Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fac | 20 Julho 2018
O Projeto de Lei 4.576/2016, que foi aprovado recentemente pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, “gerou muita confusão” e interpretações equivocadas, entre elas, a de que a venda de produtos orgânicos em supermercados estaria proibida, diz Rogério Dias à IHU On-Line. Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, ele explica as propostas do PL e suas consequências negativas para o setor de agroecologia. Entre elas, frisa, o PL “propõe que a venda direta passe a ser uma exclusividade dos agricultores familiares, mas isso é impossível uma vez que qualquer produtor orgânico que estiver regularizado perante a legislação de orgânicos poderá comercializar seus produtos em qualquer local em que seja legal fazer o comércio. O que existe de restrição — por isso a Lei 10.831/03 coloca a exceção para a agricultura familiar — é que os agricultores familiares que só fazem comercialização e venda direta não precisam da certificação, desde que façam parte de uma organização de controle social cadastrada no Ministério da Agricultura. Acabou que o projeto, da maneira como foi escrito, está transformando em regra o que era para ser exceção; isso é bastante ruim”.
Dias também chama atenção para a relação existente entre a aprovação desse PL e o PL do Veneno, que altera a legislação sobre o registro de agrotóxicos. “Os produtores orgânicos não poderão trabalhar mais com produção própria de nada. Por exemplo, a calda bordalesa, que é usada desde o século XIV na agricultura no mundo inteiro para controle de alguns fungos, agora passará a ser crime. Para não ser um criminoso, o produtor terá que comprar uma calda bordalesa produzida por uma indústria, a qual será vendida no mercado, sabe-se lá a que preço. Portanto, esse PL traz problemas gravíssimos para os produtores orgânicos, mais até do que para os produtores convencionais”, adverte.
Rogério Dias reflete ainda sobre a divisão do campo em dois setores, o agronegócio e a agricultura familiar, os incentivos do Estado para cada um deles e a falta de políticas públicas para fortalecer a agricultura familiar. “O campo brasileiro foi dividido em agronegócio e agricultura familiar e se tem a ideia de que o agronegócio é quem dá sustentabilidade ao país, é quem garante a balança de pagamento, o equilíbrio da exportação e importação, garante o PIB, mas o contraponto é que quando falamos de soberania alimentar, percebemos que esse é um campo que compete à agricultura, e há uma desproporção enorme entre essas áreas”. E pontua: “É importante ressaltar que a questão de ter créditos e recursos para financiamento é importante, mas essa não é a questão mais importante quando se trata da agricultura familiar e dos povos tradicionais, porque precisamos de outras políticas públicas. (...) É preciso ainda que o agricultor familiar tenha qualidade de vida para que seus filhos possam querer continuar a atividade dos pais, ou seja, não pode ser uma agricultura familiar em que os filhos vejam nos pais uma vida que eles não querem ter, com dificuldade, sofrimento. É preciso pensar num rural diferente, com lazer, esporte, transporte adequado, ou seja, é necessária uma revisão acerca do que é política agrícola, em vez de continuar achando que política agrícola é ficar fazendo Plano Safra”.
Rogério Dias | Foto: CI Orgânico
Rogério Dias é engenheiro agrônomo e vice-presidente da região Centro-Oeste da Associação Brasileira de Agroecologia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Na semana passada foi divulgada a notícia de que a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara aprovou um Projeto de Lei que restringe a venda de produtos orgânicos e estes poderão ser vendidos somente pelos produtores. Isso significa, na prática, que o produtor não poderá vender seus produtos para minimercados ou mesmo grandes redes varejistas? Acerca do que trata esse PL?
Rogério Dias — A divulgação deste projeto de lei gerou muita confusão porque está muito mal escrito. Com isso, houve interpretações de que estaria proibida a venda de produtos orgânicos em supermercados. Na realidade, apesar de isso não estar no projeto e ter sido mal interpretado, esse PL traz várias outras consequências muito negativas para o setor. Primeiro, porque propõe que a venda direta passe a ser uma exclusividade dos agricultores familiares, mas isso é impossível uma vez que qualquer produtor orgânico que estiver regularizado perante a legislação de orgânicos poderá comercializar seus produtos em qualquer local em que seja legal fazer o comércio. O que existe de restrição — por isso a Lei 10.831/03 coloca a exceção para a agricultura familiar — é que os agricultores familiares que só fazem comercialização e venda direta não precisam da certificação, desde que façam parte de uma organização de controle social cadastrada no Ministério da Agricultura. Acabou que o projeto, da maneira como foi escrito, está transformando em regra o que era para ser exceção; isso é bastante ruim.
Ao mesmo tempo, o PL traz outro problema para os próprios agricultores familiares, porque hoje a nossa legislação permite que os agricultores familiares sem certificação possam fazer comércio também para o governo, nas compras governamentais, como no caso da alimentação escolar e do Programa de Aquisição de Alimentos - PAA. Agora se fechou essa opção, porque, da forma como está colocado no texto, o PL definiu onde a venda direta pode acontecer. Isso porque quando o texto diz, nominalmente, quais são as formas de venda direta possíveis, tudo o que ficar de fora do texto passa a não ser permitido. Portanto, o texto deixa como opção somente a venda de produtos em propriedades particulares e feiras livres de espaço público. De fato, o projeto é muito ruim e o ideal é que seja arquivado, porque a legislação atual tem atendido as demandas do setor, ou seja, tudo está funcionando e não há necessidade de fazer as alterações que o projeto propõe. De fato, ele criou muita confusão.
IHU On-Line — Por que e em que contexto esse PL está sendo discutido neste momento? Quais são as intenções de sua aprovação e que relações podemos fazer com as ações da chamada “bancada do agronegócio”?
Rogério Dias — O que gerou a suspeita de esse PL estar relacionado com a bancada do agronegócio foi o fato de que o relator desse projeto é o mesmo deputado que foi relator do PL do Veneno, PL 6.299/02, Luiz Nishimori. Com isso, fica sempre a suspeita de que esse projeto da comercialização — PL 4.576 — entrou em discussão em 2016 e já nessa época Nishimori foi indicado como relator desse projeto na Comissão de Agricultura. Mas é aquela história: se esse projeto está na mão dele há dois anos, por que vem à tona para ser votado exatamente neste momento em que há um alvoroço, há conflitos e embates com relação ao PL do Veneno? Logicamente se começou a associar que o objetivo desse PL foi tirar a atenção das pessoas do movimento orgânico do projeto dos Agrotóxicos, ou seja, foi fazer com que as pessoas ficassem preocupadas com outra questão e com isso parassem de fazer pressão contra o PL dos Agrotóxicos. Não temos como afirmar se isso é verdade ou não, mas, de fato, é uma coincidência muito estranha que essa pauta venha à votação em um momento em que o Congresso estava praticamente fechando as portas, entrando em recesso parlamentar. Assim, fica a dúvida: qual foi o objetivo de fazer esse projeto andar exatamente neste momento? Isso não podemos afirmar, mas, de toda maneira, o fato de haver tantas pessoas mobilizadas contra o PL dos Agrotóxicos acabou tornando mais fácil ver o problema do PL dos Orgânicos e colocar esse tema na discussão de um conjunto ainda maior de pessoas.
IHU On-Line — Como acontece a venda de produtos orgânicos hoje no país e o que tende a mudar se esse PL for aprovado?
Rogério Dias — Hoje o produtor orgânico que é certificado, seja por organizações participativas, por sistemas participativos de garantia, ou certificado por auditoria — certificadoras credenciadas —, pode comercializar em qualquer lugar do Brasil, sem restrição. Agora, os produtores familiares que fazem somente a comercialização direta, que fazem parte das organizações de controle social — que hoje são mais de 400 no Brasil —, só podem fazer a comercialização diretamente ao consumidor, como em feiras ou entregas a domicílio. Por exemplo, para que ele esteja dentro de uma Organização de Controle Social - OCS e esteja no cadastro nacional, ele tem que, por obrigação, permitir a visita de qualquer consumidor que queira conhecer sua unidade de produção e saber como ele trabalha; esse é um pré-requisito. Então ele assina um documento afirmando que segue toda a legislação e se responsabiliza por isso. Os outros membros das organizações de controle social têm uma responsabilidade solidária, por isso quando um grupo desses está cadastrado, todos os produtores do grupo têm responsabilidade pela qualidade e pelo cumprimento das regras daqueles que fazem parte desse grupo. Além dessa venda direta ao consumidor, esses agricultores podem comercializar também para o governo. Esse tipo de venda é considerado uma venda direta porque é feita ao consumidor final. O que caracteriza venda direta é que a pessoa não irá revender o produto que ela comprou. Um exemplo disso é a venda para a alimentação escolar: a escola irá utilizar esses produtos na merenda dos alunos e eles não pagarão por isso. A regra hoje é bastante tranquila, está bem internalizada e vem funcionando bem no Brasil todo.
IHU On-Line — Quais são as consequências desse PL, caso ele seja aprovado, tanto para os agricultores familiares quanto para os consumidores?
Rogério Dias — A aprovação do PL seria um absurdo. Primeiro, geraria muitas ações judiciais, porque restringir a venda direta somente aos agricultores familiares é totalmente ilegal. Portanto, seria inconstitucional restringir o acesso ao mercado para pessoas que estão legalmente habilitadas para fazer a comercialização.
Esse projeto, como já disse antes, da forma como está, não tem o menor sentido de seguir adiante. A questão das restrições para os agricultores familiares, do jeito que está, geraria um prejuízo enorme, porque hoje existem muitos grupos de agricultores familiares que comercializam para o governo. Também temos de lembrar que alguns grupos de produtores estão em cidades que não têm um mercado forte de orgânicos, e muitas vezes seria inviável, pelo volume de produtos que eles têm, que tais produtos fossem levados para outra cidade onde o mercado de orgânicos já esteja estabelecido; isso poderia ser totalmente inviável. Mas que esses pequenos agricultores possam entregar os produtos, por exemplo, na escola do seu próprio município, isso sim é bastante viável, porque facilita o processo de logística e se reduzem os custos de transporte. Essa questão das compras governamentais traria um problema muito sério para muitos grupos de agricultores familiares.
IHU On-Line — Como esse PL impactaria a ação das cooperativas que, entre outros propósitos, sustenta o de venda coletiva da produção de pequenos agricultores?
Rogério Dias — A questão é: se a legislação for aprovada, as cooperativas de agricultores que trabalham, por exemplo, com certificação, seja ela participativa ou com processo de auditoria — há cooperativas que possuem certificação em grupo —, proibiriam que esses grupos de agricultores que possuem certificados fizessem venda direta; isso seria inconcebível. Acreditamos que essa questão não passará de maneira nenhuma.
IHU On-Line — Que relação podemos estabelecer entre esse projeto e a matéria que visa flexibilizar o uso de agrotóxicos na produção agrícola brasileira?
Rogério Dias — A princípio todos sabem que a proposta de mudança na lei de agrotóxicos traz um prejuízo enorme para a sociedade como um todo, mas ela tem alguns pontos que, claramente, serão muito mais problemáticos para os produtores orgânicos. Hoje, uma coisa que é tradicional — e é incentivada — na agricultura orgânica e nos processos de agricultura de base agroecológica é a redução da dependência de insumos externos. Para isso, muitas vezes, são usados produtos feitos nas propriedades, trabalha-se com caldas, extratos vegetais, controle biológico etc. E, da maneira que está colocado hoje no PL, o uso de produtos que não estejam registrados passará a ser crime que prevê, inclusive, prisão de três a nove anos.
Sabemos que o Estado jamais terá condições de estar em quase cinco milhões de propriedades agrícolas verificando quem faz ou não faz uso de produto próprio. No entanto, como os produtores orgânicos passam por um processo de certificação e para isso não podem utilizar nada que seja proibido, o que acontecerá? Os produtores orgânicos não poderão trabalhar mais com produção própria de nada. Por exemplo, a calda bordalesa, que é usada desde o século XIV na agricultura no mundo inteiro para controle de alguns fungos, agora passará a ser crime. Para não ser um criminoso, o produtor terá que comprar uma calda bordalesa produzida por uma indústria, a qual será vendida no mercado, sabe-se lá a que preço. Portanto, esse PL traz problemas gravíssimos para os produtores orgânicos, mais até do que para os produtores convencionais.
De novo: por que esse PL surge no mesmo momento que o PL do Veneno? Sabemos que parte da reação da sociedade contra o PL do Veneno é porque se tem a referência de que é possível fazer uma agricultura sem veneno, e a prova disso é a agricultura orgânica. O crescimento e a consolidação da agricultura orgânica tem sido uma “pedra no sapato” daqueles que dizem que “não é possível fazer agricultura sem veneno”, mas a agricultura orgânica é a grande prova de que é possível. Vemos que estão atacando e procurando dificultar mais a produção orgânica, o que é uma forma de dar, de certa maneira, meios para justificar que a agricultura precisa de fato de agrotóxicos e por isso a legislação é necessária para modernizar o setor.
IHU On-Line — Como avalia a chamada Lei da Agricultura Orgânica? Quais as contribuições para o setor e quais os limites dessa regulamentação?
Rogério Dias — Não entendi se a pergunta se refere à Lei 10.831 ou se a essa proposta colocada em pauta, o PL 4.576, que altera a legislação. A Lei da Agricultura Orgânica 10.831, de 2003, trouxe uma segurança para o setor, o que fez com que tivéssemos um crescimento enorme da agricultura orgânica no Brasil a partir da sua implementação em 2011. Foi um processo de construção coletiva entre governo e sociedade — isso é uma das referências fundamentais. O marco dessa legislação, seja a lei ou o decreto ou todas as instruções normativas que complementam a regulamentação, sempre foi construído numa parceria entre governo e sociedade. Agora mesmo está aberta a consulta pública à Instrução Normativa 46, que trata das normas para produção animal e vegetal orgânica, por 60 dias. Isso é de praxe, toda vez que se faz uma proposta de alteração das normas de orgânicos, ela passa por consulta pública, por discussões nas comissões de produção orgânica de todos os estados, pela Câmara temática de agricultura orgânica.
Essa foi uma preocupação do setor orgânico para que o marco legal brasileiro fosse o mais participativo possível, que congregasse diferentes elementos da sociedade participando dessa construção. Entendemos que a Lei de Agricultura Orgânica foi — e continua sendo — importante para o setor; ela é uma lei que normatiza, que dá as regras, não é uma lei de políticas de desenvolvimento. Nesse aspecto, é algo que precisamos trabalhar mais. Por isso foi muito importante a questão da criação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica - Planapo, em 2012. E, a partir dela, a criação do Plano Nacional, Planapo 1 e 2, que é o que está em vigor agora.
IHU On-Line — O incentivo ao consumo e à produção de alimentos orgânicos parece ser uma tendência mundial. Por que, no Brasil, ainda parece haver resistência na adesão, especialmente no consumo de orgânicos?
Rogério Dias — Essa é uma tendência mundial que vem crescendo a cada ano. No Brasil, desde 2005, com a criação do Programa de Desenvolvimento da Agricultura Orgânica pelo Ministério da Agricultura, começou-se a fazer campanhas nacionais, a chamada Semana dos Alimentos Orgânicos, que foi um trabalho importante para falar para o consumidor, porque também se cria um estímulo ao produtor quando se cria um estímulo ao consumo. Essas coisas têm que crescer em paralelo, porque à medida que cresce a demanda, também cresce a oferta. Isso aconteceu no país, tanto que o Brasil passou a ser um caso estudado no mundo todo porque mudou a lógica do comércio mundial de produtos orgânicos e passou a ser o primeiro país do hemisfério Sul a consumir orgânicos.
A lógica anterior era a seguinte: os países do hemisfério Sul eram produtores de alimentos orgânicos e abasteciam os países do hemisfério Norte. O Brasil inverteu essa lógica quando deu prioridade à produção orgânica para os consumidores brasileiros e foi por isso que se fizeram campanhas incentivando o comércio local. Hoje o Brasil é um país que importa produtos orgânicos da Europa e dos EUA, ou seja, o país passou a ser produtor e importador de produtos orgânicos. Essa é uma situação muito interessante, porque passou a ser um exemplo para países da América do Sul que têm demonstrado interesse em fazer o mesmo processo.
Logicamente que esse processo aconteceu no Brasil pelo próprio conhecimento do consumidor, que hoje sabe o que é um produto orgânico. No entanto, também é preciso ter tecnologia e meios para que os produtores possam produzir com condição de vender os produtos de modo que eles sejam acessíveis à população, porque ninguém quer que o produto orgânico seja um produto para um nicho de mercado. Não queremos que o produto orgânico seja produzido por poucos produtores e para um grupo pequeno de consumidores. Por isso lutamos constantemente para haver políticas públicas que possam desonerar a produção orgânica, porque hoje o produtor orgânico tem muito mais ônus para produzir do que o produtor convencional. Esses são desafios a serem enfrentados.
IHU On-Line — Como analisa as políticas do atual governo em relação ao incentivo à produção de alimentos orgânicos e à agricultura familiar?
Rogério Dias — Ocorreram retrocessos gravíssimos nos últimos dois anos e isso prejudicou muito os agricultores orgânicos, os produtores familiares, os povos tradicionais, as populações extrativistas. A expectativa é que neste ano eleitoral as pessoas se deem conta disso. É importante que a população urbana compreenda que a luta do movimento orgânico e agroecológico e das comunidades tradicionais não pode ser uma luta do campo e do meio rural, mas tem que ser uma luta de todos, porque ela interfere numa coisa que é fundamental, a alimentação de todos.
As pessoas precisam compreender que quando se está discutindo política de crédito e saúde no campo, isso é de interesse de todas as pessoas, porque afeta diretamente as comunidades do meio rural, mas indiretamente afeta toda a sociedade, pois isso muda as lógicas de toda a base do sistema agroalimentar. Espero que neste ano eleitoral possamos eleger pessoas que tenham sensibilidade para entender a importância do campo, do agricultor, de uma agricultura sustentável, que entenda que a agricultura deve atender as necessidades de hoje, mas também as das gerações futuras.
IHU On-Line — Ainda sobre políticas de incentivos à produção do campo, o Brasil sempre operou com duas formas de ofertar recursos e financiamento, o chamado Plano Safra, que se divide em um Plano destinado ao agronegócio e outro à agricultura familiar. O que essa divisão revela acerca da política pública? Essa lógica fragiliza ou potencializa a produção em pequenas propriedades?
Rogério Dias — Essa questão mostra a lógica que comentei na resposta anterior. O campo brasileiro foi dividido em agronegócio e agricultura familiar e se tem a ideia de que o agronegócio é quem dá sustentabilidade ao país, é quem garante a balança de pagamento, o equilíbrio da exportação e importação, garante o PIB. Mas o contraponto é que quando falamos de soberania alimentar, percebemos que esse é um campo que compete à agricultura, e há uma desproporção enorme entre essas áreas. É importante ressaltar que a questão de ter créditos e recursos para financiamento é importante, mas essa não é a questão mais importante quando se trata da agricultura familiar e dos povos tradicionais, porque precisamos de outras políticas públicas. Por exemplo, não adianta nada ter crédito para financiamento se não existem técnicos que possam ajudar o agricultor a fazer um projeto para apresentar ao banco, tampouco existem agentes bancários preparados para analisar projetos de base agroecológica, e não existem planilhas para fazer aprovação de crédito para o produtor orgânico.
Ou seja, se não mudar essa base, se não tivermos insumos apropriados, se não tivermos pesquisa tecnológica para que possamos ter sementes de variedades que são apropriadas para esses sistemas, nada vai mudar. Então, é importante ter políticas públicas que possam atuar em todos os gargalos existentes. É preciso ainda que o agricultor familiar tenha qualidade de vida para que seus filhos possam querer continuar a atividade dos pais, ou seja, não pode ser uma agricultura familiar em que os filhos vejam nos pais uma vida que eles não querem ter, com dificuldade, sofrimento. É preciso pensar num rural diferente, com lazer, esporte, transporte adequado, ou seja, é necessária uma revisão acerca do que é política agrícola, em vez de continuar achando que política agrícola é ficar fazendo Plano Safra.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Plano Safra não é sinônimo de política agrícola. "É preciso pensar num rural diferente". Entrevista especial com Rogério Dias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU