22 Agosto 2016
"Não estou dizendo que as pessoas não devam pressionar o governo a fazer mais para a promoção da liberdade religiosa no exterior – eu próprio faço isso –, mas as teorias da conspiração não devem têm espaço em nossas discussões sobre liberdade religiosa internacional. Se os conservadores querem fazer acusações sérias contra o governo, então precisam apresentar coisas melhores do que o emprego da palavra “culto” ao invés de “religiosa”, a não ser que essa conspiração inclua também Roosevelt e Reagan", escreve Thomas Reese, jornalista e jesuíta, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 18-08-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Numa das primeiras apresentações públicas da plataforma de governo do Partido Democrata, declarou-se que “Estamos horrorizados pelo genocídio de cristãos e yazidis e pelos crimes contra a humanidade no Oriente Médio cometidos pelo ISIS a muçulmanos e outros”. O texto afirmava ainda: “Faremos tudo o que pudermos para proteger as minorias religiosas e o direito fundamental de liberdade de culto e de fé”.
Estas declarações não geraram muito debate no partido, que estava ocupado lutando em defesa do salário mínimo, na questão da Parceria Transpacífico e em outras frentes. Poder-se-ia achar que tais trechos não contêm nada de polêmico, mas, na verdade, o partido quase pisou numa mina política ao empregar as palavras “liberdade de culto” em vez de “liberdade religiosa”.
Sou o presidente da Comissão sobre Liberdade Religiosa Internacional dos EUA – USCIRF (na sigla em inglês), mas as opiniões expressas neste artigo são minhas e não representam necessariamente os pontos de vista da citada comissão.
Muito embora a maioria das pessoas não iria notar a diferença, “liberdade religiosa” é considerado um termo mais amplo. Ele inclui o culto, mas também o direito dos fiéis a evangelizar, a mudar de religião, a ter escolas e instituições de caridade e a participar no espaço público.
A triste verdade é que alguns Estados e algumas sociedades toleram as minorias religiosas, desde que se mantenham confinadas a seus lugares de culto e não se façam presentes nos demais espaços da sociedade. Mas se tentam converter alguém, se alguém sai da religião dominante para uma outra, ou membros da religião minoritária se pronunciam sobre assuntos públicos, eles sentirão a força total do governo e da sociedade sobre suas cabeças.
Quando o governo Obama empregou a frase “liberdade de culto”, a blogosfera conservadora se pôs a apresentar críticas e teorias. A atitude foi vista como um abandono da luta diplomática tradicional pela liberdade religiosa internacional. Ela foi vista como estando em sintonia com os supostos ataques do governo contra a liberdade religiosa nacional, com o seu apoio à política contraceptiva e aos direitos dos homossexuais.
O presidente Obama e a secretária de Estado Hillary Clinton foram tratados como inimigos da liberdade religiosa.
Que era uma falsa polêmica ficou claramente exposto em um artigo excelente de 2012 escrito por Paul Moses e publicado na revista Commonweal.
Em primeiro lugar, Moses aponta que o termo “liberdade de culto” foi o suficiente para o presidente Franklin Roosevelt englobar suas Quatro Liberdades em um discurso perante o Congresso Federal em 06-01-1941, quando defendeu “a liberdade de qualquer pessoa a adorar a Deus em sua própria maneira – em qualquer lugar do mundo”.
Moses poderia ter acrescentado que Ronald Reagan falou também da “liberdade de culto” e não de “liberdade religiosa” no Vaticano em 1987 após se encontrar com o Papa João Paulo II.
“O mesmo termo serve agora de prova aos que acusam o governo Obama de estar decidido a subverter a liberdade de religião”, escreveu Moisés”, escreve o autor.
Será que o emprego de “liberdade de culto” em lugar de “liberdade religiosa” era parte um plano diabólico consciente deste governo?
Alguns acham que sim. “Se o equívoco tivesse ocorrido apenas uma ou duas vezes, poderíamos concluir que fora apenas um acidente retórico”, afirmou Ashley E. Samelson no sítio First Things. “No entanto, o presidente e sua secretária de Estado já substituíram ‘liberdade de religião’ por ‘liberdade de culto’ por inúmeras vezes que não se pode mais dizer ser acidental”.
“Por inúmeras vezes?”, pergunta-se Moses. “Quantas exatamente?”
O articulista conferiu os sítios eletrônicos do Departamento de Estado e da Casa Branca e, na realidade, descobriu que o atual governo continuamente emprega a frase “liberdade religiosa”.
Por exemplo, “o compromisso duradouro de nosso país com o direito humano fundamental à liberdade religiosa estende-se para além das nossas fronteiras, na medida em que defendemos (…) a possibilidade de escolher e viver sua fé”, disse Obama em um discurso à nação. “O meu governo irá continuar se opondo às tendências crescentes em muitas partes do mundo de restrição à expressão religiosa”.
Moses observa: “Há muitos outros exemplos [do emprego da expressão liberdade religiosa]”. E escreve: “Pude encontrar apenas duas referências a ‘liberdade de culto’. Ambas ao lado do termo ‘liberdade de expressão’ (como o fez Franklin D. Roosevelt)”.
“Os termos ‘liberdade de culto’ e ‘liberdade religiosa’ são frequentemente usados alternadamente”, conclui o autor. “Há uma diferença no significado, mas o esforço em tirar umas poucas falas de seu contexto e jogá-las dentro de uma conspiração massiva contra os direitos civis (…) carece de fundamento na realidade”.
Apesar deste argumento bem embasado, o mito continua no Congresso e em postagens publicadas em First Things. Embora existam diferenças partidárias concernentes à liberdade religiosa nos Estados Unidos, podemos pensar que há uma união na defesa deste direito no exterior onde ele possa ser uma questão de vida ou morte.
Não estou dizendo que as pessoas não devam pressionar o governo a fazer mais para a promoção da liberdade religiosa no exterior – eu próprio faço isso –, mas as teorias da conspiração não devem têm espaço em nossas discussões sobre liberdade religiosa internacional. Se os conservadores querem fazer acusações sérias contra o governo, então precisam apresentar coisas melhores do que o emprego da palavra “culto” ao invés de “religiosa”, a não ser que essa conspiração inclua também Roosevelt e Reagan.
Na semana passada, o Departamento de Estado divulgou o relatório anual sobre a liberdade religiosa em todos os países do mundo. No mesmo dia, a Casa Branca emitiu uma planilha delineando as declarações e ações do governo em prol da liberdade religiosa.
Aqueles que pensam que a Casa Branca e o Departamento de Estado não se preocupam com a liberdade religiosa devem ler esses documentos. Certamente David Saperstein, embaixador americano para a Liberdade Religiosa, é reconhecido por todos como um corajoso defensor da liberdade religiosa.
O debate verdadeiro deve centrar-se em como podemos promover a liberdade religiosa. Questionar o compromisso do indivíduo quanto à liberdade religiosa não vai fazer avançar a causa da liberdade religiosa internacional. Deveríamos estar construindo coalizões em apoio à liberdade religiosa, e não tentando fazer da liberdade religiosa internacional uma questão partidária.
O principal problema com os governos não é que eles não se preocupam com a liberdade religiosa. O principal problema é que a segurança nacional e o comércio quase sempre têm prioridade diante da liberdade religiosa nas negociações com governos estrangeiros.
Este é claramente o caso das relações dos EUA com a China. Desde o governo Richard Nixon, os EUA nunca estiveram dispostos a comprometer a segurança nacional ou os interesses econômicos, fazendo da liberdade religiosa uma prioridade importante nos diálogos com o país asiático. Lembremos: Nixon defendeu uma abertura à China argumentando que o capitalismo iria levar liberdade para este país. E ele não o levou.
De volta à plataforma de governo do Partido Democrata.
Quando descobri que o plano de governo falava em liberdade de culto em vez de liberdade religiosa, contatei o meu amigo James Zogby, pessoa indicada por Bernie Sanders na comissão de redação do plano e companheiro meu na USCIRF. Expliquei o problema para ele e lhe enviei uma cópia do artigo de Moses. Ele compreendeu rapidamente e propôs uma alteração na redação, que agora é: “Faremos tudo o que pudermos para proteger as minorias religiosas e o direito fundamental à liberdade religiosa”.
Houve algum combate feroz no comitê de elaboração do plano de governo neste caso? “Nenhuma resistência”, explica Zogby. “Apenas não estávamos familiarizados com a terminologia”.
Se a linguagem original tivesse permanecido, a blogosfera conservadora teria enlouquecido acusando o Partido Democrata de abandonar o compromisso americano com a liberdade religiosa internacional. A facilidade com que Zogby foi capaz de corrigir tal trecho mostra não haver conspiração ideológica nenhuma aqui. Na verdade, a vontade de alterar a linguagem por parte destas pessoas mostra exatamente o contrário – que os democratas estão tão comprometidos com a liberdade religiosa quanto o estão os seus irmãos e irmãs republicanos.
É chegada a hora de parar de questionar o compromisso uns dos outros com a liberdade religiosa e unir forças para promovê-la.
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“Liberdade de culto” versus “liberdade religiosa” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU