05 Mai 2020
O filósofo, economista, músico e escritor senegalês Felwine Sarr acredita que a pandemia colocou o tempo novamente à nossa disposição. E, no entanto, ressalta, hoje nos sentimos incapazes de vivê-lo de uma forma diferente que a da “hiperatividade” cotidiana.
Conhecido por sua obra Afrotopia (2016), na qual denuncia os estereótipos sobre o continente [africano] e as soluções fabricadas para ele no estrangeiro, critica que a Organização Mundial da Saúde (OMS) tenha pedido, semanas atrás, que a África despertasse diante da crise de coronavírus, em vez de fazer a reivindicação para a Europa Ocidental, que “estava adormecida”.
Célebre também por seu ensaio “Habitar o mundo”, que analisa o planeta como zona de trânsito, considera que esta pandemia “é um grande momento de atuar para que o mundo mude”.
A entrevista é de María Rodríguez, publicada por El Tiempo, 03-05-2020. A tradução é do Cepat.
Considera que a pandemia de coronavírus “desnudou” o ser humano, seu modo de viver e de se relacionar com o mundo?
Revelou-nos o modo de organização social e sua vulnerabilidade. Revelou as desigualdades que existem em nossas sociedades, entre aqueles que têm os meios para viver a quarentena sem trabalhar um tempo e aqueles que são obrigados a trabalhar para ter o que viver a cada dia. Revelou as desigualdades no acesso aos cuidados. E talvez, o mais significativo é que mostrou nossa dificuldade de construir mundo.
Houve um sentimento das nações de se isolar, apesar da pandemia ser global, com a ideia de que cada um iria encontrar soluções em nível local. Houve, inclusive, uma guerra pelas máscaras entre os países ocidentais, o que revela um comportamento de falta de solidariedade, de egoísmo e a cultura das relações internacionais. Revelou também nossa relação com outros seres vivos. Uma das origens da pandemia é a redução da biodiversidade: desmatamos o planeta e criamos as condições de contato com animais que eram portadores do vírus para os quais não estamos preparados.
Fala-se muito do tempo, daquele que não tínhamos e daquele que nos sobra agora. Como vê nossa relação com o tempo?
O tempo estava orientado à economia capitalista, um tempo que nos obrigava a fazer uma quantidade de coisas sempre maiores, em uma unidade de tempo e, subitamente, a metade do planeta se encontra confinada, o trabalho está parado, exceto para aqueles que podem fazer o teletrabalho, e nos encontramos diante de nós mesmos, tendo que utilizar este tempo, que foi colocado novamente a nossa disposição. Estávamos na era da aceleração e a velocidade e com muito pouco tempo morto, com a saturação do tempo e uma cultura de ocupá-lo. E agora nos encontramos incapazes de viver o tempo de maneira diferente que a da hiperatividade e o trabalho, um tempo orientado para a produção de um objetivo ou de uma mercadoria.
Isto nos obriga a reduzir a velocidade e a aprender novamente a viver um tempo que está disponível e no qual surgem certas questões existenciais. Esta crise nos faz retornar a nós mesmos e, ao mesmo tempo, torna este tempo angustiante, mas também potencialmente feliz e fecundo. Para quem não havia aprendido a estar consigo mesmo, esta crise obriga a isso, a se enfrentar, a meditar e refletir.
A segunda coisa que me parece interessante é que havíamos planejado o futuro de antemão, nossas agendas estavam cheias para os próximos seis meses, as de alguns, para os próximos anos. Somos uma civilização do planejamento, é uma maneira de dizer que controlamos o tempo presente. Mas também somos uma civilização que quer controlar o futuro, e agora constatamos que não sabemos como as coisas vão evoluir, quando poderemos retomar uma vida qualificada como normal, e a incerteza retorna para nós. Esta indisponibilidade do tempo que virá se converte em angústia, e para mim é uma lição importante, no sentido em que temos que enfrentar as diferentes temporalidades.
A OMS pediu para que a África ‘desperte’ e se prepare para o pior. A África está adormecida? Ou era o mundo que estava adormecido e o vírus veio para despertá-lo?
Penso que o mundo dormia em sua relação com os seres vivos. Nossa civilização tecnológica e industrial havia esquecido que a vida nos foi oferecida e que não somos os donos e possuidores da natureza. Esquecemos que pertencemos aos seres vivos e que existem algumas regras que já não respeitamos. A Europa Ocidental estava adormecida porque quando o vírus surgiu na China e havia o risco de pandemia, países como França, Inglaterra e Itália o viram com superficialidade. Trump o chamou de “um vírus chinês”, como se fosse se limitar à China. E é muito interessante o que isto revela: uma dificuldade para aprender com os outros, com esta ideia de que o saber, o poder, o controle e a ciência são ocidentais.
A OMS pediu para que a África desperte, quando a África não estava adormecida. Alguns países, inclusive antes de ter uma dezena ou vintena de casos, tomaram medidas, fecharam fronteiras, proibiram agrupamentos. Se tomarmos um país como Senegal e os Estados Unidos, o vírus surgiu mais ou menos no mesmo período. E caso se observem as medidas que foram tomadas e em qual momento, vemos bem a diferença de reação. E enquanto que na América Latina havia países que negavam o vírus ou no México ainda não tinha feito nada, a OMS se dirigiu à África porque é o natural, o normal. Se há uma crise, é evidente que os africanos se verão afetados, que têm menos capacidades. Isto revela um consenso mundial que não questionamos. Os preconceitos sobre o continente estão tão profundamente arraigados que não se olha a realidade, ao estar totalmente convencidos da maneira como as coisas vão ocorrer.
A covid-19 expõe a necessidade de melhorar as infraestruturas sanitárias e a segurança alimentar ou de diversificar as economias africanas. Acredita que esta oportunidade será aproveitada ou é esperar muito?
Muitos países já colocaram em andamento respostas ao coronavírus, e o essencial de suas respostas é o estabelecimento de redes de seguridade social, distribuição de alimentos, de bens de primeira necessidade e medidas para os mais vulneráveis. Espero que estas medidas sejam o embrião de uma reconstrução dos sistemas de saúde, de educação e de cuidados e que aproveitemos a oportunidade da crise para, ao fim, termos Estados que olhem para o bem-estar do maior número de pessoas. Hoje, em plena crise, o mundo todo percebe a necessidade da nova arquitetura social e sanitária nos países, mas receio que se após a crise, as forças sociais não se mobilizarem, tudo isso readquira progressivamente um esquecimento e retomemos os maus hábitos.
Este vírus trouxe algo bom: menos poluição, os animais que atravessam as ruas, águas e ar limpos... Não é uma pena voltar ao mundo de antes, após ver esta parte tão bela de nosso planeta?
Acredito que é preciso relacionar isto ao fato de que 80% da poluição industrial se deteve e, na minha opinião, o que é urgente é perceber que será necessária uma alta porcentagem de redução da atividade para chegar a isso. Agora, a dificuldade é como iremos agir depois, com essa consciência que adquirimos. O desafio para a humanidade é uma revolução cultural e de civilização. E é necessário que a coloquemos em obra e a programemos. Essa é a questão para mim, não será realizada só, será necessário tomar decisões políticas, econômicas, consensuais e que as elites econômicas e políticas adiram a uma mudança de cultura e civilização e, para mim, isso é uma tarefa imensa.
Considera que esta epidemia, neste momento da história, é uma causalidade?
Há pessoas que pensam que é a natureza que nos envia um sinal, que os humanos abusaram muito e ela retoma seus direitos e nos obriga a sermos mais humildes. Exceto que estamos fazendo uma espécie de antropomorfismo, estamos projetando nela uma consciência, alguns atributos que são nossos. Tem certa inteligência, sabemos, as árvores são inteligentes, os seres vivos são inteligentes, é a intencionalidade que é difícil de determinar. De qualquer forma, o que é interessante registrar é que não são apenas os homens que fazem história. Os mosquitos, o pangolim, os seres vivos também fazem história.
Esqueceremos desta crise, assim que passar?
É um risco, e penso que não se deve subestimá-lo porque, se olhamos para as últimas epidemias e pandemias, houve a gripe de Hong Kong, em 1968, que provocou um milhão de mortos no mundo, 30.000 mortos na França e desapareceu totalmente da memória. Houve a chamada gripe espanhola, em fins da I Guerra Mundial, que acarretou cerca de 50 milhões de mortos na Europa. Desapareceu de nossos imaginários. Vão me dizer que ficaram um pouco longe, mas estamos muito ancorados em uma arte do esquecimento e, toda vez que há uma tragédia ou uma crise importante na história, falamos do dever da memória, do não voltará a ocorrer. Precisamos perceber que aprendemos pouco da história.
Temo o fato de que esta pandemia apareça como uma catástrofe biológica natural, ligada a um vírus, em vez de se enxergar que por trás está o cultural, que é a nossa ação que induziu a esta crise sanitária. Existe um risco de que, se sairmos rápido da pandemia, que é o que eu desejo, haja a probabilidade de que a esqueçamos. Para mim, o tempo justamente depois desta crise é muito importante e, se o perdemos, progressivamente retomaremos nossos bons e maus hábitos.
Você está entre os que pensam que o mundo continuará como sempre?
Eu estou entre os que pensam que as coisas devem mudar. Continuaremos como antes ou não? Não sei, mas o que eu posso dizer é que o que eu desejo e no sentido em que vou trabalhar. Vou colocar minha pequena energia em meus espaços para que o mundo mude. As pessoas que querem que o mundo mude, não devem se deter em apenas desejar que mude, devem refletir sobre quais ações tomar para que mude. Temos os elementos para realizar uma ação, e a grande lição a retirar é que é um grande momento de atuar para que o mundo mude.
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“É uma grande oportunidade para atuar e que o mundo mude”. Entrevista com Felwine Sarr - Instituto Humanitas Unisinos - IHU