“No longo prazo, vamos ver novas tecnologias se desenvolvendo, um maior número de empresas utilizando a 5G, um maior número de casas conectadas, cidades inteligentes, com parques conectados, além da ampliação da conexão no campo”, afirma o advogado e consultor de políticas públicas do Instituto de Tecnologia e Sociedade – ITS
Se, de um lado, o Brasil realizou leilão de 5G na semana passada, considerado a maior licitação de telecomunicações da história do país, de outro, uma a cada cinco pessoas ainda não tem acesso à internet no território brasileiro. "Isso é significativo do ponto de vista de um país de 200 milhões de pessoas e quer dizer que 40 milhões de pessoas não têm acesso", afirma Christian Perrone, consultor de políticas públicas do Instituto de Tecnologia e Sociedade – ITS, do Rio de Janeiro, que estuda o impacto e o futuro da tecnologia no Brasil e no mundo.
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Perrone explica que a internet 5G vai permitir o desenvolvimento e o acesso de novas tecnologias no país e que sua revolução em relação à 3G e 4G está relacionada a três aspectos: mais velocidade, maior volume de dados e menor latência. "Isso não diz respeito somente a poder conectar mais objetos em uma mesma banda, mas conectá-los com mais precisão. No momento em que há mais velocidade, maior volume de dados e menor latência (palavra técnica para explicar o tempo estimado entre o envio de uma informação e o momento de sua recepção) – que é o mais importante nesse momento –, há maior precisão".
Apesar das expectativas, inclusive do desenvolvimento da própria indústria brasileira a partir da internet das coisas, Perrone pontua que os principais desafios do país ainda dizem respeito ao acesso à internet. "O que seria mais urgente no país nesse cenário é permitir a conexão, porque ela é o primeiro dos direitos necessários para as pessoas terem acesso à informação, para serem alfabetizadas digitalmente", conclui.
Christian Perrone (Foto: Arquivo pessoal)
Christian Perrone é formado em Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo Instituto Universitário Europeu - EUI, Itália, mestre em Direito Internacional pela Universidade de Cambridge, Reino Unido, e doutorando em Direito Internacional e Direito Digital pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. É consultor de políticas públicas e head de direito e tecnologia e GovTech do Instituto de Tecnologia e Sociedade – ITS.
IHU - O leilão da 5G foi considerado a maior licitação de telecomunicações da história do Brasil. Quais são as diferenças, semelhanças e importância desse leilão em comparação aos leilões de 3G e 4G?
Christian Perrone – As tecnologias de 3G e 4G abriram espaço para novas tecnologias e novos serviços aos quais tivemos acesso. A internet 3G permitiu trocas de mensagens e acesso a novos elementos de internet e a 4G possibilitou uma série de novos aplicativos e serviços que acessamos nos celulares no dia a dia, ou seja, ela permitiu termos acesso a aplicativos fora das nossas casas e fora do Wi-Fi.
A internet 5G vai abrir uma nova porta de acesso para novas tecnologias, não só para celulares, computadores e tablets, mas para uma série de outros potenciais objetos conectados. Isso não diz respeito somente a poder conectar mais objetos em uma mesma banda, mas conectá-los com mais precisão. No momento em que há mais velocidade, maior volume de dados e menor latência (palavra técnica para explicar o tempo estimado entre o envio de uma informação e o momento de sua recepção) – que é o mais importante nesse momento –, há maior precisão. É por conta da menor latência que será possível, por exemplo, ter objetos de cirurgia conectados, ou seja, objetos que precisam de uma resposta muito mais rápida. Quando um médico está fazendo uma cirurgia, o tempo de resposta [dos dispositivos] deve ser muito rápido. Quando um carro tenta desviar de outro, esse processo também deve ser muito rápido para evitar acidentes. Então, a 5G será importante para conseguirmos desenvolver esse tipo de capacidade. É por isso que a 5G é bastante revolucionária.
IHU - Claro, Vivo e TIM arremataram três lotes no leilão. Qual é o significado disso e como as demais empresas se posicionam na disputa por este mercado no país?
Christian Perrone – Era esperado que as empresas que já prestam serviços de telefonia continuassem prestando serviço de 5G porque os serviços de telefonia se agregam uns sobre os outros. A 3G e a 4G são bases primordiais para prestar o serviço de 5G. Então, quando a 5G estiver no mercado, quem tem acesso à 4G, efetivamente vai continuar mantendo o acesso 3G e 4G. A única diferença é que é preciso ter uma tecnologia que possibilite ter acesso a essa maior velocidade e a dispositivos mais rápidos. É por isso que será preciso de novos dispositivos conectados.
Um ponto importante desse leilão é que várias outras empresas se posicionaram nesse mercado, o que mostra dois elementos relevantes. Primeiro, que existe um apetite das empresas, que esperam que o mercado brasileiro seja eficiente e grande o suficiente para ter competição dentro do mercado de 5G. O segundo elemento mostra que o Brasil está aberto e pode, sim, desenvolver um elemento mais profundo de tecnologias relacionadas a 5G. Ou seja, presume-se que o mercado de 5G deverá crescer no país, o que já é esperado, uma vez que o Brasil é um dos países que mais consome internet de modo geral. Então, essa é uma oportunidade de competição para novas empresas no mercado.
IHU - Em que a internet 5G se diferencia da 3G e 4G? O que será possível fazer com a 5G que ainda não é possível com a 4G ou 3G?
Christian Perrone – A grande questão é que podemos fazer muito mais coisas com a 5G. Primeiro, é possível ter muito mais objetos conectados na mesma rede. Esse já um elemento importante pois permitirá todas as casas estarem conectadas com muitos dispositivos ao mesmo tempo, com uma banda que suporte essa conexão. O segundo ponto é permitir esse tipo de conexão nas cidades e nas indústrias. Além disso, a 5G traz maior precisão e velocidade. Querendo ou não, a velocidade e o volume de dados são extremamente relevantes: quando é possível baixar um filme inteiro, de vários gigas, em segundos, a verdade é que houve maior oportunidade e mais opções para o cidadão de modo geral e para toda a cadeia tecnológica que precisa da tecnologia. Essa é a grande diferença tecnológica da 5G em relação à 4G e 3G. Ou seja, a 5G abre essa porta para o uso de muitas tecnologias disponíveis.
IHU - Que oportunidades a 5G traz ao Brasil? A indústria brasileira está pronta ou caminha na direção para aproveitar as potencialidades desta nova tecnologia?
Christian Perrone – As oportunidades brasileiras devem ser entendidas de um ponto de vista geopolítico e não meramente do ponto de vista brasileiro. Ter essa tecnologia disponível é um incentivo muito grande para o desenvolvimento de pesquisa e implementação de diversos serviços e produtos relacionados à tecnologia 5G. Então, quanto antes começar, antes o país poderá ter condições de desenvolver serviços próprios que possam estar disponíveis tanto no Brasil quanto no mundo inteiro.
Se o país demorar para entrar nesse mercado, a tendência será continuar no ciclo em que nos encontramos hoje, de ser consumidor de serviços digitais e serviços voltados para as grandes capacidades que vêm com os aplicativos. O que quero dizer é que quanto antes o país tiver acesso à 5G, antes as empresas poderão se adaptar e ganhar mais eficiência tanto para fazer uso da internet das coisas na indústria e no campo quanto desenvolver seus próprios produtos e serviços, que é importante. Quanto antes o Brasil entrar nesse mercado, antes terá players em mercados globais nessa área também.
IHU - Quais cidades e setores estarão aptos para receber a 5G a partir do próximo ano? Qual é a previsão para as demais regiões, setores e também para o consumidor final?
Christian Perrone – Por mais que o ministro das Comunicações [Fabio Faria] pense que até a metade do ano que vem todas as capitais do país devem estar cobertas pela 5G, a verdade é que existe uma série de elementos que não estão disponíveis em todas as cidades, seja do ponto de vista da legislação (como, por exemplo, sobre quão próxima uma antena pode estar da outra, em que locais é permitido colocá-las, que espaços serão utilizados), seja porque os elementos de infraestrutura não estão presentes. Então, a verdade é que por mais que gostaríamos e esse seja o objetivo do governo, poucas cidades estão prontas para receber a tecnologia 5G. Um bom exemplo é Porto Alegre, que se adaptou em muitos aspectos para receber a 5G.
Sobre a previsão de quando a internet 5G deve chegar ao consumidor final, ela provavelmente não deve demorar, mas sua massificação deve demorar. O consumidor final do Brasil, de um modo geral, vai ter acesso à 5G somente depois de 2023, 2024, quando vamos entender quais serão os novos modelos de negócios que vão estar presentes com essa nova tecnologia. Hoje, com o Wi-Fi, se vende velocidade e volume de dados. No momento em que esses dois elementos forem exponencializados múltiplas vezes pela 5G, parece que esse não será mais o modelo de negócio perfeito para se encaixar nessa nova tecnologia. Então, deve haver modificações no futuro.
IHU - A longo prazo, quais tendem a ser as consequências da introdução da internet 5G no país?
Christian Perrone – No longo prazo, vamos ver novas tecnologias se desenvolvendo, um maior número de empresas utilizando essa tecnologia, um maior número de casas conectadas, cidades inteligentes, com parques conectados, além da ampliação da conexão no campo. Não podemos esquecer das possibilidades anunciadas com a 5G: ter drones e balanças conectadas, controle de umidade e de pragas. Isso não deve ser equânime e igual em todas as partes do Brasil, mas deve se desenvolver ao longo do tempo.
IHU – Uma das discussões acerca da 5G envolve as acusações dos EUA acerca das empresas chinesas que atuam no ramo. Como o Brasil tem se posicionado frente a essa polarização?
Christian Perrone – Houve uma quantidade gigantesca de discussões nesse sentido, mas talvez o mais importante seja a acusação dos EUA de espionagem pelo governo chinês, ou pelo menos da possibilidade de haver espionagem por parte do governo chinês a partir da utilização de equipamentos das empresas chinesas, especialmente da Huawei, que está muito presente no Brasil. Em torno de 90% dos equipamentos utilizados pela 3G e 4G no Brasil estão divididos entre as empresas chinesa Huawei e a sueca Ericsson. Nesse processo, é importante entender que a tecnologia de 5G é feita em cima da tecnologia da 4G. Então, se não pudermos usar equipamentos da Huawei, teremos que substitui-los para poder continuar prestando o serviço de 4G. Uma mudança desse tipo na modificação de todo o nosso sistema de entrega de conexão de internet móvel no Brasil teria um custo exacerbado.
O Brasil fez uma discussão interna para não permitir que empresas chinesas participassem da infraestrutura de internet, particularmente da infraestrutura da 5G. Mas, na verdade, isso acabou sendo resolvido com a proposta de que deve existir uma rede específica para o governo federal, sem necessariamente ter que envolver produtos de empresas chinesas, diminuindo ou minimizando o impacto que poderia ter um certo grau de espionagem.
IHU - A desigualdade social foi um dos aspectos evidenciado por todos durante a pandemia, inclusive em termos digitais. Que percentual de brasileiros ainda não está conectado à internet?
Christian Perrone – Certamente a pandemia exacerbou nossa visão sobre a desigualdade da internet no Brasil. Hoje, uma em cada cinco pessoas não tem acesso à internet. Isso é significativo do ponto de vista de um país de 200 milhões de pessoas e quer dizer que 40 milhões de pessoas não têm acesso. Vimos algumas imagens anedóticas durante a pandemia: crianças subindo em árvores, no topo de morros ou caminhando quilômetros para conseguir ter acesso à internet e assistir às aulas. São cenas que mostram um dos múltiplos momentos da desigualdade de acesso à internet no Brasil.
O leilão foi de 5G, mas quem acabou ganhando foi a 4G porque entre as obrigações para quem conseguiu o leilão da 5G, está a de cobrir o país inteiro de 4G. A verdade é que há uma tendência de buscar a redução das desigualdades, pelo menos de acesso à internet móvel. Claro que há muito a se discutir sobre acesso à 5G. Provavelmente, ela será mais cara em um primeiro momento, estará disponível primeiro nas capitais e depois no interior e, como ela necessita de mais infraestrutura, provavelmente vai demorar um certo tempo para termos cobertura em todo o país. É um desafio falar de cobertura de 5G e inclusão da população como um todo nessa nova tecnologia.
IHU - Quais são os desafios do Brasil em termos de inclusão digital? O que é urgente no país diante desse cenário?
Christian Perrone – Existem diversos desafios no país e um deles diz respeito ao acesso. Provavelmente esse seja o primeiro, mas ele não é o único. Existe uma série de desafios relacionados à infraestrutura, seja pessoal, de acesso aos celulares e dispositivos conectados, seja em relação à disparidade geolocal, porque alguns territórios estão mais cobertos e outros estão menos cobertos pelas redes de cobertura de internet. Também existem desigualdades de qualidade de acesso e de estabilidade de acesso. Por último, tem as questões de alfabetização digital, que devem ser atacadas de uma maneira conjunta e concomitante para que uma parcela significativa da população seja incluída.
O que seria mais urgente no país nesse cenário é permitir a conexão, porque ela é o primeiro dos direitos necessários para as pessoas terem acesso à informação, para serem alfabetizadas digitalmente. E não é qualquer conexão, é uma conexão estável. Talvez o mais relevante nesse momento seja melhorar a conexão das escolas. Essa é uma das obrigações que aparecem no leilão da 5G, mas ela é crucial de ser feita o quanto antes porque são nas escolas que se pode ter uma interação mais produtiva com relação à 5G ou com relação à internet como um todo.