Professor analisa os inúmeros efeitos que o novo coronavírus deve legar à sociedade, entre eles o aumento de estados totalitários, ainda que com ares de pleno estado democrático de direitos
Há uma máxima na farmacologia que diz que a diferença entre o antídoto e o veneno é a dose. Adaptando a máxima aos tempos pandêmicos, podemos observar como nosso melhor, mais potente lado positivo, pode se converter no pior. É, por exemplo, a ideia de solidariedade que o professor Cesar Candiotto traz, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, na mesma proporção que a pandemia fez crescer a solidariedade, aumentam os mecanismos que vão minando as democracias ocidentais. “Sem ceder terreno ao otimismo ingênuo ou ao pessimismo inconsequente, observa-se que a principal de nossas instituições, que é a própria democracia, encontra-se cada vez mais fragilizada durante a pandemia”, observa.
Ele ainda destaca que o “Brasil lutou para ser, economicamente falando, um Estado de Bem-estar social, e politicamente entendido, um estado democrático, segundo o qual os rituais e procedimentos de um estado de direito estivessem acompanhados de políticas restaurativas das distorções em relação a populações historicamente excluídas da educação, da cultura e da saúde”. No entanto, esse estado e suas instituições começam a sofrer ataques desde que, em 2014, mágoas por derrotas eleitorais catalisam movimentos que vão de impeachment a eleições de figuras totalitárias e conservadoras. “Tudo aquilo que prossegue em nosso país na sequência destes episódios não resultou no fortalecimento da vida democrática, com instituições políticas e sociais mais consolidadas. Afinal, quando a vida e a representação democráticas estão abaladas, isso se reflete no conjunto das demais instituições”, completa.
Para completar, mergulhamos numa pandemia que, entre tantas consequências, acelera esses processos. “As pessoas e empresas que são solidárias nesta pandemia às vezes são as mesmas que alimentam essa rede de descrédito na vida democrática, pela criação, difusão e replicação de notícias falsas que decidem eleições”, destaca. Por isso, defende a solidariedade, mas ressalta que "ela não pode estar justificada por políticas de governo que alteram políticas de Estado, imprescindíveis para a manutenção das instituições democráticas".
Assim, sugere que aproveitemos as inflexões que o processo da pandemia nos coloca para “‘juntar os cacos’ do que ainda resta de democracia e construir um novo mosaico, estabelecendo cruzamentos e alianças políticas que viabilizem a não criminalização do dissenso, imprescindível e constitutivo da vida democrática”.
Cesar Candiotto (Foto: Perfil Reserach Gate)
Cesar Candiotto é coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e professor do Mestrado em Direitos Humanos e Políticas Públicas, ambos da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR. Entre seus livros publicados, destacamos A dignidade da luta política: incursões pela filosofia de Michel Foucault (Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2020).
IHU On-Line – Direitos humanos foram violados no país ao longo deste ano, durante a condução política da crise pandêmica?
Cesar Candiotto – Nos últimos anos, há uma forte tendência de desqualificação dos direitos humanos por parte das forças políticas que ocupam os postos mais altos do país. Enquanto diversas instituições e pessoas têm buscado se cuidar para cuidar dos outros da melhor maneira possível, respeitando o distanciamento social, portando máscaras em quaisquer ambientes públicos e evitando tomar remédios sem evidência de cura para o surto do vírus, o presidente da República tomou uma atitude contrária a essa orientação, cumprimentando pessoas aglomeradas em torno dele sem proteção, naturalizando o elevado número de vítimas da doença e alegando que a pandemia foi superdimensionada midiaticamente e assim por diante.
O direito humano à saúde (art. 25, Declaração Universal dos Direitos Humanos) tem sido relativizado em razão da falta de transparência das informações. Em meio à pandemia, o governo decidiu não apresentar mais as estatísticas diárias pelas metodologias mais consolidadas internacionalmente, com o objetivo de minimizar o número de óbitos e contaminados. Foi necessário um consórcio da imprensa e a criação de uma metodologia própria para que a população brasileira fosse razoavelmente informada, posto que o número de subnotificações permanece como incógnita aqui, mas também em outros países. O governo federal prometeu realizar testes massivos à população, porém isso nunca ocorreu. Trocou de ministro sempre que este seguia algum protocolo que não fosse aquele que agradava seu próprio interesse político.
Não houve qualquer iniciativa para que as Secretarias da Saúde, municipais e estaduais, agissem a partir de diretrizes sanitárias diretamente dialogadas com o Ministério da Saúde e as orientações da OMS. Diante da pusilanimidade na condução do Ministério da Saúde, com trocas e vacância de ministro em plena pandemia, o STF, autorizou que Estados e Municípios tivessem autonomia na condução do combate, de acordo com seus números, recursos e metodologias específicas. Ainda que tal decisão possa ter contribuído de alguma maneira para a minimização dos efeitos do vírus, em função das especificidades regionais e a velocidade de contaminação em cada região, o que se tem visto é uma enorme confusão de alertas (amarelo, laranja, vermelho) que ora permitem abrir parte do comércio, ora obrigam-no a fechar, deixando empregados e empregadores em um ambiente de incerteza quase total, do qual decorrem situações de desemprego crescente e falência de muitas empresas, especialmente microempresas. Neste sentido, o direito ao trabalho, que já vinha sendo atacado há alguns anos, tem sido objeto de precarização crescente durante a pandemia.
Outro direito que tem sido violado pela falta de uma política clara e eficiente é o direito à educação (Art. 26, DUDH). Desde meados de março de 2016, as crianças e jovens deixaram de ir à escola. As escolas privadas e comunitárias migraram com certa rapidez para a aprendizagem remota. As escolas públicas também têm tentado fazê-lo, mas com enormes dificuldades resultantes, em boa medida, da falta de infraestrutura tecnológica para dar conta desta mudança e, principalmente, em virtude da precariedade que a educação digital evidencia no país.
Não houve políticas públicas ou parcerias entre Estado e empresas de telefonia ou internet para a diminuição dos custos de banda larga, de acesso a computadores e laptops etc. Em famílias com mais de um filho na etapa da escolarização, inexistem computadores suficientes para o acesso sincrônico das aulas. Mesmo nas escolas privadas, as crianças, pelas dificuldades próprias da doméstica ou porque os pais passaram a trabalhar quase o dobro do tempo, ou porque escrevem e leem menos do que o necessário devido à dispersão provocada pelos aparatos digitais, não conseguiram aprender suficientemente como era previsto. Do ponto de vista do direito à educação, especialmente do Ensino Básico e Fundamental, 2020 tem sido um ano comprometido, embora não se queira admitir isso.
Poderia agregar que os direitos humanos das mulheres (inaugurados pela Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de discriminação contra as Mulheres, aprovada pela ONU, em 1979), têm sido muito afetados nesta pandemia, posto que muitas tiveram que abandonar o trabalho ou foram demitidas porque obrigadas a dividir seu tempo com o cuidado dos filhos e da casa no período em que normalmente as crianças permanecem na escola. Isso sem falar do aumento do índice da violência doméstica, pelo qual as mais afetadas são sempre as mulheres.
Finalmente, os direitos humanos de terceira geração, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a viver em um ar não poluído, foram fortemente violados. Enquanto o mundo voltava seu olhar para a pandemia, o ministro do Meio Ambiente sugeriu uma série de desregulamentações de leis ambientais, em sua já clássica expressão, “deixar passar a boiada”, em reunião ministerial reservada, posteriormente divulgada por ordem judicial emitida pelo STF.
Além disso, o aspecto mais gritante nesta pandemia, é que a boiada não pode passar sem que haja desmatamento via motosserras e queimadas. Comunidades da região amazônica respiram fumaça diariamente decorrente das queimadas sem controle que grassam a região há meses. E não estamos aqui falando somente das comunidades indígenas, ao mesmo tempo afetadas pelo vírus e pela destruição de seu meio, mas inclusive de pequenas e grandes cidades da região, além da fauna e da flora, cada vez mais comprometidas.
IHU On-Line – Nesta crise pandêmica, observamos muitas ações de solidariedade na sociedade civil, mas também o aumento das desigualdades e do desemprego. Como sairemos desta crise pandêmica? Mais solidários e com instituições sociais comprometidas ou mais fragilizados e politicamente impotentes?
Cesar Candiotto – A crise pandêmica desencadeou uma rede de solidariedade entre pessoas físicas e jurídicas em todos os rincões do país. Indivíduos, grupos e empresas têm sido solidários, de diferentes maneiras, especialmente no início da pandemia, quando o auxílio emergencial do governo ainda era somente uma promessa. Apesar disso, diversas empresas demitiram durante a pandemia, seguindo a tendência de aumento do desemprego, mesmo depois da instauração da possibilidade de redução e suspenção dos contratos pelo governo, ainda vigente. Não se sabe, desde antes da pandemia, qual é a política governamental para o combate ao desemprego, além do socorro emergencial existente e que é extremamente insuficiente (Como uma família sobreviveria com trezentos reais ao mês?).
Sem ceder terreno ao otimismo ingênuo ou ao pessimismo inconsequente, observa-se que a principal de nossas instituições, que é a própria democracia, encontra-se cada vez mais fragilizada durante a pandemia. Durante vários anos, o Brasil lutou para ser, economicamente falando, um Estado de Bem-estar social, e politicamente entendido, um estado democrático, segundo o qual os rituais e procedimentos de um estado de direito estivessem acompanhados de políticas restaurativas das distorções em relação a populações historicamente excluídas da educação, da cultura e da saúde. Contudo, a confiança nos ritos da democracia, começa a ruir devido à dúvida levantada publicamente pelo candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2014, que culminaria no impeachment de 2016, na verdade, um golpe concertado entre a politização do judiciário, a grande imprensa corporativista e sensacionalista e o ressentimento dos derrotados em 2014.
Tudo aquilo que prossegue em nosso país na sequência destes episódios não resultou no fortalecimento da vida democrática, com instituições políticas e sociais mais consolidadas. Afinal, quando a vida e a representação democráticas estão abaladas, isso se reflete no conjunto das demais instituições. É temerário pensar, por exemplo, que uma economia forte, com pleno emprego e baixa desigualdade social prescinde do estado democrático.
Mesmo antes da pandemia, o autoritarismo tem se tornado uma tendência da política brasileira, enfraquecendo o tecido das lutas e movimentos sociais, quando não, criminalizando-os. Pela primeira vez depois da redemocratização, o candidato eleito presidente da República não participou de debate algum ao lado dos demais candidatos. Por sua vez, as fake news, pagas por grupos econômicos e ideológicos inspirados nas ideias de Steve Bannon e propagadas por robôs, atuaram politicamente para a anulação das novas formas de resistência desencadeadas nas redes sociais.
As pessoas e empresas que são solidárias nesta pandemia às vezes são as mesmas que alimentam essa rede de descrédito na vida democrática, pela criação, difusão e replicação de notícias falsas que decidem eleições. A solidariedade sempre é um valor a ser realçado e defendido, mas ela não pode estar justificada por políticas de governo que alteram políticas de Estado imprescindíveis para a manutenção das instituições democráticas.
Por isso, é preciso neste momento “juntar os cacos” do que ainda resta de democracia e construir novo mosaico, estabelecendo cruzamentos e alianças políticas que viabilizem a não criminalização do dissenso, imprescindível e constitutivo da vida democrática. Pessoas e instituições mais solidárias deveriam ser o correlato de instituições democráticas mais sólidas e comprometidas com a proteção de direitos já adquiridos, como também com a instituição de novos direitos.
Em razão de tudo isso, e assentado em uma visão realista do que acontece atualmente com a sociedade brasileira, os efeitos da pandemia têm nos deixado politicamente mais impotentes, ainda que essa impotência possa ser revertida com a eventual mudança de cenário sanitário e a descoberta da vacina contra a covid-19, bem como a maneira como a população reagirá na escolha de seus representantes nas eleições de 2020 e 2022.
IHU On-Line – Que “mudanças bruscas” a crise pandêmica causou não só nas relações políticas, mas também sociais no Brasil?
Cesar Candiotto – Para milhares de pessoas que dependem da luta diária para colocar comida na mesa ao final de cada dia, a mudança foi brutal. De repente, diaristas que prestam serviço doméstico foram dispensadas/os. Profissionais que trabalham em táxis ou aplicativos de mobilidade viram seu sustento minar de uma semana a outra. Comerciantes de rua constatam o desaparecimento de seus clientes diários. Empregados e proprietários de bares e restaurantes ficaram sem capital de giro para manter funcionários. Enfim, muitas pessoas que já viviam na informalidade, só pioraram ainda mais sua situação.
Quanto aos proprietários de estabelecimentos que ainda resistem à crise, tiveram que se adaptar rapidamente às novas exigências sanitárias; foram obrigados a migrar para o comércio digital com a priorização da entrega a domicílio. Mais de dez milhões de pessoas que não tinham qualquer registro de conta bancária, poupança ou corrente, passaram a fazer parte do sistema financeiro, utilizar a internet, lidar com aplicativos, inclusive para fim de recebimento da ajuda emergencial do governo. Em um país no qual muitas pessoas sequer têm certidão de nascimento ou Cadastro de Pessoa Física - CPF, essa mudança brusca pode tê-las deixado ainda mais marginalizadas ou excluídas.
As mudanças também têm sido muito repentinas para pessoas idosas. Estima-se que mais de 600 mil pessoas, acima de 60 anos, deixaram o trabalho formal no Brasil durante a pandemia, porque tiveram que sair do emprego ou foram demitidas por conta de pertencerem ao grupo de risco. A vida confinada e isolada dos demais familiares tem dificultado a troca tradicional de afetos, imprescindível a qualquer ser humano e, especialmente, a essa faixa etária. Contudo, também é marcante como os idosos se adaptam bruscamente à comunicação digital, pelo uso de aplicativos e redes sociais, o que, em certo aspecto, e para aqueles que têm condições econômicas razoáveis, minimiza os efeitos negativos do distanciamento social.
Outra consequência social gerada pela mudança brusca do estilo de vida é o aumento do número de separações e divórcios durante a pandemia, comparado a períodos “normais”. A redução drástica das demais formas de convivência social presenciais para o âmbito exclusivo da unidade familiar, assim como a sobrecarga de trabalho remoto em meio ao acompanhamento da escolarização dos filhos e às tarefas domésticas, obrigou à reinvenção das relações conjugais e familiares, nem sempre de maneira exitosa. Contudo, inexiste qualquer política pública dirigida aos problemas decorrentes da intensa convivência intrafamiliar intermitente, com a eventual saturação que ela pode proporcionar, levando-a inclusive à sua dissolução. As empresas tampouco perguntaram a seus funcionários se a sobrecarga de trabalho e sua sobreposição no âmbito doméstico os deixa estressados e psiquicamente abalados. Limitam-se normalmente a buscarem saber se o empregado já contraiu o vírus, se está tomando os cuidados necessários, se é ou convive com alguém do grupo de risco.
Não obstante, quando outras condições familiares favorecem a boa convivência no ambiente domiciliar, como moradia adequada ao número de pessoas que a habitam, manutenção de renda suficiente para o provimento das necessidades, continuidade eventual de escolarização dos filhos e comunidade de afeto razoável, incluída aqui a relação com animais domésticos e plantas, os efeitos negativos da ausência de socialização externa à vida familiar podem ser minimizados.
Finalmente, as mudanças têm sido bruscas para os profissionais da saúde e da educação. No caso da saúde, todos aqueles que são expostos diariamente ao vírus, vivem diante de muitas incertezas e ante a necessidade profissional de afastar-se da convivência familiar para evitar o contágio, o que pode provocar efeitos psíquicos ulteriores. Já os educadores, têm sido impelidos, subitamente, a se recriarem em sua atividade docente. Não basta preparar uma boa aula e demorar-se mais na correção de uma avaliação. É necessário, ainda, dominar diferentes aplicativos de comunicação virtual, produzir lives, podcasts, editar vídeos, gravá-los e publicá-los semanalmente para os estudantes que não conseguem conexão sincrônica, elaborar novas formas de avaliação, falar diariamente, às vezes mais de oito horas, para uma tela, sem saber se, do outro lado, os estudantes estão atentos e aprendendo.
Apesar disso, as interações tecnológicas possibilitaram que os educadores, acostumados a antigas práticas, pudessem experimentar e tomar conhecimento do mundo digital com o qual crianças e adolescentes convivem atualmente, propiciando uma proximidade intergeracional. Mas uma lição resta: jamais um youtuber substitui um bom professor. Não é o número de curtidas que define uma boa aula, igualmente. A temporalidade e convivência da sala de aula presencial continua sendo deveras importante para aprender a ser e agir, além de ser um espaço democrático em que se aprende a conviver com as diferenças. A educação digital jamais substitui a informalidade, a brincadeira, o cruzamento dos olhares e sorrisos, a socialização que perfazem o desenvolvimento humano das pessoas.
Algo evidente é que, não somente educadores, mas diversos profissionais que atuam em home office estão trabalhando além do que preveem seus contratos, e, em alguns casos, isso poderá afetar sua saúde física e psíquica.
Além das mais de 150 mil vidas ceifadas no Brasil e dos milhares de recuperados e, pois, afetados pelos efeitos colaterais da doença, quase todos os demais grupos que já eram desfavorecidos socialmente saíram ou sairão perdendo nesta pandemia, com as notáveis exceções de banqueiros e outros grupos econômicos que são sempre socorridos pelos governos diante de uma crise dessa magnitude. Dessa feita, os impactos nas relações sociais poderão sobreviver durante vários anos, mesmo depois da descoberta da vacina.
Para finalizar, creio que um dos grandes impactos nas relações sociais desencadeados pela pandemia tem sido a perda do bom humor. Nem mesmo os humoristas mais preparados têm conseguido aliviar as relações de desconfiança, desânimo e falta de perspectiva. Isso prova que, ao contrário de outras doenças, a pandemia deixa marcas de médio e longo prazo na sociedade, como o prosseguimento de medidas de distanciamento que sobreviverão como forma de relacionamento “normais”. Apesar disso, se soubermos mensurar e avaliar as lições positivas adquiridas durante este período, estaremos mais preparados para reduzir os impactos negativos diante de crises análogas, presentes e futuras, como a crise ambiental e a possibilidade de novas crises sanitárias.
IHU On-Line – Nos tornaremos uma sociedade movida pelo medo?
Cesar Candiotto – Uma das grandes incógnitas de nossa época é a seguinte: a globalização das relações econômicas acelerou a crise do Estado-Nação, iniciada no século passado. Entretanto, nem isso foi suficiente para a realização de consensos ético-políticos cosmopolitas, pautados na democracia liberal, como se postulou depois do término da Guerra Fria. Um pensador, como J. Habermas, por exemplo, faz ressalvas para o potencial político de sua própria “teoria da ação comunicativa” diante da efetivação, por parte da democracia liberal, de um consenso cosmopolita. Em um texto em homenagem aos 200 anos de A Paz perpétua, de Kant [J. Habermas. La paix perpétuelle: le bicentenaire d’une idée kantienne, Paris: Cerf, 1996.], ele apresenta a dificuldade de uma ética fundada no consenso racional e universal angariado pelo diálogo intersubjetivo.
Escrito em 1996, e no contexto de uma época em que o medo da bomba atômica pela guerra entre blocos de países é substituído pelo medo ao terror, em parte decorrente da falta de “integração” dos próprios processos migratórios intensificados desde os anos 90 do século passado, Habermas deixa de postular como única possibilidade do cosmopolitismo universal o consenso derivado de uma razão comunicativa e intersubjetiva. Em compensação, mantém a fé no consenso universal derivado de um princípio de realidade negativo decorrente da universalização do medo.
Por certo, a globalização econômica, que intensifica os fluxos de pessoas e coisas, não foi capaz de universalizar a recusa da injustiça, como imaginava Kant, no século XVIII. Em contrapartida, a globalização do medo, no entender de Habermas, pode resultar na constituição de uma “comunidade involuntária fundada nos riscos corridos por todos”. Nossa igualdade diante da ameaça comum, o fato de não podermos pertencer a qualquer outro mundo que aquele constituído pela fragilidade do nosso e a exigência de responder conjuntamente a essa ameaça, constituiria assim o último refúgio da fé no universal. Dessa maneira, somente o realismo da globalização do risco poderia nos unir e, ainda que involuntariamente, possibilitar uma comunidade cosmopolita na qual seríamos igualmente afetados diante das ameaças que pesam sobre nós.
Que haja uma universalização do medo ao terror, especialmente depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, e tantos outros que vieram na sequência, não resta dúvida. A única coisa que parece ser frágil nesse argumento é que, nem mesmo nessas circunstâncias, estamos em uma situação de igualdade diante de uma ameaça comum. A esse respeito, o coronavírus talvez consiga algo que o terrorismo internacional jamais tenha logrado, que é a realização de um consenso involuntário intersubjetivo acerca da cosmopolitização do medo. Afinal, a universalização do medo em relação ao contágio parece unir-nos, o que nos caracterizaria como uma sociedade movida solidariamente em função dele.
Neste caso, o medo universalizado exerceria uma espécie de fundamentação – neste caso realista, e não idealista – de ações políticas guiadas pela igualdade, já que o mesmo perigo que o outro me representa é correlato do perigo que eu represento para ele. O mútuo cuidado movido pelo medo seria constitutivo de novas formas de convivência e relações sociais.
Contudo, suspeita-se que o medo da pandemia possa ter provocado e produzido novas fissuras sociais, assim como exponenciado e reconfigurado outras, já existentes. Diante disso, a pergunta que pode ser feita é se estamos, de fato, diante de um cosmopolitismo comum do medo que nos uniria e nos tornaria mais solidários e menos indiferentes e indolentes ao sofrimento alheio; ou, se, pelo contrário, até mesmo em situações-limite, navegamos em uma espécie de cruzeiro, no qual os que se encontram nos andares superiores, ainda que diante da possibilidade iminente do naufrágio, ignoram-no e permanecem indiferentes diante da situação daqueles que se encontram nos andares inferiores, justamente os que, pela sua exposição diária e frontal ao risco, são os primeiros a serem tragados.
Minha hipótese é que se existe, de fato, a universalização do medo decorrente da pandemia do coronavírus e outras pandemias que porventura virão, não quer dizer que este medo de alguma forma tenha nos igualado mais ou nos tornado menos indiferentes. Se há pessoas que têm oportunidade de estar confinadas em razão da especificidade de seu trabalho, de cuidar e controlar razoavelmente de sua saúde, de locomover-se prescindindo do transporte público, e de possuir certa formação e acesso qualificado a bens culturais que afastam o risco da depressão e do estresse, por outro lado, tem-se aí uma modulação do medo que difere em muito do medo constante daqueles que se encontram diariamente expostos ao vírus. Por mais que os primeiros possam contrair o vírus, e, portanto, serem igualados aos demais no que concerne ao medo de seus efeitos, esse medo tem outro peso para pessoas que se encontram, por exemplo, apinhadas em grande quantidade em suas casas minúsculas e sem conforto, sem água potável ou alimentação suficiente.
Diante disso, a questão que se impõe é saber se, como parte dos efeitos nocivos da alta velocidade da contaminação, somos todos iguais nessa “comunidade involuntária” ou estamos criando temporalidades e espacializações clivadas nas quais somente alguns terão refúgio e outros permanecerão ainda mais expostos. O suposto “cosmopolitismo” igualitário do medo derivado da pandemia do coronavírus deixa de sê-lo sempre quando são criadas novas “fissuras”, reconfiguradas antigas práticas divisórias de caráter disciplinar e biopolítico e estabelecidas novas escolhas e decisões entre fazer viver e expor à morte. Há, portanto, uma produção política e diferencial do medo. Ou se quisermos, há uma sociedade de medos, desigualmente produzidos. Não exatamente uma sociedade do medo que nos igualaria e nos uniria negativa e involuntariamente em torno de um consenso cosmopolita.
Mais do que o terrorismo, a pandemia desencadeia um medo não-objetal, pois o perigo pode estar em toda parte e em parte alguma, em qualquer outro corpo, mas também em meu corpo. O efeito disso é a constituição de mecanismos de defesa que visam satisfazer uma nova necessidade de segurança que jamais será totalmente satisfeita, pelo menos antes de qualquer possibilidade de imunização. Entretanto, mesmo depois da imunização da vacina contra o coronavírus, remanesce a incerteza diante de outras crises graves, sanitárias ou climáticas, criando uma situação de “limbo” muito conveniente para governos autoritários.
A busca de proteção diante do risco não- objetal, real ou virtual, tem como possíveis efeitos o investimento e a intensificação da segurança humana vigiada, controlando aglomerações, regulando extremamente os fluxos de coisas e pessoas e permitindo somente comportamentos previsíveis. É provável que ações cujos resultados sejam inesperados ou irruptivos passem a ser consideradas moralmente indesejáveis e, por isso mesmo, jurídica e preventivamente penalizadas. A produção política do medo daqui em diante tende a intensificar-se e a globalizar-se, descaracterizando as velhas utopias políticas baseadas na liberdade e na cooperação e cedendo às novas estratégias da securitização e economização da vida.
IHU On-Line – Em artigo recente, o senhor menciona as projeções de Byung-Chul Han e Slavoj Žižek sobre os efeitos da pandemia na vida social e política. O diagnóstico deles se aplica ao Brasil?
Cesar Candiotto – Byung-Chul Han escreve um artigo em 29/03/2020, “The Viral Emergenc(e/y) and the World of Tomorrow,”, durante o primeiro momento de confinamento na Europa ocidental. No final de março, países como Itália e Espanha não conseguiam evitar o crescimento exponencial da contaminação e a Inglaterra, influenciada pelo negacionismo de seu primeiro -ministro, não tomava quaisquer medidas de distanciamento social. Diante da recalcitrância dos países europeus sobre as melhores medidas de contenção da doença, decorrente também de uma tradição consolidada de respeito às liberdades, dentre elas a liberdade de locomoção, doravante penalizada com multas altíssimas em cidades com lockdown, brota o temor de que a experiência excepcional da obrigatoriedade do confinamento em virtude da crise sanitária seja transformada, daqui em diante, em uma experimentação política pela qual a exceção deixe de ser excepcional. B.-C. Han provavelmente não desconhecia, neste momento, o artigo de 26 de fevereiro de Giorgio Agamben, “L’invenzione di un’epidemia,”, que apontava nesta direção.
Em seu artigo, B.- C. Han compara a eficácia do modelo estatal comunista chinês de combate à pandemia, propulsado pela experiência anterior de controle digital da mobilidade urbana e, até mesmo, doméstica. Se esse controle é largamente utilizado para o combate à violência urbana, mas também para fins políticos de contenção de manifestações contra o governo, quando ela é também empregado para fins de controle de epidemias e pandemias, torna-se um dispositivo eficiente.
O temor de Han é que essa suposta eficiência sanitária de contenção da doença, agora mundialmente difundida e até mesmo elogiada, seja importada pelas democracias ocidentais e, com ela, venham acoplados seus dispositivos de controle que poderão operar na contenção de um “vírus” de outra natureza muito temível pelos governos, ou seja, o das revoltas e manifestações políticas. O perigo reside na confusão entre medidas protetivas obrigatórias decorrentes da crise sanitária -– o que envolve restrições provisórias às liberdades; e dispositivos políticos de restrição da liberdade de locomoção e outras liberdades, quando transformadas em políticas autoritárias regulares de governo.
Quanto ao filósofo esloveno Slavoj Žižek, em artigo de 27/02/2020, intitulado “Coronavirus is ‘Kill Bill’- esque blow to capitalism and could lead to reinvention of communism,”, pondera que, do ponto de vista político, a pandemia ressuscita vírus ideológicos adormecidos, difundidos por teorias da conspiração conservadoras, notícias falsas e explosões de racismo. Além disso, ela evidencia um modelo político sustentado pelo capitalismo selvagem que precisa ser urgentemente repensado. Este modelo está muito mais preocupado com a perturbação do “bom” funcionamento do mercado mundial e o “nervosismo” deste ente animalizado, do que com as pessoas que continuam morrendo.
Durante fortes crises sanitárias e/ou econômicas, os Estados tomam decisões políticas visando a “calmaria” dos mercados, evidenciando que há muito tempo subordinam sua soberania política ao animismo capitalista.
Como a crise sanitária atravessa quase todos os países do Planeta, igualmente seria necessário pensar em perspectivas transnacionais que pudessem combatê-la. Depreende-se a necessidade de novas formas de cooperação e solidariedade e a consequente exigência de reformulação da economia global. Desta maneira é que, além do fortalecimento dos laços de solidariedade cotidianos, como a autoproteção como meio de proteção da própria comunidade, a pandemia evoca a necessidade da instauração de novas formas de solidariedade transnacionais, tais como a criação ou a reconfiguração de organizações mundiais que disponham de maior poder executivo transnacional diante de uma situação de crise.
A regulação transnacional de uma crise sanitária, provisória e exclusivamente com o fito de proteger um número maior possível de vidas humanas, por uma organização como a OMS, por exemplo, evitaria a politização do combate à doença, como tem sido o caso de diversos países, dentre eles o Brasil. O pensador esloveno considera ainda que, para além do momento da crise, é preciso pensar em novas formas de solidariedade global, o que corresponde à necessidade de “reinvenção” da ideia de comunidade e, em consequência, da própria reversão da maneira de pensar o social e o político pela “entificação” e racionalização do mercado.
Os diagnósticos e previsões de B.-C. Han e S. Žižek são elaborados no ambiente político, social e sanitário da pandemia da Europa ocidental e da América do Norte do começo de 2020. Não deixam de ter, porém, repercussões sobre a maneira como o mundo pós-pandêmico tem sido projetado em outros países, tais como o Brasil. A politização da pandemia em nosso país custou e ainda custa milhares de vidas. Os altos índices de mortos não foram suficientes para minimizar a polarização política que corrói a democracia brasileira nos últimos anos. Quase nunca houve reconhecimento da realidade da doença e seus efeitos por parte do Governo Federal, largamente provados pela ciência e estampados nas inúmeras certidões de óbito, sem levar em conta as subnotificações duvidosas.
Na contramão da proposta de Žižek, é difícil pensar em uma solidariedade sanitária transnacional quando um governo subserviente ao imperialismo americano importa milhares de doses de remédio de combate à covid-19 sem comprovação alguma de sua eficácia e suscetível de efeitos colaterais em seus usuários, expondo-os desnecessariamente ao risco. A politização da pandemia é ainda mais evidente quando, em certo momento, o governo brasileiro cogita inclusive dissociar-se das diretrizes médico-sanitárias de uma organização como a OMS.
No que concerne à posição de B.-C. Han, ao contrário do que ele teme, o Estado brasileiro não precisa importar tantas novidades do modelo chinês para a concretização do autoritarismo político que aqui historicamente viceja. Durante a pandemia, foi noticiada várias vezes a utilização do serviço nacional de inteligência para fins de aparelhamento político, como quando do pronunciamento do ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, por ocasião de sua saída do governo. Evidentemente que não chegamos aos níveis de controle da mobilidade e dos comportamentos do comunismo chinês. Mas é claro que o autoritarismo político, seja ele de inspiração comunista ou de matriz neoliberal, pode conjugar a digitalização da existência para fins de controle político e a indução de comportamentos coletivos por parte dos governos.
Por essas razões, torna-se difícil saber se sairemos desta pandemia transformados em sujeitos mais solidários e com organizações sociais e políticas mais comprometidas com a proteção das vidas humanas. Provavelmente novas formas de resistência e organizações, tais como a imprensa alternativa, saiam fortalecidas durante esta pandemia. Diversos movimentos sociais têm igualmente ampliado suas lutas e conquistas, o que pode refletir nos resultados das próximas eleições municipais, tais como os movimentos de mulheres e os movimentos de luta contra o racismo. 2020 poderá entrar para a história como o ano do combate à pandemia, mas também quando a luta contra o racismo passa a ocupar uma importância capital e irreversível na tentativa de reconstrução do que resta de nossa vida democrática.
IHU On-Line – Há riscos de se criar um terror sanitário no futuro, em que a saúde deixe de ser um direito e passe a ser uma obrigação?
Cesar Candiotto – Sim, creio que este risco existirá daqui em diante. Não é incomum escutar, em plena pandemia, que virá outra pior e deveremos estar preparados. Na verdade, a pandemia indiretamente colabora com uma maneira neoliberal de tratar da questão do direito à saúde. Isso porque, como a inibição de sua difusão depende de cada indivíduo e do cuidado que deverá ter consigo mesmo e com os outros, cada vez menos o Estado se colocará como corresponsável deste cuidado e da garantia deste direito.
Curiosamente, o governo brasileiro insiste que, se houver vacina para imunização da covid-19, ela não será obrigatória. Mas esta postura não visa, como se imagina, preservar a liberdade das pessoas diante da proteção proporcionada pela vacina e potenciais efeitos colaterais, mas na desobrigação do Estado de garantir o direito à saúde, a cada indivíduo a responsabilidade sobre o controle da doença e, especialmente, sobre os custos econômicos dela decorrentes. Assim, o governo estimula que os cidadãos desloquem o exercício de direitos à escolha de sua gestão entre o direito à saúde e o direito à liberdade.
Entretanto, se eu for contaminado por alguém que se negou a tomar a vacina em nome de sua liberdade, propalada pelo governo federal, quem irá ser responsabilizado por essa transmissão do vírus? Portanto, a tendência é que, no futuro, a saúde se torne cada vez mais uma obrigação, mas não dos governos, e sim dos próprios indivíduos. A responsabilidade do Estado é deslocada pela responsabilização dos indivíduos. Nesse caso, o direito à liberdade somente é evocado como pretexto para justificar a desobrigação do próprio Estado de garantir o direito à saúde da população, o que não deixa de ser uma forma de expô-la à morte mediante um artifício de retórica.
IHU On-Line – Que diferenças há entre o controle e o autoritarismo chinês e o ocidental?
Cesar Candiotto – O autoritarismo ocidental nos últimos anos é realizado sob o manto da democracia e está diretamente ligado a um modo de governar que, grosso modo, pode ser chamado neoliberal. Especialmente na história política do Brasil, o Estado faz propaganda de que é “mínimo”, no sentido de que no terreno econômico concede liberdade para que os agentes econômicos assumam o protagonismo nas relações mercadológicas e sociais. Na verdade, ele é mínimo justamente naquelas áreas que envolvem sua obrigação de garantir e proteger constitucionalmente o direito à educação, à saúde, à moradia, ao trabalho, à aposentadoria, a viver em um ambiente não poluído. Nos últimos quatro anos, o Estado privatiza e precariza direitos pelas rubricas neoliberais da desregulamentação, da flexibilização e da desvinculação.
É o caso da desregulamentação de direitos positivados resultantes de conquistas históricas na área da legislação ambiental, que visam à proteção das reservas indígenas, dos povos ribeirinhos da região amazônica, da diversidade de espécies da fauna e da flora. O laissez-faire tropical opera na substituição de leis protetivas por outras que minam, dia- a- dia, áreas de preservação ambiental em troca da manutenção de uma política agrícola baseada na grande propriedade, no extrativismo e na exportação de commodities, como o comércio da carne e da soja.
Já a rubrica da flexibilização é uma das mais utilizadas na área do direito do trabalho, das pensões e aposentadorias, quando tenta alavancar sua precarização em vista da preservação e reforço da produção e reprodução do capital. Em vez de criar políticas de infraestrutura, de taxação maior do grande capital, de manutenção do controle e proteção estatal sobre áreas estratégicas do país, como os setores energético, rodoviário e de biossegurança, ou ainda, de implementação de políticas efetivas de manutenção dos direitos dos trabalhadores, o governo prefere “salvar” as grandes empresas, especialmente, aquelas ligadas ao capital financeiro. Alega, por outro lado, que os trabalhadores formais têm “direitos demais”, oneram o Estado e o crescimento econômico do país.
Flexibilizar significa, portanto, intervir de maneira arbitrária e autoritária na retirada de direitos historicamente conquistados, sem que os próprios trabalhadores participem efetivamente das decisões políticas. Prova disso é que a precarização das leis trabalhistas, estranhamente justificada como motor necessário para a criação de novos empregos e a permanência futura das famigeradas aposentadorias, não resultou em qualquer mudança substancial de aquecimento da economia e geração de novos empregos, mesmo antes da pandemia.
Já a desvinculação tem como escopo a alteração de cláusulas pétreas constitucionais, consistente na obrigação estatal de destinar um percentual mínimo das receitas dos impostos à manutenção de direitos, como o direito à saúde e à educação. Significa que os governos podem mexer nestas receitas vinculadas especificamente a esses direitos e dar-lhes outro destino. Por exemplo, este ano tentou-se, de diferentes maneiras, desvincular o financiamento mínimo constitucional direcionado à educação para transferi-lo à criação do Programa – não concretizado – do Renda Brasil, na tentativa de evitar ultrapassar a lei do teto de gastos permitido ao governo.
Como se sabe, a saúde e a educação no Brasil vivem um período de asfixia e a vinculação de percentuais mínimos das receitas líquidas de determinados impostos para sua sobrevivência é condição fundamental para que as populações de baixa renda tenham garantidos estes direitos. Portanto, desvincular supõe transformar direitos em “escolhas de gestão” ou em “auxílios”, de modo que os recursos possam ser reutilizados como se fossem uma “bondade” do governante, colaborando assim na legitimação inconteste de sua maneira de governar e em sua eventual reeleição.
Quando o Estado desregulamenta, flexibiliza e desvincula “direitos”, ele os torna “capitais negociáveis” segundo a racionalidade da iniciativa privada. Não é a liberdade econômica que está sendo estimulada, mas, em nome dela, a transformação de conquistas históricas de direitos constitucionais e políticas de Estado em meras políticas de governo. Assim, é autoritária qualquer política de governo que vire as costas à Constituição e à população, como quando entrega as florestas brasileiras aos extrativistas, os direitos trabalhistas aos donos dos meios de produção, os direitos à saúde e à educação ao livre mercado dos acionistas.
O Estado é ainda autoritário não somente quando ele afirma ser “mínimo”, mas também quando explicitamente almeja ser “máximo”, no sentido de que pretende intervir diretamente na vida das pessoas, nas suas decisões e expressões culturais, na sua atuação política e, até mesmo, em sua locomoção. Estamos diante de uma maneira de governar próxima daquilo que Wendy Brown chama de “neoliberalismo autoritário”.
Ao menos em três aspectos as atuais políticas de governo perfazem um neoliberalismo autoritário. Seu caráter policialesco, moralista e negacionista.
Policialesco, porque o Estado prioriza o uso indevido de seu aparato repressivo e securitário quando coíbe, cerceia e enfraquece os direitos e lutas políticas, tais como o direito à liberdade de opinião, à liberdade de imprensa, à atuação das Organizações Não-Governamentais - ONGs, dos movimentos sociais que lutam pelo direito à terra e à moradia. É policialesco ainda quando a coerção exercida pelo Estado em nome do combate à violência é transformada em força repressora ilegítima dirigida preferencialmente contra populações negras, pobres e periféricas, bem como contra grupos políticos ou indivíduos opositores. Enfim, é policialesco quando os jovens e adolescentes das favelas, geralmente pobres e negros, são quase sempre suspeitos, e por isso, extremamente vigiados pela polícia quando adentram nos shoppings centers de bairros de classe média alta ou sempre que frequentam espaços públicos que não sejam aqueles de seu próprio entorno.
Trata-se ainda de um estado moralista, sempre que, contrariamente aos princípios básicos de uma democracia liberal, pretende impor uma agenda de costumes no terreno político, na tentativa de coibir direitos das minorias sexuais, minar políticas de luta contra o racismo, preservar antigos estereótipos geradores de desigualdades, tais como a reconfiguração da mentalidade patriarcal no combate aos movimentos feministas e suas conquistas. Assim também a liberdade de criação artística é balizada pelos crivos da moral dos bons costumes, segundo padrões normativos que visam à preservação de uma tradição estereotipada e que se vê ameaçada, no intuito de inibir o surgimento de outras maneiras de ser e conviver. A moralização é estendida especialmente ao terreno da educação formal, no que concerne às polêmicas tentativas de alteração dos livros didáticos, sob a alegação de que eles sustentam uma sorte de marxismo cultural. Trata-se de padronizar especialmente livros de filosofia, ciências humanas e sociais segundo uma leitura da vida social e política do país que privilegia um tipo de identidade pautada no civismo e amor à pátria, traduzida pela adesão inconteste ao governante da ocasião, em detrimento da valorização da pluralidade dos movimentos sociais e políticos.
Finalmente, a maior marca do autoritarismo político que viceja atualmente em nosso inferno tropical é o negacionismo. São negados dados científicos, sempre que eles contradizem uma determinada maneira de governar. É o caso da demissão do diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) em meados de 2019, Ricardo Galvão, quando seu relatório científico resultante de monitoramento via satélite da floresta amazônica revela, de maneira inquestionável, o aumento exponencial de desmatamento nessa região. Ou, ainda, a publicidade do governo acerca do uso da cloroquina para o tratamento da covid-19, cuja eficácia é mundialmente contestada pela OMS para este fim específico. Ultimato foi dado pelo governo ao ex-ministro da Saúde, Nelson Teich, para alteração do protocolo de prescrição do medicamento. E quando ele se nega a mudar o protocolo sem comprovação científica, é pressionado a sair do governo. O negacionismo também diz respeito à interpretação de nosso passado, pois ele tem uma incidência ainda em nosso presente. Como a ditadura tem sido algo com o qual nossa história recente jamais acertou as contas, sua instauração enquanto ditadura tem sido veementemente negada, preferindo-a designá-la como revolução.
Por todas essas razões, e tentando responder assertivamente à pergunta elaborada, o autoritarismo que habita e convive com a atual democracia brasileira talvez esteja muito mais próximo de práticas do comunismo chinês das quais ele insiste em se afastar, do que da democracia liberal na qual ele pretende se inscrever.