O que é uma economia para a vida? A utopia e a prosperidade para repensar o porvir. Entrevista especial com Felwine Sarr

“As sociedades precisam se apropriar de seu presente e de seu futuro e investir no sentido”, aconselha o pesquisador senegalês

Foto: Unsplash

Por: Edição: Patricia Fachin | 28 Julho 2022

 

A crise civilizacional da nossa era, ao mesmo tempo em que abrange diversas dimensões da vida social, traz consigo a "necessidade de repensar e reiventar todas as formas de vida" e resgatar a "consciência utópica" em relação ao futuro e ao porvir, não no sentido de "simplesmente se limitar à consciência utópica, mas, sim, traduzi-la em mudanças societais". Essa foi uma das teses defendidas por Felwine Sarr, professor de Estudos Românicos na Duke University, na Carolina do Norte, nos EUA, durante a conferência virtual intitulada "Afrotopia, Ética e Economia. 'Habitar o mundo' no Antropoceno", promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no Ciclo de Estudos Decálogo sobre o fim do mundo, em 20-07-2022.

 

Na conferência, que publicamos a seguir no formato de entrevista, o pesquisador senegalês reflete sobre a utopia, considerando de modo particular a realidade africana, e argumenta que a "abertura necessária para o futuro" depende da elaboração de uma "economia do ser vivo" que tenha como finalidade todas as formas de vida e seja, igualmente, uma resposta à crise ecológica. "Como repensar uma economia cuja finalidade inclui não só os humanos, mas toda a ordem do vivente em seu conjunto? Isto é, no mesmo movimento que responder às necessidades do ser humano, responder às necessidades dos seres vivos e favorecer a regeneração dos recursos".

 

Segundo ele, a maior dificuldade é encontrar maneiras de colocar em prática modelos econômicos que já são teorizados. "Esse outro ponto é como fazer e como criar uma economia do vivente para que não fique apenas como uma bela ideia. Do ponto de vista da teoria e da práxis, como poderíamos fazer para propor uma outra ordem? Precisamos produzir uma economia que não afete negativamente as ordens sociais, ambientais e relacionais. Um modelo econômico, portanto, regenerativo, radicalmente novo, que afirma a possibilidade de desenvolver uma relação simbiótica, ou seja, uma relação de crescimento mútuo entre sistemas naturais prósperos e uma atividade humana intensa em todos os campos da economia. Portanto, uma economia que garanta uma simbiose entre as diferentes ordens. Quando cresce a ordem econômica, crescem também outras ordens: a social e a ecológica. Então, a ordem econômica não deve crescer em detrimento das outras ordens. Nessa simbiose há uma relação de crescimento mútuo", afirma.

 

No campo teórico e da pesquisa, adverte, é preciso insistir em um "trabalho epistemológico" "não somente na ordem do saber econômico, mas também dos imaginários no sentido de retrabalhar sobre a ideia do que seria uma economia próspera e a própria prosperidade".

 

Felwine Sarr (Foto: Reprodução)

 

Felwine Sarr possui doutorado em Economia pela Universidade de Orléans (França). Atualmente é professor de Estudos Românicos na Cátedra Anne-Marie Bryan, na Duke University, na Carolina do Norte.

 

É editor do Journal on African Transformation, editado pelo Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África - CODESRIA e pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a África - UNECA.

 

É autor de, entre outros, Dahij (Gallimard, 2009), 105 Rue Carnot (Mémoire d’Encrier, 2011), Méditations Africaines (Mémoire d’Encrier, 2012) e Afrotopia (Philippe Rey, 2016).

 

Organiza, desde 2016, com Achille Mbembe, os Ateliers de la Pensée, em Dacar, que teve em 2019 a sua terceira edição, ponto de encontro e de debate entre acadêmicos e artistas africanos e da diáspora africana sobre as transformações do mundo contemporâneo.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como compreende as múltiplas crises da nossa era?

 

Felwine Sarr - O ponto de partida de todos nós, em nossas preocupações, do ponto de vista de universitários, cidadãos e ativistas, é que estamos vivendo em um momento de crise ecológica e planetária que tem várias formas, com uma dimensão econômica e ecológica. Também tem uma crise do político, da mobilidade. Chamo isso de crise civilizacional por abranger várias dimensões. Nesse contexto há uma necessidade de repensar e reiventar todas as formas de vida: econômica, política, cultural e ecológica. Há também uma crise da modernidade em relação ao futuro, ao porvir e, parece-me, é necessário, diante dessa crise em relação ao tempo e ao futuro, ter uma consciência utópica, mas não simplesmente se limitar a ela, mas, sim, traduzi-la em mudanças societais.

 

A questão é: como passar de uma mudança utópica para mudanças na vida das sociedades? E qual é o lugar da consciência utópica? Os imaginários, é claro, mas também as epistemologias, as ordens do saber, do pensamento e da pesquisa.

 

IHU – Como tem pensado sobre a transição da utopia para a mudança efetiva?

 

Felwine Sarr - Vou articular o meu argumento em dois eixos. Num primeiro momento, quero pensar sobre a reabertura necessária para o futuro. Num segundo momento, quero pensar em uma economia do ser vivo para tentarmos responder à crise ecológica e a tudo isso que está posto.

 

 

Presenteísmo, a urgência do tempo presente

 

O advento da modernidade ocidental teve como característica principal a promessa de um futuro marcado por um progresso em todas as áreas da vida social. Nesse regime de historicidade, que denominamos de modernidade, o porvir foi marcado por uma promessa de bem-estar superior. Mas a modernidade viu a fé no progresso, resultando de uma marcha ascendente da história humana, diminuir. Depois da grande depressão, das duas grandes Guerras Mundiais, de Auschwitz, de Hiroshima, e do Gulag, a metanarrativa do progresso da humanidade, trazida pela razão, arrefeceu. As crises e múltiplas distopias que acompanharam o reino da razão instrumental acabaram por solapar a crença em dias melhores e levaram o Ocidente a uma relação com o tempo caracterizada por uma hipertrofia do presente, a qual o historiador François Hartog chama de presenteísmo, uma urgência do tempo presente que produz um homem instantâneo e que dá um peso maior ao presente relativamente a outras modalidades de tempo, como o passado e o futuro.

 

 

Pós-modernidade

 

A pós-modernidade tornou-se o tempo marcado pelo futuro sem promessas, se não aquele de evitar as catástrofes múltiplas que promete a crise ecológica, a desvinculação das sociedades, as catástrofes sanitárias e as inseguranças crescentes. O fim decretado das utopias, desde o fracasso das grandes narrativas que prometiam o advento de tempos novos, como comunismo e socialismo, parece caracterizar a nossa época. As únicas antecipações que parecem ainda operantes são aquelas de um futuro tecnológico ou de um pós-humanismo.

 

 

IHU – Como tem se pensado sobre o futuro neste contexto, especialmente nos países mais pobres?

 

Felwine Sarr - Essa questão do futuro, quando levantada em sociedades consideradas como atrasadas em relação à marcha normal do mundo, como a África e a América Latina, é feita de forma diferente. Nessas sociedades consideradas atrasadas, continua-se fazendo uma promessa de um desenvolvimento econômico, de uma democracia e de uma modernidade societal por vir ou a ser conquistada. As teleologias retroativas colocam essas sociedades em uma relação de mimetismo societal e as mantêm no mito de uma marcha linear da história e do progresso. Essas sociedades são forçadas a vencer etapas e alcançar estados societais que outras já alcançaram, como se o único destino possível fosse o de reproduzir o único modelo societal ocidental que se oferece como exemplo. Suas diferenças, suas realidades sócio-históricas, suas temporalidades, sua relação com o presente, passado e futuro, são negadas e lidas sob a única ótica do atraso. É neste contexto que gostaria de refletir o que significa, para esses países, reabrir o futuro e, para a África, construir uma afrotopia. Não me refiro apenas à questão do continente africano e à afrotopia; quero ampliar isso para um espaço maior do que o continente africano.

 

Afrotopia

 

No caso dessas nações, a questão de pensar o seu destino, portanto, o presente e o futuro, é crucial. É importante pensá-los mobilizando seus universos mitológicos, sua história, suas referências culturais, seu capital simbólico a partir de um gesto decolonial. Nesta empreitada, trata-se menos de distinguir-se num retraimento identitário ou de pregar uma pureza imaginária, e mais de basear-se em recursos culturais existentes para deles extrair os elementos vitais. Não podemos conceber um futuro fora desse solo; é preciso dar o direito à pluralidade das histórias. É impossível conceber uma história única para todas as sociedades humanas. Trata-se de sair do eurocentrismo apegado aos esquemas lineares e progressistas da história bem como da narrativa mestre da Europa que condena todos os outros povos do mundo a tomar o caminho traçado por este povo ou a ser uma triste repetição. Admitir a pluralidade dos modos de ser coletivos, das formas de vida societal, das modalidades de produção de ser dessas culturas, bem como a possibilidade de vários mundos no mundo.

 

 

Presente e contemporaneidade das sociedades africanas

 

Antes de conceber as questões ligadas ao futuro, vamos nos deter um pouco sobre o presente e o modo como a contemporaneidade das sociedades africanas é retratada. O presente do continente africano é muitas vezes representado sob a óptica da distopia e da falta. Aos africanos são aplicadas as categorias de ação do bem-estar social que diz respeito ao economicismo que desde o século XVIII usurpou o léxico da avaliação do bem-estar social. As dimensões relativas à cultura, à psicologia, ao relacional, à qualidade dos vínculos, ao convívio, estão geralmente ausentes no léxico.

 

Por que é necessário reabrir o futuro? Para sair do tempo considerado sem promessa e construir sentido. Para isso, as sociedades precisam se apropriar de seu presente e de seu futuro e investir no sentido. E a pergunta é: podemos fazê-lo sem ativar o mito do progresso? Será que isso é possível? Pois o tempo por vir sempre é um tempo do surgimento das possibilidades, mas essas possibilidades são portadoras de dinâmicas contraditórias. Notamos concomitantemente avanços, mas também retrocessos como a crise ecológica, genocídios, formas de dominação e de destruição. O futuro está simplesmente exposto a esses antagonismos.

 

 

Futuros inéditos

 

Em segundo lugar, é difícil configurar os futuros pois estes são inéditos e não advêm em formas conhecidas, mas podemos ser portadores de um desejo, de um bem-estar maior e coletivo, de uma intencionalidade, de uma energia potencial. Cuidar da relação com o ser vivo, reinvestido de qualidade, nos abre o futuro.

 

IHU - Quais são os desafios e as dificuldades nesse sentido?

 

Felwine Sarr – A questão é: como inventar um outro regime de historicidade que irrompa com uma visão teleológica da história, por um lado, e que, por outro lado, acabe com o presenteísmo que é uma atrofia do passado e uma negação do futuro? O presenteísmo, decretando o fim da história, tem uma consequência não só de aniquilar qualquer futuro, mas de tornar inútil qualquer possibilidade de ação e perpetuar o estado presente das coisas. Uma via, um caminho possível, consiste em historicizar os acontecimentos, mostrando o que parece ser natural, o que parece ser estabelecido, mas que é produto de um processo complexo de uma história, movimentos, dinâmicas, que resultam de uma construção social e que pode ser reconstruída. Assim, apesar da dificuldade de configurar o futuro, é necessário construir uma consciência utópica.

 

 

IHU – Como compreende a utopia? Qual sua potencialidade hoje?

 

Felwine Sarr – A utopia é a afirmação de um desejo de alteridade social, é uma forma de impulsão obstinada em direção à liberdade e à justiça e, apesar de todas as derrotas e fracassos, renasce na história e volta à tona mesmo em momentos ruins da catástrofe e resiste como se a própria catástrofe suscitasse uma nova utopia. O essencial para a utopia não é tanto imaginar uma sociedade feliz, que tende à perfeição, e, sim, subtrair-se ao real, à sua retificação e petrificação. A função da utopia é levantar esse peso do real ou aquilo que se dá como tal. Assim, a utopia desloca o real e o mobiliza para entrever para além desse chumbo e desse peso daquilo que chamamos real. A utopia, portanto, é uma forma de colocar em parênteses o real da ordem estabelecida, que constitui primeiramente utopia como negativa: seria a negação do que parece ser natural. Não se trata de produzir imagens positivas e, sim, abrir brechas no tempo histórico. Essa abertura de brechas, esse deslocamento, produz efeitos que não são controláveis. O real, assim abalado, revela-se em linhas de fuga que ocultava. A utopia rejeita a ideia de um horizonte insuperável por ser indeslocável. Esse deslocamento do real, do horizonte, não vem apenas de um indivíduo, e, sim, provém do coletivo. Walter Benjamin diz que a utopia é um sonho do coletivo, e se esse sonho tem um lugar, ele pode transformar o real em uma nova realidade e oferecer uma nova manifestação deste.

 

 

Todas as teologias do progresso que não levavam em conta o continente africano viam a África apenas como um objeto. A África precisava e precisa se tornar um sujeito, precisa elaborar suas metáforas do futuro e criar uma conversão utópica. Precisamos dizer: é essa sociedade que queremos, é esse bem-estar que queremos, e é desse modo que articulamos a economia, o político, a ecologia espiritual e são essas as formas de vida que queremos criar e inventar. Todas essas formas de vida a serem reinventadas, me parece, precisam de uma economia urgente a ser reinventada. São muito importantes as possibilidades de reproduzir as condições de vida no planeta.

 

Afrotopia, Ética e Economia. "Habitar o mundo" no Antropoceno:

 

IHU - O que é a economia do vivente? Por que isso é essencial na afrotopia ou numa nova forma de habitar o mundo?

 

Felwine Sarr – É fundamentalmente necessário repensar os modos de reprodução econômica e reconstruir e articular uma economia do vivente. É necessário repensar os fundamentos axiológicos da economia dominante. Eu parto de duas constatações: a primeira é que vivemos em uma economia mundo cujo metabolismo afeta negativamente a biosfera, uma economia que é da entropia. A segunda constatação é uma economia que faz uma experiência das crises das finalidades. No século XVIII, essa finalidade era satisfazer e responder às necessidades do indivíduo e a maior parte destes não conseguia satisfazer suas necessidades na dignidade. Como pensar uma ordem econômica que, metabolizando os recursos da biotopia, preserva a perenidade e a capacidade de regeneração, e como evitar a entropia do vivente? Esta é uma pergunta.

 

A segunda pergunta é: como repensar uma economia cujas finalidades inclui não só os humanos, mas toda a ordem do vivente em seu conjunto? Isto é, no mesmo movimento que responde às necessidades do ser humano, responder às necessidades dos seres vivos e favorecer a regeneração dos recursos. Para isso, é preciso uma reflexão sobre axiologia do sistema e a teoria prática.

 

 

Já propomos repensar tudo isso e indicar caminhos para a prática. Desde a Revolução Industrial, entramos em uma era em que a atividade humana se tornou a maior exigência geológica e provocou transformações profundas no ecossistema terrestre. O antropoceno se caracteriza pelo fato de que as atividades humanas acarretam uma destruição da biodiversidade e um crescimento generalizado da entropia. A economia-mundo, a economia clássica ou neoliberal, joga na bioesfera mais resíduos do que ela pode metabolizar, e seu metabolismo afeta a biosfera negativamente. Tudo isso vai acelerar a carbonização do ser vivo. Ela impõe o ritmo que não é o da regeneração – e o perigo a que são expostas as condições de vida já foi anunciado em vários relatórios. Hoje, 50 anos depois, isso já é uma realidade. Diferentes relatórios científicos tratam disso. Para dar um exemplo, na África, o lago Chade secou e perdeu 30% de sua superfície em 40 anos. ¾ dos deslocamentos [da população] se dão em relação e por causa do desiquilíbrio climático. ¾ dos deslocamentos estão ligados a catástrofes climáticas

 

(Foto: Reprodução | Fórmula Geo)

 

Economia em crise

 

A segunda constatação é que a economia está em crise e ela não tem só um sintoma das últimas crises que tivemos. É uma ordem que não cumpre mais as suas funções e põe em perigo os seres humanos. Um dos sintomas são as desigualdades de renda no mundo. Além disso, também há uma crise de finalidades que reside na incapacidade de a maior parte dos seres humanos ter suas necessidades satisfeitas nesse sistema. A ordem econômica não cumpre a sua missão fundamental. Se lermos textos de filosofia moral do século XVIII, vemos que a economia tinha como objetivo aumentar o bem-estar dos seres humanos, mas hoje a maior parte dos indivíduos no planeta tem dificuldade de ter suas necessidades satisfeitas: as pessoas não têm condições de se alimentar descentemente. Eu não vou tratar muito disso, mas gostaria de retomar a questão dos danos causados pelo sistema dominante. As desigualdades de renda dentro de países ricos e entre os países de baixa renda estão ligadas ao sistema de produção de valor agregado da economia do mundo e é o próprio sistema – e o modo como ele é arquitetado – que produz essas desigualdades no modo de distribuição.

 

A economia-mundo é estruturada por uma captação na redistribuição desigual do valor agregado e das inovações tecnológicas. Há também uma concorrência desleal dos mercados e dos produtores dos diferentes locais do mundo e isso resulta em situações de monopólio, de assimetria e de dominação por parte dos países industrializados. Em segmentos inteiros dessa economia, a globalização levou a uma privatização dos ganhos e das trocas e a uma mutualização dos custos e dos riscos: os custos são compartilhados, mas os ganhos vão para determinados países. Estamos vivenciando uma economia que é capaz de produzir bens de consumo em grande quantidade, mas provocando uma dificuldade de regeneração dos recursos naturais. É preciso repensar os fundamentos estruturais dos modos de funcionamento e suas finalidades.

 

 

IHU - Com o que se pareceria uma economia do vivente?

 

Felwine Sarr – Uma economia do vivente é, primeiramente, aquela que não afeta negativamente a ação do vivente. Seria uma neguentropia. Uma das primeiras coisas que poderíamos fazer é basear uma economia do vivente em uma reavaliação da utilidade de todos os setores da vida econômica em relação à contribuição para a saúde, para os cuidados, o bem-estar, a coesão social, a preservação do vivente, para o perenizar da vida. Não se trata de pregar uma limitação da vida econômica à satisfação das necessidades biológicas fundamentais, como alimentar-se e vestir-se. As necessidades da mente e da cultura são essenciais para as nossas sociedades, mas precisamos indagar sobre a utilidade e a necessidade dos bens produzidos, o seu modo de produção, seus impactos sociais e ambientais. Num segundo ponto, poderíamos inverter a escala problemática de valor.

 

 

IHU – A experiência da pandemia de Covid-19 joga algumas luzes nesse cenário?

 

Felwine Sarr – Temos lições a tirar da Covid-19. Os enfermeiros, médicos e todos que trabalhavam com saúde e questões fundamentais para a nossa sociedade têm remunerações baixas em relação ao capital. O sistema atual paga mal as profissões que contribuem para perenizar a vida e cuidá-la. Então, há uma necessidade de reavaliar o valor do trabalho e a sua remuneração para essas categorias. Isso poderia se basear na contribuição dessas atividades econômicas para a manutenção da vida, para a inteligência coletiva da produção do saber e da cultura espiritual. Poderíamos inverter a escala de valores e de remuneração do trabalho.

 

Com o que poderia se parecer essa economia do vivente? Com uma economia neutra em carbono, que favorece uma neutralidade em carbono. E também com uma economia cujo ritmo de produção estaria em harmonia com os ritmos de regeneração dos recursos da bioesfera. Além da necessidade de satisfazer as necessidades das comunidades humanas, também seria uma economia que não seria exclusivamente atropocentrada. Quando pensamos a ordem econômica, pensamos em necessidades, recursos, sociedades com demografias, geografias, territórios. Quais são os modos de produção que podemos utilizar para satisfazer as necessidades? Devemos levar em conta a ordem do vivente na produção econômica. As necessidades dos seres vivos têm de ser levadas em conta. É preciso um exercício ecológico e mental para levar em conta as necessidades dos seres humanos e também de todos os seres vivos, portanto, não antropocentrada.

 

 

Finalidade do modo de vida econômico

 

Não podemos nos dar ao luxo de não indagar a finalidade do nosso modo de vida econômico e dos seus impactos. Esse outro ponto é como fazer e como criar uma economia do vivente para que não fique apenas como uma bela ideia. Do ponto de vista da teoria e da práxis, como poderíamos fazer para propor uma outra ordem? Precisamos produzir uma economia que não afete negativamente as ordens sociais, ambientais e relacionais. Um modelo econômico, portanto, regenerativo, radicalmente novo, que afirma a possibilidade de desenvolver uma relação simbiótica, ou seja, uma relação de crescimento mútuo entre sistemas naturais prósperos e uma atividade humana intensa em todos os campos da economia. Portanto, uma economia que garanta uma simbiose entre as diferentes ordens. Quando cresce a ordem econômica, crescem também outras ordens: a social e a ecológica. Então, a ordem econômica não deve crescer em detrimento das outras ordens. Nessa simbiose há uma relação de crescimento mútuo. Hoje, temos uma economia que, quando cresce, reduz a vida dos seres vivos. Crescimento não é um termo adequado porque é um “mau crescimento” que faz com que decresçam todos os seres vivos. Então, essa ordem econômica deve trazer consigo o crescimento das outras ordens. Para isso, o critério para a produção, para avaliar esta ordem, é ver como essa ordem simbiótica pode permitir o crescimento de todas as outras.

 

 

IHU - O que isso significa?

 

Felwine Sarr – Mudar de discursividade os critérios, os indicadores, as cadeias e escalas de valores. Hoje, se faz uma soma dos valores agregados, mas sabemos que o processo de crescimento do PIB não leva em conta custos ambientais, custos humanos, custos sociais, e estamos com uma economia do mau crescimento que nos traz um falso sistema em que não contabilizamos os verdadeiros custos ativos e passivos. Não se trata somente de, nos preços do supermercado, acrescentar os custos do meio ambiente. O sistema atual favorece uma entropia.

 

A questão da economia do vivente é: o que é uma economia para a vida? Esse é o trabalho epistemológico que temos que fazer não somente na ordem do saber econômico, mas também dos imaginários no sentido de retrabalhar sobre a ideia do que seria uma economia próspera e a própria prosperidade. Então, temos o pensamento teórico, de um lado, e a representação e os imaginários, de outro lado. Precisamos de uma mudança de paradigma que induza a uma mudança de regime normativo, uma análise, avaliação e práticas. Os indicadores que dispomos não são adequados para avaliar qual seria uma boa economia para os seres humanos e a biosfera. As práticas diferentes daquelas que são promovidas pela economia dominante já existem: a agroecologia, circuitos curtos, decrescimento, mas não criam um sistema; são iniciativas isoladas.

 

 

Projeções

 

Eu quero apresentar algumas questões que precisam ser resolvidas e para as quais não tenho solução. A primeira é o que precisamos fazer. Precisamos sistematizar uma nova ordem econômica global, uma economia alternativa, retomando novos paradigmas, uma economia do vivente, simbiótica, que não carbonize o ser vivo. Será que devemos homogeneizar essas práticas ou devemos considerar uma pluralidade? Devemos responder a esse sistema global através de um sistema global alternativo ou será que devemos criar sistemas que interajam e coabitem? Uma cultura de baixa frequência homogeneizadora ou uma cultura de alta frequência que coabite e gere trocas?

 

Segunda pergunta: será possível mudar a trajetória antes do colapso anunciado? A pergunta é: como mudar de trajetória? Será que isso é possível? Isso traz a questão de saber qual transição é necessária. Evidentemente uma transição ecológica e energética, mas também política porque os imaginários do político são aqueles que escolhem e que implementam. A pergunta é: por mais que façamos essas constatações, quais sistemas de incentivo devemos criar para alcançarmos uma mudança de paradigma séria da ordem global? Apesar de tudo que sabemos, continuamos vivendo na mesma ordem econômica e sabemos muito sobre a sustentabilidade, a perenidade e sobre os danos causados à biosfera. Precisamos de uma ordem alternativa e, apesar de tudo isso, temos dificuldade de garantir uma transição e uma mudança de visão.

 

 

Pensando no papel da pesquisa, os pesquisadores em economia, ecologia e ciências humanas, assim como os artistas, precisam produzir sentido e imaginários com o papel de repensar, diante dessas catástrofes anunciadas, novas formas de vida e se indagar sobre como serão essas novas formas de vida e como torná-las sustentáveis, reproduzi-las e dar vida, forma e conteúdo a elas, torná-las ativas e pensar a perenização da vida e também o crescimento da sua qualidade e intensidade de modo que não seja apenas para retardar o fim do mundo, mas para pensar qual será a qualidade e a intensidade da vida.

 

Como garantir essa intensidade e qualidade? Como podemos desautomatizar os gestos econômicos? Quando pensamos nesse gesto, esquecemos de seus impactos. Nós podemos fazer um gesto ecológico na Inglaterra, mas vamos devastar o território africano, depositando baterias antigas e devastando suas populações? Não podemos devastar o resto do mundo. Cada gesto econômico está envolvido em um sistema que lhe dá sentido e precisamos desautomatizá-lo e, na medida do possível, precisamos ter consciência das implicações a longo prazo dos nossos gestos econômicos cotidianos. Precisamos reconscientizar esse gesto econômico. Convido a todos a pensar nessas questões.

 

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