das escrituras por interpretações e ressignificações masculinas
“Se foram escribas masculinos que escreveram e reescreveram o Pentateuco, foram homens que tinham um conhecimento aguçado do feminino. A pergunta é: como homens poderiam escrever e descrever tanta intriga e fofoca?” A provocação é da teóloga Salma Ferraz, reconhecida por dar visibilidade ao feminino, muitas vezes ocultado em estudos e narrativas judaico-cristãs. Em seu mais recente trabalho, em fase finalização, ela traz à luz mulheres que foram apagadas das narrativas bíblicas, especialmente no Antigo Testamento. Como ela mesma diz, é uma espécie de redescoberta de um Israel de saias. “O Israel de saias é o feminismo de trás das cortinas e das tendas, parece suave, mas é radical. Isto é comprovado pelo enredo envolvendo Sara, Agar, Rebeca, Raquel, Lia, Tamar, Zípora, Débora, Jael, mulher de Tebes, a filha de Jefté, Rute e Noemi, a poderosa rainha Ester, Abigail, e a magistral Rispa. A biografia destas mulheres foi construída à revelia, nas brechas e fendas do discurso bíblico”, completa.
Salma faz questão de enfatizar que não é preciso “forçar o texto”, pois as mulheres estão e sempre estiveram lá. O problema é que foram sendo apagadas por releituras e exegeses dos textos bíblicos. São exercícios que a teóloga mostra como vêm sendo feitos de forma quase que totalmente patriarcal. “É bem conhecido o caso da teóloga alemã Uta Ranke-Heinemann, que perdeu uma cátedra de teologia na Universidade de Heidelberg ao publicar o livro Eunucos pelo reino de Deus”, observa. Na obra, a estudiosa alemã denuncia “uma Igreja Católica de homens brancos, celibatários, que tem o poder de dizer o que é natural ou não na sexualidade, que tem horror ao prazer sexual, que domina os corpos femininos”.
Assim, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Salma leva o leitor a redescobrir as mulheres que foram soterradas na Bíblia. É um movimento que, para ela, tem estreita relação com a própria experiência de Jesus Cristo, que foi capaz de ver e compreender as mulheres apesar da cultura de seu tempo. “Atente para a benção matinal dos judeus: ‘Obrigado, Senhor, por não me teres feito mulher’. Este era o contexto de Jesus, que era judeu. Porém, ele andava rodeado de mulheres de conduta duvidosa. Nunca se preocupou com o que falavam dele, para escândalo dos seus discípulos”, sintetiza.
Salma Ferraz (Foto: UFMG)
Salma Ferraz possui graduação em Letras pelas Faculdades Integradas Hebraico Brasileira Renascença, mestrado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e doutorado em Letras pela mesma instituição. Realizou estudos pós-doutorais por dois períodos na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e na Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Também é graduada em Teologia pela Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC e é professora titular aposentada de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Entre suas publicações, estão os livros: As faces de Deus na obra de um ateu (Edifurb, 2012), Dicionário de personagens da obra de José Saramago (Edifurb, 2012), Dicionário de personagens da obra de Paulina Chiziane (Todas as Musas, 2019) e Humor e mau humor na Bíblia e no cristianismo (Edifurb, 2016). Atualmente, tem pesquisado e escrito sobre mulheres do Antigo Testamento.
IHU – A partir das mulheres com as quais a senhora escolheu trabalhar em pesquisas recentes, o que podemos inferir sobre o modo de vida feminino da época do Antigo Testamento?
Salma Ferraz – Eu creio que as mulheres do Velho Testamento, incluídas numa vida tribal e patriarcal, acompanharam a passagem do politeísmo/enoteísmo para o monoteísmo (de Astarote/Astard/Aserá para YHVH) e não tiveram uma vida fácil: servir a um novo Deus que parecia não gostar muito de mulheres ou servir a Rainha dos Céus, para as quais faziam massa para bolos e pães (Jeremias 7:18)? Segundo o livro Inefável e sem forma: estudos sobre o monoteísmo hebraico (UCG/Oikos, 2009) de Haroldo Reimer, as deusas foram extirpadas pela reforma de Josias (662 a.C) na implantação do culto somente a Adonai.
Inefável e sem forma: estudos sobre o monoteísmo hebraico, de Haroldo Reimer | Foto: divulgação
As mulheres do Novo Testamento, em especial, as dos Evangelhos, estavam amparadas por Jesus, que ressignificou o papel delas dentro do judaísmo. Na Igreja primitiva, as mulheres tinham voz, ocupavam lugares e funções que até hoje não ocupam na Igreja Católica de Roma. Jesus teve discípulas, Maria e Marta de Betânia, Suzana, Salomé, Joana, esposa de Cusa, incluindo a discípula amada Madalena. Priscila foi missionária e companheira de Paulo na sua missão. Sínteque foi uma conceituada mulher macedônia e de grande destaque na Igreja de Filipos. Junia era apóstola. Lídia ofereceu sua casa para o começo da Igreja de Filipos.
A extirpação do feminino aconteceu quando a Igreja de romanizou, numa jogada política de Constantino em 313, tornando-se a religião oficial do Império Romano em 390 (Teodósio). Mas os papéis das mulheres na Igreja primitiva são muito importantes: elas deram o suporte efetivo e financeiro no nascer do cristianismo ocupando cargos de destaque. Mesmo assim, até hoje não se ordenam mulheres na Igreja romana. Não há fundamentos bíblicos para esta negativa que é misógina, sexista e excludente. É mais fácil o celibato deixar de ser obrigatório do que ordenarem mulheres.
Aliás, as duas reformas, a de Josias (662 a.c.) e de Constantino/Teodósio (313-390), foram desastrosas para as mulheres.
Estátua de Aserá, século VI ou VII a.C. | Museu Eretz Israel/acervo de pesquisa de Salma Ferraz
IHU – A senhora escolheu para o livro Bíblia apócrifa feminina perfis femininos desconhecidos para apreender a narrativa bíblica sobre as mulheres e não grandes matriarcas como Sara, Rebeca, Raquel. Por quê? O que há de errado com elas ou com a narrativa que se constrói delas?
Salma Ferraz – Bem, primeiramente porque estas matriarcas do Velho Testamento já estão consagradas na história do judaísmo. E as do Novo Testamento como Maria, Izabel, a profeta Ana, porque já são reconhecidas e santificadas pelo cristianismo (exceto Madalena, conhecida, reverenciada, mas injustiçada por dois mil anos). Elas extrapolaram o texto bíblico, são famosas nas artes, na pintura, na literatura, na teologia. Certamente ficaram famosas, mas sem uma análise correta dos caminhos erráticos delas. Obviamente não estou falando de Maria, mãe de Jesus.
Costumo brincar que Shakespeare leu a Bíblia para compor a Megera Domada (1594). As matriarcas são terríveis: Sara engana o marido e expulsa cruelmente Agar para o deserto. Seu marido consente, não diz nenhuma palavra com um silêncio culposo. A inspiração do Conto de Aia (1985), da canadense Margaret Atwood, é baseada deste episódio. Rebeca é a Senhora dos enganos: enganou seu marido Isaac para proteger seu filho mais fraco – Jacó, que também será o Senhor dos enganos. Ela também engana seu próprio filho Esaú e demonstra claramente que prefere o outro.
Raquel viu sua irmã Lia sofrendo ao ver Jacó trabalhar por mais sete anos para tê-la como esposa. A vida das duas foi disputar o leito de Jacó com Mandrágoras (fruta afrodisíaca). Depois, Raquel fugiu com Jacó levando os ídolos da sua casa e mentiu, descaradamente, para seu pai.
Sobre Rute e Noemi, eu as chamo de as aranhas tecedeiras do Velho Testamento: que coragem, que estratégias, que malícia que elas usaram para cooptar Boaz para sua causa. O homem de reputação ilibada acordou com Rute aos seus pés. Se isto já assustaria um homem de nosso tempo, imagine naquela época. É muita confiança e ousadia. Destas artimanhas, nasce Obede, avô de Davi.
Apesar do contexto histórico nos quais estes livros foram escritos, elas estão aí, com comportamentos centenas de anos à sua frente. Não estou sangrando o texto bíblico. Conseguiram se destacar num mundo patriarcal. Elas explodem nas narrativas.
Rebeca, a Senhora dos enganos!, de Luca Giordano (Nápoles, 18 de outubro de 1634 - Nápoles, 3 de janeiro de 1705). Acervo de pesquisa de Salma Ferraz
IHU – Há uma tese de que o Pentateuco foi escrito por uma mulher. De quem é essa afirmação e como a senhora a avalia?
Salma Ferraz – A tese é do crítico norte-americano Harold Bloom, que em 1990 publicou um livro de ensaios intitulado O livro de J. Portanto, segundo sua polêmica hipótese, o autor/narrador javista poderia ter sido uma mulher.
The Book of J (Grove Press, 2004), de Harold Bloom | Imagem: divulgação
Foi baseado nesta ideia que Moacyr Scliar escreveu o romance A mulher que escreveu a Bíblia. Para ele, a autora javista era uma mulher da corte do rei Salomão. O romance ganhou o Prêmio Jabuti em 1999.
A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar (Companhia das Letras, 2007). Divulgação
O que eu posso dizer ao ver a trajetória das mulheres conhecidas e desconhecidas do Velho Testamento é que, se foram escribas masculinos que escreveram e reescreveram o Pentateuco, foram homens que tinham um conhecimento aguçado do feminino. A pergunta é: como homens poderiam escrever e descrever tanta intriga e fofoca? E ainda: como narradores homens, de culturas machistas, deixaram escapar estórias como a de Tamar, mulher de Tebes, Rispa?
IHU – Especificamente, quem são as mulheres desconhecidas que a senhora resgata? Em que medida podemos considerar que são fundamentais para Israel Antigo?
Salma Ferraz – Meu livro inédito traz narrativas feitas por mulheres como Tamar, Zípora, Débora, Jael, mulher de Tebes, filha de Jefté e Rispa.
Tamar, duas vezes viúva, no mundo tribal andropocêntrico, em meio a uma injustiça cometida por seu sogro Judá, que descumpria a Lei do Levirato, consegue, em meio ao limbo em que estava, tecer sua sobrevivência e gerar gêmeos. É por seu filho Perez que manterá a linhagem de Judá, da qual nascera Jesus. Seu nome é relatado em Mateus, na genealogia composta quase inteiramente por homens.
Zípora é dada por esposa a Moisés e participa de um estranho acontecimento na vida de seu marido: Deus tenta matá-lo. Este relato está em Êxodo 4:24. A exegese deste texto é complicada. Que Teofania esquisita e despropositada! Parece que a ira de Deus se acendeu contra Moisés porque seu filho Gérson ainda não havia sido circuncidado. Zípora, que pela narrativa deixa implícito ser contra este costume herdado dos egípcios, pega uma pedra e circuncida seu filho e joga o prepúcio aos pés de Moisés. Desvia-se de Moisés, chama-o de esposo sanguinário. Zípora salva o salvador de Israel. Só isso!
Zípora circuncida seu filho | Imagem: acervo de pesquisa de Salma Feraz
Sobre Débora, procuro resgatar não seu papel de profeta e juíza, que já é conhecido, mas seu aspecto de guerreira, além de poeta e cantora. Ela lidera a batalha contra o poderoso comandante cananita Sísera, porque o comandante de Israel, Baraque, estava amedrontado e só subiria para a batalha se ela fosse junto. Ela lidera a batalha, mas diz ao covarde que a glória de matar Sísera pertenceria a uma mulher.
Débora vence a batalha, o comandante foge e vai se esconder na tenda de Jael, a fazedora de tendas. Ela atravessa o crânio do comandante cananita com uma estaca e um martelo. Em seu belíssimo cântico de vitória, Débora se autodenomina Mãe de Israel e louva a coragem de Jael. Pela atuação de duas mulheres (Débora e Jael), houve paz em Israel por quarenta anos.
Débora | Imagem: acervo de pesquisa de Salma Ferraz
Jael mata Sísera | Imagem: acervo de pesquisa Salma Ferraz
A mulher de Tebes, na esteira de Débora e Jael, nos confirma, que quando tudo falha, quando os homens se acovardam, YHVH se lembra das mulheres. Ninguém podia com o sanguinário Abimeleque, que arrasava a tudo e todos por onde passava, fertilizava a terra com o sêmen da morte, até ele chegar à cidade de Tebes. Os habitantes, apavorados, se escondem numa torre. O assassino se aproxima da torre, para tocar fogo e matar a todos. Mas a mulher de Tebes, mais uma sem nome, joga uma pedra do alto da torre que esfacelou o crânio do sanguinário rei usurpador. Notemos um detalhe: ele pede ao moço de armas que o mate com uma espada, para que não digam que uma mulher o matou.
Já a filha de Jefté é assombrosa. Como ele fez um voto tão insensato como este? Oferecer em sacrifício a primeira pessoa que lhe saísse ao encontro, se ele ganhasse a batalha. E a coragem desta mulher é muito maior que de Isaac. Ela não pergunta onde está o cordeiro. Para ela voto feito, voto cumprido. Isaac é quase morto, é poupado no último minuto e depois recebe uma benção especial. Sua tenda fica repleta de gêmeos. Já a tenda da filha de Jefté, a sem nome, fica deserta...
Estas brilhantes desconhecidas foram fundamentais para a história de Israel.
Tamar | Imagem: acervo de pesquisa de Salma Ferraz
IHU – No que consiste a Israel de saias no Velho Testamento, como a senhora chama em seus estudos?
Salma Ferraz – O Israel de saias é o feminismo de trás das cortinas e das tendas, parece suave, mas é radical. Isto é comprovado pelo enredo envolvendo Sara, Agar, Rebeca, Raquel, Lia, Tamar, Zípora, Débora, Jael, mulher de Tebes, a filha de Jefté, Rute e Noemi, a poderosa rainha Ester, Abigail, e a magistral Rispa. A biografia destas mulheres foi construída à revelia, nas brechas e fendas do discurso bíblico.
Não é preciso forçar o texto. Estão todas ali, ocultas. Por que ninguém as encontra? Por que não se fala delas (as desconhecidas em itálico), não se fazem sermões e homilias sobre as esquecidas do texto bíblico?
Paulina Chiziane que, em seu livro Niketche: a história da poligamia, afirma: “Até na Bíblia a mulher não presta. Os santos, nas suas pregações antigas, dizem que a mulher nada vale, a mulher é um animal nutridor de maldade, fonte de todas as discussões, querelas e injustiças. É verdade” (p. 61).
Niketche: a história da poligamia (Companhia das Letras, 2009), de Paulina Chiziane | Imagem: divulgação
Porque a imagem conhecida da mulher do Gênesis aos Evangelhos não é nada boa: Eva levou Adão a pecar, e Madalena é uma pecadora arrependida. Ou pelo menos a hermenêutica bíblia se aproximou e analisou os textos por este viés androcêntrico e patriarcal. Estamos constatando que a importância das mulheres e suas atitudes estão avançadas em séculos.
The Death of Abimelech, ilustração de Charles Foster. The Story of the Bible (A.J. Homan Co., 1884). Reprodução Wikipédia
IHU – Das personagens que a senhora trabalha, qual a mais lhe encantou e por quê?
Salma Ferraz – Sem sombra de dúvida, Rispa, a concubina de Saul. Sou uma leitora constante dos textos bíblicos, e esta estória tinha passado despercebida. Li, reli. “Não é possível?” Foi isto que pensei ao encontrar o drama desta heroína. No meio de um jogo de poder tremendo, numa trama de intrigas e vinganças, aparece a grande Rispa, a rainha do Reino dos Mortos, velando seus dois filhos (de Saul) e os cinco netos dele, filhos de Merabe. À medida que ela cresce na narrativa, Davi diminui liliputianamente, pois ele entrega estes sete descendentes de Saul para os Gibeonitas que queriam vingança contra a atitude de Saul para com eles no passado.
E observamos a grandeza de Davi desabar: ele poderia ter entregado Mefibosete, mas ele era filho de Jônatas... Poderia entregar as duas mulheres filhas de Saul: Merabe e Mical. Mas não o fez. Então, Davi se transforma na mortalha destes sete homens e os deixa enforcar sob suas ordens e não autoriza o enterro. E Rispa vigia os corpos por quase seis meses, sem comer, dormindo sobre um pano de silício, para que nenhuma ave ou fera do deserto pudesse se alimentar daqueles corpos que, para ela, eram sagrados.
Davi, o poeta que fazia poesias e salmos, fez para os descendentes de Saul um réquiem em carne viva. Rispa, no sistema Figurativo Bíblico, tão bem estudado por Erich Auerbach em seu livro Figura (Editorial Trotta, 1998) antecipa (prolepse) Maria, mãe de Jesus, vigiando, não um crucificado, mas sete enforcados numa estaca. Auerbach estabelece outras comparações tipológicas, porque, tenho certeza, não conhecida a estória de Rispa. A comparação tipológica é minha.
George Becker, 1875. Rispa protecting the bodies of her sons. Heroines of the Bible. Imagem: acervo de pesquisa de Salma Ferraz
Outra leitura de Rispa. Sem autoria (domínio público). Imagem: acervo Salma Ferraz
IHU – No livro que está preparando, a senhora trata de uma personagem que ganha uma nova versão. Quem é ela e por que surge essa outra versão? Por que ela é desprezada por todas as demais?
Salma Ferraz – Raabe. Está aí uma mulher respeitada, tanto no Velho como no Novo Testamento, amada pelos cristãos e tema de vários sermões e homilias, como exemplo de fé e serviço a Deus.
Se Raabe tivesse agido de outra forma, a história de Israel talvez fosse outra. Seu crime? Não é o de ter sido prostituta, algo comum em Israel, mas de ser traidora. Traiu seu povo na hora que ele mais precisava, ela estava onde não poderia estar: do lado de fora das muralhas de Jericó, quando, se quisesse realmente ser uma heroína, deveria morrer dentro dos muros, morrer ao lado do seu povo.
Aliás, causa-me horror ver evangélicos e católicos realizarem campanhas evangelísticas e jejuns como o nome “Cerco de Jericó”. Quanto mau gosto! Piedade! O cerco foi um genocídio! Não sobrou ninguém, pedra sobre pedra. É bom lembrar que toda terra prometida tem dono. E os povos de Canaã foram quase totalmente massacrados e extirpados. Os poucos que sobraram nunca deram trégua a Israel. Quando criança na Igreja, na escolinha sabatina, cantávamos a plenos pulmões um hino: “Vem com Josué lutar em Jericó”. Que lavagem cerebral!
E esta traíra entrou para a genealogia de Jesus. No meio da genealogia do evangelista Mateus, ela é umas das quatro citadas pelo nome: Tamar, Raabe, e aquela que foi mulher de Urias (Basebá) e Rute. E, ainda, e uma das únicas poucas mulheres a entrar na Galeria da fé de Hebreus 11, ao lado de Sara. Está no panteão da glória.
Constato que Dalila é uma das mulheres mais odiadas do Velho Testamento, a encarnação do mal. Basta vê-la retratada em pinturas famosas, porque fez o que fez com Sansão, um juiz fraco, que nunca julgou nada, acéfalo, destrambelhado que vivia metido em orgias com mulheres. Do ponto de vista ético, Dalila é superior a Raabe, porque foi fiel ao seu povo que estava sendo invadido.
Meu texto sobre Raabe termina assim:
“As trombetas de Jericó soarão para sempre meus ouvidos. Este será o último som que ouvirei até na hora da minha morte. Não há mercador de passados e este será meu eterno talvez!” (Trecho de FERRAZ, Salma. Bíblia apócrifa feminina )
Raabe. Imagem: acervo de pesquisa de Salma Ferraz
Outra leitura de Raabe. Imagem: acervo de pesquisa de Salma Ferraz
IHU – O que essas mulheres do Antigo Testamento podem nos revelar e inspirar em nosso tempo?
Salma Ferraz – Elas conseguiram se destacar e abrir caminhos no mundo tribal e patriarcal, tecer sobrevivências, romper o silêncio, se fazer ouvir, a ponto de merecerem o relato dos escribas homens, isto há mais de dois mil anos, portanto, certamente servem de inspiração para nossas lutas atuais. As condições hoje são muitos melhores que naquela época, principalmente depois do movimento feminista que começa no século XIX e início do século XX, depois tem seu segundo momento, em 1960-1970, e seu terceiro movimento em 1990 até hoje.
É neste contexto que nasce a Teologia Feminista, que se coloca à frente na luta contra uma teologia machista e patriarcal. A teóloga, freira e feminista Ivone Gebara afirma que “a teologia feminista é parte de uma revolução cultural que ainda está em seus primeiros passos”. Muito já foi feito, mas ainda é pouco. Temos que avançar contra a misoginia, o assassinato frequente de mulheres no ocidente e no oriente, a execrável extirpação do clitóris para que a mulher nunca tenha prazer, ainda é uma prática comum em 28 países africanos, grupos na Ásia e no Oriente médio. Esta violência atinge cerca de 3 milhões de mulheres e meninas a cada ano. Olhar para trás, com os pés no presente e os olhos no futuro.
Em março deste ano, o Conselho Nacional de Refugiados do Brasil acolher meninas e mulheres que tenham sido vítimas da mutilação genital, na condição de refugiadas. Isto é violência de gênero. A decisão deste governo deve ser comemorada, pois passamos quatro anos com um governo abertamente misógino.
IHU – Quanto à exegese e aos estudos bíblicos, a senhora considera que ainda vivemos um reinado de uma certa hermenêutica patriarcal? Como superar?
Salma Ferraz – Quase que totalmente patriarcal. É bem conhecido o caso da teóloga alemã Uta Ranke-Heinemann (1927-2021) que, para mim, foi e é uma das maiores teólogas do mundo. Ela perdeu uma cátedra de teologia Universidade de Heidelberg ao publicar seu livro Eunucos pelo reino de Deus (1988).
Uta Ranke-Heinemann e sua obra que a fez perder a cátedra de teologia. Foto: Wikipédia/divulgação
Nesta obra, ela tece pesada crítica revelando uma Igreja Católica de homens brancos, celibatários, que tem o poder de dizer o que é natural ou não na sexualidade, que tem horror ao prazer sexual, que domina os corpos femininos, que legisla sobre nossos corpos (concepção, divórcio, casamento, segundo casamento, homossexualidade, etc.). Ela efetua uma crítica virulenta desde Santo Agostinho, o ilustre santo, que, após um período como amante dos prazeres carnais, passou a não falar com uma mulher sem estar acompanhado, até o conservador Bento XVI. Sua maior heresia foi apontar que o dogma de Maria Virgem Imaculada só trouxe prejuízo às mulheres, como modelo inalcançável. Como ser mãe e virgem? É a própria Uta Ranke quem, em seu livro, afirma que “Jesus foi um amigo das mulheres, o primeiro e praticamente o último amigo que as mulheres tiveram na Igreja”.
Outras hermenêuticas precisam ter seu espaço dentro do cristianismo, caso contrário as Igrejas se tornarão espaços para bibliotecas, como já vem ocorrendo em vários países europeus.
Aos leitores, indico o inspirador livro Banquete dos excluídos, de Marcio Retamero.
Banquete dos excluídos, de Márcio Retamero (Metanoia Editora, 2018)
IHU – Quem são as mulheres “diferentes” para os padrões da época na genealogia de Jesus?
Salma Ferraz – Estamos falando das matriarcas que são as ancestrais do Messias: Tamar (patriarcas), Raabe (conquista de Jericó), Rute (tempo dos Juízes), Batsebá (tempo do reinado de Davi). Tamar, que gerou do ex-sogro; Raabe, ex-prostituta e traidora do seu povo; e Batsebá, a adúltera que enlouqueceu Davi. Por ela, o rei ungido mentiu, tramou e manchou suas mãos de sangue ao mandar matar Urias, colocando-o na frente da batalha sem proteção. Na velhice do rei, ela usou de artimanhas para que Salomão, seu filho, que não era primogênito, assumisse o trono.
Claramente os evangelistas não suportam Batsebá, evitam falar seu nome (Davi gerou Salomão daquela que fora esposa de Urias) e Rute seduziu astuciosamente Boaz. Portanto, o comportamento de Jesus não poderia ser diferente com as mulheres, tendo esta ascendência de mulheres “diferentes” em sua genealogia. Ele incluiu as mulheres, as marginalizadas, as transgressoras em seu ministério. Há um livro com este nome: Marginalizadas e transgressoras, as mulheres da genealogia de Jesus, de Liniker Xavier.
Marginalizadas e transgressoras, de Liniker Xavier (Editora Reflexão, 2018). Divulgação
Foi muito difícil achar uma árvore genealógica que citasse as mulheres. Todos os gráficos só trazem os homens. Coisa interessante: toda genealogia é masculina e no fim Maria não gerou de um homem, mas do Espírito Santo.
Mulheres na genealogia de Jesus | Imagem: acervo de pesquisa de Salma Ferraz
IHU – A senhora tem sempre dito que Jesus é um protofeminista. Gostaria que recuperasse essa perspectiva e detalhasse por que faz essa afirmação.
Salma Ferraz – Atente para a benção matinal dos judeus: Obrigado, Senhor, por não me teres feito mulher. Este era o contexto de Jesus, que era judeu. Porém, ele andava rodeado de mulheres de conduta duvidosa. Nunca se preocupou com o que falavam dele, para escândalo dos seus discípulos. Salvou uma adúltera (que não era prostituta, nem Madalena) de apedrejamento, deixou ser ungido na casa de Simeão por uma pecadora (que também não era Madalena) vivia rodeados de discípulas, teve como discípula amada uma mulher: Madalena, que estava ao pé da Cruz e foi a primeira a vê-lo ressuscitado; tinha tertúlias com mulheres, como a samaritana no poço e a mulher sírio-fenícia (metáfora dos cachorrinhos).
Com a samaritana a conversa foi longa, com a sírio-fenícia um diálogo complicado. Repito: ele ressignificou o papel das mulheres do seu tempo, foi o melhor amigo delas. Uma pena que depois tudo mudou com a romanização do cristianismo. Observe o texto bíblico: “Naquele momento, os seus discípulos voltaram e ficaram surpresos ao encontrá-lo conversando com uma mulher. Mas ninguém perguntou: ‘Que queres saber?’ ou: ‘Por que estás conversando com ela?’” (São João 4:27-29)
Se surpresos estavam, calados ficaram, porque sabiam que levariam uma resposta enviesada do Mestre, se fizessem comentários.
A frase “Nem eu te condeno” (João 8:11) é lema, a bandeira do protofeminista Jesus. Ah como ele era diferente de Santo Agostinho!
Leitura de Jesus e a mulher samaritana. Acervo de Salam Ferraz
IHU – A senhora também aponta que há o Paradoxo dos Evangelhos. Mas qual é?
Salma Ferraz – O termo não é meu, mas eu o amplio. Este termo foi criado por Jamie L. Manson [em artigo publicado no sítio do jornal National Catholic Reporter e traduzido por esta revista em 28.07.2012]. O que até hoje passa despercebido é o fato de que as mulheres viram o que os doze discípulos confusos e inseguros com a identidade real de Jesus, e as autoridades, tentando combater mais um profeta, não viram: Jesus era o Messias prometido. E Manson afirma que Maria Madalena e a Samaritana viram isto.
Mas amplio o Paradoxo dos Evangelhos, que segundo minha ótica é bem mais complexo que o apontado pelo autor: nenhum discípulo ungiu Jesus como a Mulher da Unção (usurpando uma prerrogativa própria dos profetas e sacerdotes), nenhum deles viu o que Jesus escreveu na areia como a Mulher Adúltera (única escritura crística), nenhum deles foi a primeira testemunha da ressurreição como Maria Madalena (optaram pelo caminho para Emaús). Também, em sua visão restrita da missão de Jesus, nenhum deles ajudou a alargar a mesa de Abraão como a Mulher Cananeia com o qual Jesus teve uma tertúlia ríspida e difícil, e a nenhum deles o Mestre entabulou uma longa conversa confessando ser ele o Messias, como a Mulher Samaritana. São boas novas para as mulheres.
E, mesmo assim, não se ordenam mulheres na Igreja Católica Romana. Eis aqui o segundo paradoxo.
Jesus e a Mulher Cananeia, de Ludovico Carracci. Acervo de pesquisa de Salma Ferraz
IHU – A senhora considera que as mulheres são injustiçadas nas narrativas do Novo Testamento? Qual seria a mulher mais injustiçada e por quê?
Salma Ferraz – Sim, basta ver o que escrevi sobre o Paradoxo dos Evangelhos, incluindo o desaparecimento das mulheres que foram discípulas e apóstolas, fundadoras de igrejas. Houve um apagamento destas mulheres porque o Império Romano era machista. Também na época em que foi oficializado o cânon do Novo Testamento, creio que o papel das mulheres foi atenuado e as mulheres líderes foram abafadas.
A mais injustiçada de todas foi Maria Madalena, que foi transformada de Discípula Amada, Apóstola dos Apóstolos, termo dado por Hipólito de Roma (170-236), em uma meretriz quase apedrejada por adultério. Nunca nenhuma meretriz foi apedrejada na Bíblia. Madalena não foi meretriz, muito menos adúltera. Aliás, meretrizes não eram apedrejadas.
Tudo isto começou por um erro de exegese do Papa Gregório Magno (540-604). Ela é citada nominalmente 17 vezes nos Evangelhos, estava aos pés da Cruz e foi a primeira a ver Jesus Ressurreto e saiu espalhando esta mensagem aos discípulos. Numa sociedade patriarcal, uma mulher viu Jesus e ele a incumbiu de proclamar as boas novas. Era muita coisa para a cabeça dos discípulos naquela época. A pesquisadora Wilma Steagall de Tommaso, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, afirma que “crentes ou ateus, todos conhecem alguma história sobre Maria Madalena”. Ela é uma das santas mais amadas da história cristã. Não falarei mais sobre Madalena (lendas, dinastia dos Merovíngios, Legenda Áurea, evangelhos apócrifos etc.) porque esta revista já publicou dezenas de artigos sobre ela. Felizmente, depois de 2000 mil anos de ultraje, foi resgatada, e seu rosto tríplice, ou mais que isto (adúltera, meretriz, Mulher da Unção da casa de Simeão, de Maria, irmã de Marta e Lázaro que também o ungiu), ganhou um só contorno.
Em 1969, os predicativos nada honrosos de “penitente” e “pecadora” foram excluídos da seção dedicada a ela no Breviário Romano. Em 2016, o Papa Francisco transformou o seu dia (22 de julho) em festa litúrgica (FERRAZ, Salma. Das páginas da Bíblia para a ficção. Maringá: EDUEM, 2011).
Santa Ceia com Maria Madalena, de Vera Sabino. Acervo particular de Salma Ferraz