08 Dezembro 2016
“Tudo o que está na Amoris Laetitia foi aprovado por mais de dois terços dos padres sinodais”. Foi assim que o Papa Francisco defendeu sua exortação apostólica dos ataques dos cardeais das dubia, e voltou a insistir em sua visão de uma Igreja “sinodal” – não “piramidal” – que escuta e aprende, discerne e harmoniza tudo o que surge das igrejas locais.
Em uma entrevista concedida ao semanal católico belga Tertio, Francisco também falou a respeito da laicidade e do laicismo, do diálogo inter-religioso e do papel dos meios de comunicação na sociedade, além de fazer seu próprio balanço do recém-encerrado Ano Jubilar da Misericórdia.
A entrevista é publicada pela Sala de Imprensa do Vaticano, 07-12-2016. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Representante dos bispos para os meios de comunicação...
Você já me trouxe, certa vez, alguns jovens que me fizeram boas perguntas...
Há um papa que oferece boas respostas...
Eu aguardo um pouquinho... Quero ver as perguntas, não as vi...
Em nosso país, estamos vivendo um período em que política nacional quer separar a religião da vida pública, por exemplo, no currículo educacional. É opinião que, em tempos de secularização, a religião tem que ser reservada à vida privada. Como podemos ser ao mesmo tempo Igreja missionária, indo à sociedade, e viver a tensão criada por esta opinião pública?
Bom, eu não quero ofender ninguém, mas esta postura é uma postura antiquada. Esta é a herança que a Ilustração nos deixou – não é verdade? –, onde todo feito religioso é uma subcultura. É a diferença entre laicismo e laicidade. Falei isto com os franceses. O Vaticano II nos fala da autonomia das coisas e dos processos ou das instituições. Há uma sadia laicidade, por exemplo, a laicidade do estado. Em geral, o estado leigo é bom. É melhor que um estado confessional, porque os estados confessionais acabam mal. Mas uma coisa é laicidade e outra coisa é laicismo. E o laicismo fecha as portas à transcendência: à dupla transcendência, tanto a transcendência para os demais como, sobretudo, a transcendência para Deus. Ou para o que está Para Além. E a abertura à transcendência faz parte da essência humana. É parte do homem. Não estou falando de religião, estou falando de abertura à transcendência. Então, uma cultura ou um sistema político que não respeite a abertura à transcendência da pessoa humana, poda, corta a pessoa humana. Ou seja, não respeita a pessoa humana. Isto é mais ou menos o que eu penso. Então, mandar para a sacristia qualquer ato de transcendência é uma assepsia. Que não condiz com a natureza humana, corta-se da natureza humana boa parte da vida, que é a abertura.
O senhor se preocupa com a relação inter-religiosa. Em nossos tempos, convivemos com o terrorismo, com a guerra. Às vezes, comenta-se que a raiz das guerras atuais está na diferença entre religiões. O que dizer sobre isto?
Acredito que sim, o comentário existe. Mas nenhuma religião como tal pode fomentar a guerra. Porque, nesse caso, está proclamando um deus de destruição, um deus de ódio. Não se pode fazer a guerra em nome de Deus ou em nome de uma postura religiosa. Não se pode fazer a guerra. Em nenhuma religião. São utilizadas deformações religiosas para justificá-la. Isto sim. Vocês são testemunhas disso, viveram isso em sua pátria. Mas são deformações religiosas que não são a essência do religioso. O religioso, pelo contrário, é amor, unidade, respeito, diálogo, todas essas coisas, mas não nesse aspecto. Ou seja, nisso é preciso ser taxativo. Ou seja, nenhuma religião pelo fato religioso proclama a guerra. Deformações religiosas, sim. Por exemplo, todas as religiões têm grupos fundamentalistas. Todas. Nós também. E a partir daí, destroem pelo seu fundamentalismo. São esses grupinhos religiosos que deformaram, “adoeceram” a própria religião, e daí briga, faz guerra, ou provoca divisão na comunidade, que é uma forma de guerra. Mas esses são os grupos fundamentalistas que todas as religiões possuem. Sempre há um grupinho...
Outra questão de guerra. Fazemos memória dos 100 anos da Primeira Guerra Mundial. O que o senhor diria ao continente europeu a respeito do lema pós-guerra “Nunca mais a guerra”?
Falei três vezes ao continente europeu: duas em Estrasburgo e uma no ano passado ou neste ano – não me recordo –, por ocasião do Prêmio Carlos Magno [6 de maio de 2016]. Acredito que esse “Nunca mais a guerra” não foi levado a sério, porque após a primeira veio a segunda, e após a segunda, existe a terceira que estamos vivendo agora, a pezzeti, em pedacinhos. Estamos em guerra. O mundo está fazendo a terceira guerra mundial: Ucrânia, Oriente Médio, África, Iêmen... É muito sério. Então, “nunca mais a guerra” da boca para fora, mas enquanto isso nós fabricamos armas, e as vamos vendendo, e as vamos vendendo aos próprios adversários. Porque um mesmo fabricante de armas vende a este e a este, que estão em guerra entre eles. É verdade. Há uma teoria econômica que eu nunca procurei apurar, mas li em vários livros: que na história da humanidade, quando um Estado observava que seu orçamento não progredia, faziam uma guerra e colocavam em equilíbrio seus balanços. Ou seja, é uma das formas mais fáceis de fazer riqueza. Claro, o preço é muito caro: sangue. Esse “Nunca mais a guerra” acredito que é algo que a Europa disse sinceramente, disse sinceramente. Schumann, De Gasperi, Adenauer... disseram sinceramente. Mas, depois... Hoje em dia, necessita-se de líderes; a Europa precisa de líderes, líderes que sigam adiante... Bom, não vou repetir o que disse nos três discursos.
Há alguma possibilidade que o senhor venha a Bélgica por esta data comemoração?
Não, não está previsto, não. Não está previsto. Eu ia a cada um ano e meio na Bélgica, quando era [superior] provincial, porque aí existia uma associação de Amigos da Universidade Católica de Córdoba. Eu era chanceler... Então, ia lá para lhes falar. Eles faziam seus Exercícios [espirituais]. E ia para lhes agradecer. E adquiri um carinho pela Bélgica. Para mim, a cidade mais linda da Bélgica não é a sua..., mas Bruges... [sorri]
Preciso lhe dizer que meu irmão é jesuíta.
Verdade? Não sabia!
Por isso, apesar de ser jesuíta é boa gente.
Eu ia lhe perguntar se era católico... (ri e riem)
Estamos encerrando o Ano da Misericórdia. Pode dizer como viveu o ano e o que espera com o encerramento do ano?
O Ano da Misericórdia não foi uma ideia que me ocorreu de repente. Vem desde o beato Paulo VI. Já Paulo VI havia dado alguns passos para redescobrir a misericórdia de Deus. Depois, São João Paulo II assentou muito isto com três fatos: a encíclica Dives in Misericordia, a canonização de Santa Faustina e a Festa da Divina Misericórdia na Oitava de Páscoa; e ele morre em uma véspera desta festa. E aí já encaminhou a igreja neste caminho. E eu senti que o Senhor queria isto. Foi, foi... Não sei como se formou a ideia em meu coração, mas um belo dia disse a Dom Fisichella, que veio por assuntos de seu dicastério. Disse-lhe: “Como gostaria de fazer um Jubileu, um Ano Jubilar da Misericórdia”. E ele me disse: “E por que não?”. E assim iniciou o Ano da Misericórdia. É a melhor prova de que não foi uma ocorrência humana, mas, sim, veio de cima. Acredito que o Senhor a inspirou. E evidentemente fez muito bem. Por outro lado, o fato do Jubileu não ter sido só em Roma, mas em todo o mundo, em todas as dioceses, e dentro de cada diocese, como que movimentou, movimentou, e as pessoas se mobilizaram muito. Mobilizaram-se muito e se sentiu o chamado a se reconciliar com Deus, a reencontrar o Senhor, a sentir a carícia do Pai.
O teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer fez a distinção entre a graça barata e a preciosa. O que significa para o senhor a misericórdia barata ou preciosa?
A misericórdia é preciosa e barata. Não sei como é o texto de Bonhoeffer, não o conheço quando explica isto. Mas... É barata porque não é necessário pagar nada: não é preciso comprar indulgências, é puro presente, puro dom; e é preciosa porque é o dom mais precioso. Há um livro baseado em uma entrevista que concedi, cujo título é “O nome de Deus é Misericórdia”, e é preciosa porque é o nome de Deus: Deus é Misericórdia. Faz-me recordar desse padre que tinha em Buenos Aires – que continua celebrando missa e trabalha, e tem 92 anos! –, que ao iniciar a Missa sempre dá alguns avisos. É muito enérgico. 92 anos, prega muito bem, as pessoas vão para escutá-lo. “Por favor, desliguem seus telefones”.... e então a missa, e iniciava o ofertório, e um telefone. Parou, e disse: “Por favor, desliguem o telefone”. E o coroinha que estava ao lado lhe disse: “Padre, é o seu”. E então ele o pegou e disse: “Alô” (Riem).
Para nós, parece que você está apontando o Vaticano II nos tempos de hoje. Vai nos apontando caminhos de renovação na Igreja. A Igreja sinodal... No sínodo explicou sua visão da Igreja do futuro. Poderia explicá-lo para nossos leitores?
A “Igreja sinodal”. Tomo esta palavra. A Igreja nasce das comunidades, nasce da base, da comunidade, nasce do batismo, e se organiza em torno de um bispo que a convoca, lhe dá força. O bispo que é sucessor dos apóstolos. Esta é a Igreja. Mas em todo o mundo há muitos bispos, muitas igrejas organizadas, e existe Pedro. Então, ou há uma Igreja piramidal, onde o que diz Pedro se faz, ou há uma Igreja sinodal, onde Pedro é Pedro, mas acompanha a Igreja e a faz crescer, a escuta; mais ainda, ele aprende disso, e vai se harmonizando, discernindo o que vem das igrejas, e faz a devolução. A experiência mais rica disto foram os dois últimos sínodos. Ali, foi ouvido todos os bispos do mundo, com a preparação, todas as igrejas do mundo: as dioceses, trabalharam. Todo esse material veio. Depois, voltou. E voltou uma segunda ao segundo sínodo para completar isto.
Daí surgiu a Amoris Laetitia. É curioso a riqueza da diferença de matizes. É próprio da igreja. É unidade na diferença. Isso é sinodalidade. Não mandar de cima para baixo, mas ouvir as igrejas, harmonizá-las, discernir. Então, há uma exortação pós-sinodal, que é a Amoris Laetitia, que é o resultado de dois sínodos, onde trabalhou toda a Igreja, e que o Papa tornou sua. Expressa isto de uma maneira harmônica. É curioso: tudo o que está aí [na Amoris Laetitia] no sínodo foi aprovado por mais de dois terços dos padres. O qual é uma garantia. Uma igreja sinodal significa que acontece este movimento de cima para baixo, de cima para baixo. Nas dioceses, o mesmo. Mas há uma fórmula latina que diz que as igrejas sempre estão cum Petro e sub Petro (com Pedro e sob Pedro). Pedro é a garantia da unidade da Igreja, o abonador. Sendo assim... esse é o sentido. E é necessário progredir na sinodalidade. Que é uma das coisas que os ortodoxos conservam. E as Igrejas católicas orientais também. É uma riqueza deles. Eu a reconheço na encíclica.
Para mim, parece que a passagem que o sínodo fez é do método “ver, julgar e agir” para “escutar, compreender e acompanhar”. É muito distinto. São as coisas que eu digo as pessoas constantemente. A passagem que faz o sínodo é de “ver, julgar e agir” para escutar a realidade das pessoas, compreendê-la bem e, depois, acompanhar as pessoas em seu caminho.
Porque cada um disse o que pensava, sem medo de se sentir julgado. E todos estavam em atitude de escuta, sem condenar. Em seguida, discutia-se como irmãos nos grupos. Uma coisa é como irmãos e outra é condenar a priori. Houve aí uma liberdade de expressão muito grande. E isso é lindo.
Em Cracóvia, o senhor ofereceu aos jovens incentivos preciosos. Qual seria uma mensagem particular para os jovens de nosso país?
Que não tenham medo, que não tenham vergonha da fé, que não tenham vergonha de buscar caminhos novos. Há jovens que não são crentes: não se preocupe, busque o sentido da vida. Eu daria dois conselhos a um jovem: “buscar horizontes” e “não se aposente aos 20 anos”. É muito triste ver um jovem aposentado aos 20-25 anos. Busque horizontes, segue adiante e continue trabalhando nesta tarefa humana.
Uma última pergunta, Santo Padre, uma opinião sobre os meios de comunicação.
Os meios de comunicação têm uma responsabilidade muito grande. Hoje em dia, em suas mãos está a possibilidade e a capacidade de formar opinião. Podem formar uma boa ou má opinião. Os meios de comunicação são construtores de uma sociedade. Por si mesmos, são para construir. Para intercambiar. Para confraternizar, para fazer pensar, para educar. Em si mesmos são positivos. É claro que, como todos somos pecadores, também os meios de comunicação podem cair – nós que atuamos nos meios de comunicação, eu estou aqui utilizando um meio de comunicação – em provocar dano. E os meios de comunicação têm suas tentações. Podem ser tentados à calúnia (então, utilizados para caluniar e sujar as pessoas), sobretudo no mundo da política; podem ser utilizados como difamação (toda pessoas tem direito a boa fama, mas por aí, em sua vida interior ou em sua vida passada, há dez anos, teve um problema com a justiça ou um problema em sua vida familiar... então, lançar isto à luz hoje é grave, provoca dano, anula-se uma pessoa). Na calúnia, se diz uma mentira de uma pessoa. Na difamação, se puxa um tapete – como dizemos na Argentina, se faz um carpetazo -, e apresentam algo que é verdade, mas que já passou. E talvez você já tenha pagado com a prisão, ou com uma multa, ou com o que quer que seja, esse crime. Não existe direito para isso. Isso é pecado e faz mal. E uma coisa que pode provocar muito dano nos meios de comunicação é a desinformação. Ou seja, diante de qualquer situação, dizer uma parte da verdade e não outra. Não! Isso é desinformar. Porque você apresenta ao telespectador a metade da verdade. E, portanto, não consegue fazer um juízo sério sobre a verdade completa. A desinformação é provavelmente o maior dano que um meio de comunicação pode provocar. Porque orienta a opinião em uma direção, retirando a outra parte da verdade. E depois eu acredito que os meios de comunicação precisam ser muito limpos, muito limpos e muito transparentes. E não cair - sem ofender, por favor - na doença da coprofilia: que é buscar sempre comunicar o escândalo, comunicar as coisas feias, ainda que sejam verdade. E como as pessoas têm a tendência à coprofagia, se pode fazer muito dano. Sendo assim, eu diria essas quatro tentações. Mas, são construtores de opinião e podem edificar e fazer um bem imenso, imenso.
Encerrando, apenas uma palavra para os sacerdotes. Não um discurso, porque estão me dizendo que preciso encerrar... O que é o mais importante para um sacerdote?
É uma resposta um pouco salesiana. Sai do meu coração: “Recorde-se que você tem uma mãe que lhe quer. Não deixe de amar sua mãe, a Virgem”. Segundo: deixe-se olhar por Jesus. Terceiro: busque a carne sofredora de Jesus nos irmãos. Aí, você se encontrará com Jesus. Isso como base. Daí sai tudo. Se você é um sacerdote órfão, que se esquece que possui uma mãe, se você é um sacerdote que se desprende daquele que lhe chamou, que é Jesus, nunca poderá levar o Evangelho. Qual é o caminho? A ternura. Que os padres não tenham vergonha de ter ternura. Acariciem o sangue sofredor de Jesus. Hoje, é preciso uma revolução da ternura neste mundo que sofre a doença da cardioesclerose.
A cardio...?
A cardioesclerose.
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“Tudo o que está na ‘Amoris Laetitia’ foi aprovado por mais de dois terços dos padres sinodais”. Entrevista com o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU