Por: Patricia Fachin | 16 Junho 2017
Uma das evidências da crise política atual é que a legislação ambiental tem servido de “moeda de troca” para apoio político. Um exemplo disso, constata Mario Mantovani, são as Medidas Provisórias – MPs 756 e 758, que aguardam a sanção do presidente Michel Temer. “Essas MPs são um escândalo, e aquilo que disse o ministro Herman Benjamin — que as MPs e as legislações são encomendas por interesses — ficou evidente no país. Qualquer uma dessas leis que destroem as conquistas sociais tem endereço, nome e CPF”, diz o diretor da SOS Mata Atlântica à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida pessoalmente, quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última terça-feira, 13-06-2017, ministrando a conferência “Mata Atlântica e seus ecossistemas. Desmatamento, conflitos e políticas ambientais”.
Militante há quase trinta anos na causa ambiental, Mantovani frisa que as tentativas de desmonte da legislação ambiental iniciaram ainda nos anos 90, quando o ex-presidente FHC determinou que apenas 20% da Amazônia poderia ser explorada, mas desde que o governo atual “enfraqueceu por conta do impeachment”, menciona, “a bancada ruralista ganhou muito apoio” e “o meio ambiente acabou virando uma moeda de troca: se acaba com as reservas legais e com as proteções de rios para receber apoio político e assim por diante”, constata.
Da mesma forma que “grupos compraram incentivos fiscais via BNDES, eles compraram legislações ambientais”, denuncia. Segundo ele, as MPs que possivelmente serão sancionadas pelo presidente Temer também têm como finalidade ampliar o agronegócio para a Amazônia. “O que travava a ampliação deles para a Amazônia? A legislação ambiental. Então, o que faz o governo? Encomenda MPs. Nesse negócio estão envolvidos prefeitos, grandes grupos, fazendeiros, os quais são todos ligados ao agronegócio”, informa.
Na entrevista a seguir, Mantovani comenta as principais conquistas ambientais do país e adverte que nos bastidores de Brasília “se comenta que pior do que aprovação dessas MPs será a provável aprovação do fim do licenciamento ambiental”. Se isso acontecer, pontua, “será grave e terá mais impacto do que a sanção das MPs, porque o fim do licenciamento vai pôr em xeque as questões sociais”.
Mantovani durante a entrevista, no IHU
Foto: Milena Riboli | IHU
Mario Mantovani é geógrafo e diretor de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, criada em 1986, primeira organização não governamental destinada a defender os últimos remanescentes de Mata Atlântica no país. Ele é um dos mais importantes militantes pela preservação ambiental do país, em atuação desde 1973.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Nos últimos meses, ambientalistas têm denunciado as tentativas do governo federal em aprovar algumas MPs, como a MP 756, que altera os limites da Floresta Nacional - Flona do Jamanxim, no Pará, e a MP 758, que altera os limites do Parque Nacional do Jamanxim e da Área de Proteção Ambiental do Tapajós. Há de fato uma tentativa de desmonte da legislação ambiental? Quais são os interesses que motivam esse tipo de ação e de que modo essa tentativa tem se manifestado no governo Temer?
Mario Mantovani – Essa tentativa de desmonte da legislação ambiental não é de hoje, e o governo Temer apenas está dando sequência a esse processo. Desde a promulgação da Constituição de 88 houve um grande avanço na legislação ambiental brasileira, de modo que o Brasil se destacou por ser o único país a ter um capítulo sobre meio ambiente na Constituição. Em 88 o Brasil fez um documento chamado “Nosso futuro comum”, o qual pretendia pensar o que seria o desenvolvimento sustentável que incluiria as novas gerações. Também houve um avanço no início dos anos 90, com a criação de um arcabouço jurídico, como a criação da lei das águas, a lei dos crimes ambientais e a lei da biodiversidade. Ou seja, as pautas que estavam na Eco-92 se traduziram em instrumentos jurídicos que fizeram o Brasil entrar em qualquer debate internacional sobre meio ambiente, ao contrário do que aconteceu em 1972, na Conferência de Estocolmo, na qual o Brasil entrou pela porta dos fundos.
Essa nova legislação foi impondo regras numa das questões mais difíceis do Brasil, que é a questão agrícola, porque o maior problema ambiental do país ainda é fundiário: o Brasil tem cinco milhões de propriedades e uma estrutura fundiária cruel, uma vez que 20% dos proprietários têm 80% das terras. Além disso, outra questão muito grave refere-se ao crédito agrícola: nesta semana foi lançado o Plano Safra com R$ 180 bilhões – se somarmos os investimentos em saúde e educação, eles não chegam perto desse valor. Esse dinheiro é usado para que poucas pessoas concentrem mais terras e, por consequência, mais riquezas.
O eixo envolvido na aprovação dessas MPs é o da estrada de ferro e o do escoamento dos grãos da produção de soja. Só que além desse pessoal ganhar o financiamento do crédito agrícola, eles também ganham uma infraestrutura que é construída pelo governo, como as estradas, as cidades, os postos de saúde, as escolas, ou seja, apesar de a balança brasileira ficar forte por conta desses investimentos, o custo disso é muito caro. Não tem sentido uma pessoa sair de Rondônia com um caminhão de soja e ir a Paranaguá, no Paraná. Mas a questão é que o Brasil historicamente é um país que só produziu commodities: pau-brasil, cana-de-açúcar, café, minérios.
O Brasil tem 860 milhões de hectares e dizem que 560 milhões de hectares têm dono, enquanto o restante é distribuído em parques nacionais, terras indígenas, quilombos etc. Nesses 560 milhões de hectares, há cinco milhões de propriedades. Desse montante, 60 milhões de hectares são destinados à plantação de abobrinha, uva, maçã, soja, e 200 milhões de hectares são destinados à criação de gado. De 560 para 260 milhões de hectares, há uma diferença de 300 milhões que foram apropriados e que ninguém sabe onde estão. Essas áreas seriam destinadas como áreas indígenas, quilombos, parques, áreas de preservação. Desses 60 milhões de hectares destinados à agricultura, entre 25 e 30 milhões são para plantação de soja, sete milhões para a celulose, sete milhões para a cana-de-açúcar e assim por diante. A questão é que esse cálculo não vai mudar, porque quem decide o valor desses produtos não é o mercado interno brasileiro, mas as bolsas de Chicago, de Nova Iorque, os chineses. Então, se o Brasil sugerisse aumentar a produção de 25 para 35 milhões de hectares de soja ou se aumentasse a produção de milho, não adiantaria nada, porque com o aumento da produção o preço cai, pois já se sabe quanto cada país vai produzir e comprar de cada produto. Além disso se especula se o tempo será mais seco ou mais úmido; tudo isso entra na conta, e as safras já são vendidas para daqui cinco, dez ou até quinze anos em alguns casos.
Na área da criação de gado também não vai ter alteração, e hoje nós vemos que esses 200 milhões de hectares do rebanho brasileiro se concentram em poucos frigoríficos: vimos qual foi a barbárie que aconteceu com o dinheiro público, que veio parar na mão de grandes empresas, como a JBS. Da mesma forma que esses grupos compraram incentivos fiscais via BNDES, eles compraram legislações ambientais. O que travava a ampliação deles para a Amazônia? A legislação ambiental. Então, o que faz o governo? Encomenda MPs. Nesse negócio estão envolvidos prefeitos, grandes grupos, fazendeiros, os quais são todos ligados ao agronegócio. Eles argumentam, de outro lado, que estão elevando a balança brasileira, mas a qual custo isso é feito?
Ao invés de o Brasil enviar vários navios de soja para outros países, deveria desenvolver o produto aqui, com o mínimo de processamento, porque isso geraria empregos. O Brasil faz aviões e não consegue esmagar uma “bolinha de soja”? Não faz sentido vender a matéria-prima a outro país para que essa mesma matéria-prima volte depois em forma de produto para o país.
IHU On-Line – Essa é a crítica que muitos economistas fazem quando comentam a desindustrialização do país.
Mario Mantovani – Sim, por isso a indústria brasileira é pífia, e ela não irá se desenvolver enquanto o Brasil continuar sendo um fornecedor de matéria-prima. O país fornece água, insolação, a fertilidade do solo, ou seja, todos os seus recursos naturais a um preço muito barato para outros países.
IHU On-Line – Considerando o avanço na legislação ambiental desde a promulgação da Constituição de 88, quando se iniciou a tentativa de desmonte da legislação ambiental no país?
Mario Mantovani – Quando FHC determinou, nos anos 90, que 80% da Amazônia deveria ser protegida e 20% poderia ser utilizada, justamente para preservar a floresta. Escutamos muitas críticas do Aldo Rebelo: ele dizia que os ambientalistas defendiam regras que prejudicavam o proprietário rural, mas nas cidades também existem critérios que determinam as áreas que podem ou não ser construídas. Mas o fato é que os ruralistas não queriam que prevalecesse mais essa regra do jogo de determinar que áreas poderiam ou não ser utilizadas.
Depois disso foi aprovado o novo Código Florestal, que teve como objetivo consolidar a ocupação de áreas que eram preservadas. Com a aprovação do Código, tentaram tirar o mais importante, que é a função social da terra, e com isso voltamos às Capitanias Hereditárias. À época do tráfico negreiro se questionava por que o Brasil não acabava com o tráfico escravo, e a justificativa era a de que, se acabasse com o tráfico, se acabaria com a economia do Brasil. Hoje ouvimos a mesma coisa: se houver regulamentação ambiental, se acaba com o desenvolvimento do país, como se o que está sendo feito pudesse ser chamado de desenvolvimento.
Hoje estão querendo acabar com o licenciamento ambiental, com o controle de venenos, ou seja, os avanços conquistados estão retrocedendo. O Brasil se tornou o maior consumidor de agrotóxicos não porque tem a melhor agricultura, mas porque a indústria fez um grande lobby. Além disso, a bancada ruralista ganhou muito apoio, especialmente quando o governo enfraqueceu por conta do impeachment e, nesse sentido, o meio ambiente acabou virando uma moeda de troca: se acaba com as reservas legais e com as proteções de rios para receber apoio político e assim por diante.
A SOS Mata Atlântica percebeu que, embora o desmatamento tenha diminuído nos últimos anos e nove dos 17 estados com Mata Atlântica tenham tido desmatamento zero, hoje somente quatro estados mantêm o desmatamento zero e em todos eles o ponteiro da economia não foi alterado, mas houve um movimento especulativo de terras.
IHU On-Line – Uma das críticas aos governos de esquerda é a de que eles não entendem e não valorizam a questão ambiental. Presenciou isso nos governos petistas, mesmo que o desmatamento tenha diminuído significativamente nos governos Lula?
Mario Mantovani – Sim, mas depois que iniciou a crise constitucional a situação ficou difícil. A bancada ruralista é muito forte e o governo Lula ficou refém da JBS, porque se diz por aí que o filho do Lula é sócio da JBS ou das fazendas da JBS. Não sabemos o tamanho disso, mas se começou a perceber que há muito dinheiro envolvido.
O Lula assinou a Lei da Mata Atlântica, que estava parada há 14 anos, e a Marina Silva foi ministra do governo Lula. Eu fui na posse do Lula e estava apaixonado pelo governo, mas depois começamos a perceber que a situação não era bem assim. Mesmo o Aldo Rebelo, que é o representante do PCdoB, se juntou com o que tinha de pior daquilo que o Partido Comunista foi contra no Brasil, que eram as oligarquias rurais. Ele se juntou de forma cruel com as oligarquias e disse que não deixaria o meio ambiente para as ONGs internacionais, mas veja, a SOS Mata Atlântica, por exemplo, não é uma ONG internacional. Então, esses setores ajudaram na concentração de terra no Brasil e isso terá muitas implicações ainda.
Para mim, não tem direita nem esquerda: tivemos grandes ganhos com o governo FHC e até mesmo na decadência do regime militar, quando lutamos contra a construção das usinas nucleares. Na década de 70, o Brasil disse na Conferência de Estocolmo que preferia a poluição à pobreza, e todas as empresas podres se instalaram no país.
O Brasil sempre foi muito periférico, mas em 92 passou a ser referência global nas discussões ambientais. Mesmo hoje, o Brasil foi o primeiro a ratificar o Acordo de Paris no Congresso Nacional, durante o governo Temer; não houve nenhum voto contrário. Ou seja, é uma contradição: o mesmo Congresso que ratifica o Acordo de Paris aprova outras medidas prejudiciais para o meio ambiente.
IHU On-Line – O discurso ambiental de Marina Silva não teve muita relevância na última eleição presidencial? O que aconteceu, na sua avaliação?
Mario Mantovani – A Marina teve um bom desempenho com a questão ambiental, mas não teve o pique político para concorrer às eleições. De todo modo, agora está evidente por que ela não conseguiu concorrer: porque as campanhas da Dilma e do Aécio foram irrigadas de dinheiro das empreiteiras. A Marina não teria a menor chance de concorrer nesses moldes. Veja o que os marqueteiros dizem sobre o modo como funcionavam as campanhas: a barbárie se instalou no Brasil na forma da corrupção, porque não é que essas empresas apostavam no país, ao contrário, estavam interessadas em qual retorno teriam. Uma ganharia uma refinaria, outra ganharia investimentos na Petrobras, outra ganharia um frigorífico, e agora a sociedade está vendo o que estava em jogo nessas campanhas. Esse mesmo jogo que acontece no Congresso também ocorre nos estados e nos municípios, e em todos eles a única trava para o desenvolvimento de novas obras é o licenciamento ambiental: veja o caso de Belo Monte, de Mariana, a transposição do Rio São Francisco. É por isso que Romero Jucá defende que os portos, os aeroportos e as estradas não precisem mais de licenciamento ambiental. Chega a ser uma proposta insana.
IHU On-Line - Como o senhor avalia especificamente as MPs 756 e 758? Se sancionadas, quais suas implicações para a região do Jamanxin?
Mario Mantovani – Agora é preciso levantar quais são as pessoas que estão por trás dessas MPs e quanto pagaram por elas. Certamente essas MPs têm nome e endereço, basta ver quem está no Cadastro Ambiental Rural - CAR. Sabemos que prefeitos e deputados estão envolvidos, e se sabe que há uma região que vai explodir do ponto de vista da especulação fundiária.
Costumamos dizer em Brasília que sabemos como uma MP começa, mas ninguém sabe como termina. Essas MPs estão relacionadas à Amazônia, mas têm envolvimento de outros estados, porque todo mundo tenta pôr tudo que pode numa MP e depois tenta negociar com o Executivo; aí vale a moeda de troca. Por isso essas MPs são um escândalo, e aquilo que disse o ministro Herman Benjamin — que as MPs e as legislações são encomendas por interesses — ficou evidente no país. Qualquer uma dessas leis que destroem as conquistas sociais tem endereço, nome e CPF.
IHU On-Line – Vislumbra a expectativa de se avançar na legislação ambiental, dada a probabilidade de sanção dessas MPs e a cena que o país assistiu na última sexta-feira, com a absolvição da chapa Dilma/Temer, depois de todas as denúncias de corrupção envolvendo as campanhas desse governo?
Mario Mantovani – Esse foi um péssimo exemplo, mas ao mesmo tempo a indignação no país cresceu proporcionalmente. Além disso, temos de reconhecer que todos os políticos foram eleitos com o voto popular, mas nós vamos ter que aprender com esses exemplos: vamos ter que aprender a votar melhor. Veja que o Brasil, por exemplo, é o país que mais mata ambientalistas e ativistas sociais, mas também é o país do mundo que mais mata pessoas em geral, então, o ambientalista é só mais um, porque há 50 mil mortes por semana no país.
O mau exemplo está vindo da falta de justiça: essa Justiça que absolve e não alcança o poderoso, cria depósitos de presos que ficam apodrecendo e sendo degradados. Estamos falando de um processo civilizatório; o Brasil está muito atrasado. Até achamos estranho que tenha se avançado nesses temas em tão pouco tempo.
Estamos num processo de mudança violento, e essa mudança vai exigir que as empresas respondam melhor aos seus consumidores, porque a preocupação das empresas não é com a lei, pois elas compram a lei, mas sim com o modo como a sociedade interage com elas. Eu gosto muito de dar o exemplo da Sadia: se pegarmos todos os ativos da empresa, como os aviões, os carros, as fazendas, o maquinário, tudo isso não vale o que vale o nome Sadia, ou seja, os nomes hoje são muito mais fortes e aquilo que era uma grande indústria anos atrás, hoje não é mais. Veja o exemplo do Facebook, que é uma das maiores empresas do mundo, e da mesma forma a maior rede de hotéis do mundo é o Airbnb.
Eu estudei na Venezuela quando havia ditadura no Brasil e à época fazia 50 anos que não havia ditadura lá, era um paraíso na Terra, e veja o que virou a Venezuela hoje. Meu melhor professor tinha sido ministro da Reforma Agrária do governo Allende, e ele dizia que a Venezuela era o país. Imagina o que ele diria hoje.
Imagine se denunciamos, por exemplo, que a Gerdau faz um determinado tipo de compra que tem um impacto para a sociedade. A própria empresa será a primeira a correr, porque sabe que isso causará um impacto nos acionistas, ou seja, na medida em que as empresas começam a entrar num mercado que exige sustentabilidade, começa a surgir algo novo, com o qual não sabíamos lidar antes.
IHU On-Line — Além dessas MPs, quais diria que são as demais tentativas de fragilizar a legislação ambiental? O que está sendo discutido nos bastidores de Brasília neste momento sobre essa questão?
Mario Mantovani — Nos bastidores se comenta que pior do que aprovação dessas MPs será a provável aprovação do fim do licenciamento ambiental. Se isso acontecer, será grave e terá mais impacto do que a sanção das MPs, porque o fim do licenciamento vai pôr em xeque as questões sociais. O fim do licenciamento será cruel, porque ele tirará a competência de decisão dos municípios e autorizará as empresas a não darem compensações para as cidades ao construírem uma obra.
Hoje [13-06-2017] foi retirada da pauta do Congresso a possibilidade de dar mais prazo para o Cadastro Ambiental Rural – CAR. No Rio Grande do Sul, até o ano passado, a Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul - FARSUL dizia para os agricultores não fazerem o CAR, por conta da questão fundiária. Portanto, essa medida do Código Florestal de dar mais prazo para a realização do CAR é ruim.
Outra questão complicada na área ambiental é a permissão de retirar a letra “T” do rótulo dos produtos transgênicos. Além disso, há muitos problemas em relação à questão das Terras Indígenas e também é muito grave a aprovação da MP 759, porque ela anistia todo mundo que roubou terras até hoje.
IHU On-Line — Quais foram as piores consequências ambientais desde a aprovação do novo Código Florestal há cinco anos?
Mario Mantovani — Tudo o que falávamos que iria acontecer, aconteceu, e olha que o Código ainda está sub judice. Eu diria que as piores consequências são aquelas relacionadas à redução das margens dos rios e a áreas de preservação permanente e reserva legal. Veja, a medida das margens dos rios foi reduzida para cinco metros, e com isso o Rio dos Sinos, que precisa ser recuperado, jamais será, porque é uma região de alta drenagem. Então, essa alteração nas margens de rios e nascentes foi um desastre sem tamanho. O Código Florestal foi um grande desastre no Brasil, aliás, o maior desastre que vimos do ponto de vista de quem milita pelo meio ambiente e pelos recursos naturais; ele afetou a diversidade, a água, o clima.
A proposta do pôr fim ao licenciamento ambiental é decorrência do Código Florestal. O que está disposto na proposta do fim do licenciamento é que toda a atividade agropecuária e de silvicultura não precisará mais de licenciamento. O que eles não conseguiram aprovar no Código Florestal tentarão aprovar agora sugerindo o fim do licenciamento.
IHU On-Line — Quais são as consequências desse desmonte da legislação na próxima década?
Mario Mantovani — O retrocesso será de duas ou três décadas. Mas o pior de tudo é acabar com conquistas sociais, com as políticas públicas e ficar com as políticas endereçadas. Por sorte, agora estamos vendo que essas MPs são aprovadas porque há interesses envolvidos.
IHU On-Line — O que seria uma forma adequada de distribuir terra no país, dado que o discurso da Reforma Agrária já é visto por muitas pessoas como ultrapassado?
Mario Mantovani — Sim, esse discurso já passou, mas primeiro é preciso consolidar as áreas que são de acesso comum, como os parques. Vou usar como exemplo o turismo, que é a maior indústria do mundo hoje: 70% do orçamento da França é destinado ao turismo, assim como é o da Espanha, da Itália e da Inglaterra. Hoje em dia não existe mais aquela coisa dos países industriais; a indústria hoje é a do iPad e do iPhone - a linha do mundo mudou. O turismo cresce porque as pessoas têm mais tempo e o dinheiro circula muito melhor.
O Brasil recebe cinco milhões de turistas, e a Amazônia, que é o ideal selvagem do mundo, recebe menos de 1% dos turistas do país. A Costa Rica, que é menor do que o estado de São Paulo e do que o Rio Grande do Sul, recebe 20 milhões de turistas; então tem alguma coisa errada. O Brasil, que é o paraíso na Terra do ponto de vista ambiental, não recebe ninguém. É lógico que a violência espanta os turistas, mas nós temos atrativos naturais que não têm comparação com outros países.
O problema é que no Brasil a ocupação das áreas foi feita do jeito errado: o litoral se tornou a segunda moradia dos brasileiros, não foi o turismo que tomou conta do litoral. Entretanto, quem tem casa na praia vai até lá no feriado de Ano Novo, no feriado de Carnaval, no feriadão de Corpus Christi, e vai lá para ver o que o ladrão roubou outra vez. É isso o que acontece. E como as pessoas usam a praia como segunda moradia, foi preciso montar uma estrutura para as cidades de praia, mas essas cidades acabam ficando vazias ao longo do ano.
Quando falamos em como pensar uma nova economia da inteligência e do turismo, estamos matando a “galinha dos ovos de ouro”. Toda essa terra que está aí hoje, que não foi convertida em alguma coisa, está sendo usada só para a pessoa dizer que é dona da terra. Essas áreas deveriam estar sob a guarda do poder público não como um estoque acumulativo, mas como uma coisa que é nossa, ou seja, essas áreas poderiam ser utilizadas como parques, como fazendas coletivas, alguma coisa nesse sentido. Ainda existem coisas para inventarmos e fazermos com essas terras, que não seja deixá-las nas mãos de alguém que queira somente especular.
Caxias do Sul é o nosso melhor exemplo – vou contá-lo para você. Quando percebemos que o Código Florestal seria ruim do ponto de vista ambiental, eu lembro que o [Luis Carlos] Heinze me infernizava dizendo: “Você não quer deixar o colono da maçã e da uva conseguirem seu pão”. Na verdade, eu só quero que protejam o rio e a biodiversidade, porque isso é a garantia para o desenvolvimento da agricultura. Conclusão: nós viemos para Caxias do Sul quando se fazia propaganda contra o Código Florestal deles, e fomos trabalhar com 4.400 propriedades que fornecem 70% da comida do Rio Grande do Sul — 70% da comida que vai para o Ceasa vem da produção agrícola que é registrada em Caxias do Sul. Nessa época, fizemos o cadastro ambiental de todas as propriedades da região, de graça, com o dinheiro do Fundo Municipal de Meio Ambiente: foi um trabalho feito com cada um dos proprietários, não teve conflito de vizinhança, e o cadastro foi muito bem-feito e registrado. Conclusão: mais de 80% das propriedades estavam de acordo com o Código Florestal anterior. Logo, vemos que não havia uma preocupação com o pequeno produtor. Onde estava o “pulo do gato”? Na Lei da Mata Atlântica que ajudamos a fazer.
Com a legislação da Mata Atlântica, passamos a ter uma base legal do que é agricultura familiar, essa que não recebe quase nada desse butim que é o roubo do dinheiro público. Essas pequenas propriedades, de até quatro módulos, deveriam ser consideradas na Lei do Código Florestal porque isso já estava definido em lei, mas os que eram contra alegavam que isso deveria ser determinado para todo mundo, não só para o pequeno produtor. Com isso, questionávamos por que o Heinze estava defendendo os pequenos produtores e depois queria expandir os quatro módulos para todos os proprietários de terras. Quando fomos verificar o módulo rural em Mato Grosso, no Pará e em outros lugares, verificamos que o que aqui é 20 ou 15 hectares, nesses outros estados passa a ser 600, 1.000 e 1.200 hectares. Consequentemente a pessoa ganha quatro mil hectares sem precisar fazer nada, e pode fazer o que quiser nessa área.
Nesse sentido, Caxias do Sul foi a prova de que o pequeno produtor cumpriu a lei, não recebeu benefícios, tira seu sustento da agricultura e tem menos de 6% ou 7% de área para ser recuperado. Hoje Caxias do Sul tem quatro mil propriedades registradas, é o único município do Rio Grande do Sul que cumpriu 100% do Cadastro Ambiental Rural e agora está fazendo as áreas de propriedades periurbanas no entorno da cidade, que é a área onde são produzidos os vinhos. Esse aspecto muda o patamar da discussão: os ambientalistas não são contra o pequeno produtor; é o inverso, nós somos a favor dos pequenos, nós somos contra a esse movimento especulativo.
IHU On-Line — Como avalia a decisão dos EUA de deixar o Acordo de Paris?
Mario Mantovani — É a melhor coisa que aconteceu, no sentido figurado. O mau exemplo de Trump foi grave, mas a arrogância americana e a forma como ele fez o anúncio, querendo desqualificar um processo em que o mundo todo participou, foi um erro absurdo. Trump tirou do túmulo o carvão, que o resto do mundo já tinha enterrado. Além disso, vai optar pelo fracking [fraturamento hidráulico] dentro dos poços, mesmo sabendo que essa prática contamina o solo.
De outro lado, a saída dos EUA do acordo põe a discussão climática em evidência novamente e mostra que o Acordo tinha robustez. O compromisso que os EUA não honraram expõe o próprio país mais uma vez, pois foram eles que espoliaram o mundo, e eram eles que tinham de fazer uma reparação aos demais países.
Temos que aproveitar essa situação para dar o recado certo. Eu vejo que ele fez um grande favor ao mundo, fez um desfavor aos americanos, mas traz o debate do clima para um nível melhor. Mostra também um pouco mais dos Estados Unidos: apesar da decisão do presidente, nem todos os estados concordaram nem estão obedecendo a decisão. Além disso, as principais empresas americanas decidiram não apoiar Trump: a GM [General Motors] e a Ford se manifestaram dizendo que vão procurar fontes alternativas para desenvolver seus carros, até porque se elas não fizerem isso, o concorrente vai fazer, e os chineses estão entrando no mundo e já tem fábricas de carros elétricos em Campinas.
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Legislação ambiental é moeda de troca na crise política. Entrevista especial com Mario Mantovani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU