10 Julho 2015
"Quando visitei o Chile poucas semanas após o lançamento da edição espanhola da biografia que escrevi do Papa Francisco, esforcei-me em responder a esta mesma pergunta em várias entrevistas que concedi: O que o papa está fazendo?", escreve Austen Ivereigh, autor do livro “The Great Reformer: Francisco and the Making of a Radical Pope” (Ed. Henry Holt), em artigo publicado pelo National Catholic Reporter, 07-07-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
De volta à América Latina, seu continente de origem, o Papa Francisco está evangelizando a partir das periferias, desafiando o mundo a partir do ponto de vista do desprivilegiados e marginalizados.
No entanto, para uma pequena diocese a 800 km da capital chilena, Santiago, os gestos e as palavras do papa soam meio incoerentes. Os sacerdotes e leigos de Osorno – remota cidade não muito longe de Puerto Montt – continuam relutantes em criticar abertamente Francisco, preferindo acreditar que ele fora mal assessorado. Porém, não há dúvidas de que estão com raiva e perplexos com a forma como a sua Igreja local ficou prejudicada após a nomeação do atual bispo, e porque o apelo que eles vêm fazendo tem sido completamente ignorado.
Nesta semana, três delegados da Organização dos Leigos da diocese, que tem apenas 23 paróquias, estão viajando para Santa Cruz, na Bolívia, na esperança de apresentar uma carta ao Papa Francisco durante o Encontro Mundial dos Movimentos Populares, onde Francisco deve discursar na quinta-feira.
Inúmeros paroquianos vêm protestando desde janeiro deste ano, quando ficou claro que o Vaticano iria continuar com a instalação de Juan Barros Madrid como o novo bispo de Osorno, movimento que desagradou tanto os demais bispos do país quanto o clero e os leigos da própria diocese.
A raiva dos diocesans ficou explicitamente manifesta durante a posse de Barros, em 21 de março, depois de semanas de vigílias à luz de velas e protestos. As cenas na catedral naquele dia eram chocantes: os membros da congregação gritavam entre si pelos corredores; manifestantes com balões pretos vaiavam e empurravam o novo bispo, que foi forçado a reduzir a duração da missa. Depois, houve dúvidas sobre se a Eucaristia tinha sido validamente celebrada.
A maioria dos bispos chilenos se afastou do evento – algo inédito numa missa de instalação de um bispo –, incluindo os seus dois cardeais.
Quando visitei o Chile poucas semanas após o lançamento da edição espanhola da biografia que escrevi do Papa Francisco, esforcei-me em responder a esta mesma pergunta em várias entrevistas que concedi: O que o papa está fazendo?
Eu sabia, de conversas privadas com o Cardeal Ricardo Ezzati Andrello e outros, da extensão do envolvimento do papa na decisão bem como dos próprios esforços de Ezzati em fazê-lo desistir dela. Francisco se recusou. Ele não só estava bem informado sobre o caso, mas também apoiando-o totalmente.
A questão é, e permanece, por que motivo ele fez isso.
A sombra de Karadima
Em cartas a Roma, por meio do núncio apostólico durante muitas semanas, 30 dos 41 sacerdotes e 1.500 leigos da diocese de Osorno disseram o mesmo: o histórico de Barros não o faz ser uma pessoa adequada para conduzir a diocese.
Durante décadas, Barros fez parte de uma sociedade sacerdotal unida com base na paróquia de classe alta chamada El Bosque, em Santiago. O fundador carismático da assim-chamada Asociación Sacerdotal, Pe. Fernando Karadima, era um sacerdote dinâmico e bem relacionado, que mantinha uma relação próxima com o governo militar do Gen. Augusto Pinochet e com o então núncio, e mais tarde secretário de Estado do Papa João Paulo II, Angelo Sodano.
Acabou-se por saber que Karadima era também um abusador profundamente manipulador, que usava uma poderosa mistura de culpa sexual e sigilo para construir uma situação psicológica em suas vítimas, que eram jovens seminaristas na época.
As provas de abuso de Karadima nas décadas de 1980 e 1990 detalhadas por quatro de suas vítimas foram verificadas por tribunal judicial do Chile, mas o estatuto de limitações fez com que Karadima escapasse de um processo. Uma investigação em separado conduzida pelo Vaticano o considerou culpado e, desde 2011, ele foi condenado a uma vida de oração e penitência em um convento fora de Santiago. Citando abuso de autoridade e irregularidades, Roma ordenou a dissolução de sua associação.
Os paralelos com o caso de Marcial Maciel Degollado no México – até a amizade com Sodano – são óbvios: os dois sacerdotes eram gênios manipuladores que dirigiam seitas sigilosas, autoritárias e exploravam as suas vítimas, permanecendo entre a elite para esconder sua depravação.
Na verdade, foi um documentário exibido na TV sobre Maciel que incentivou as vítimas de Karadima a darem um passo adiante em 2003, embora se passariam muitos anos até que suas histórias se tornassem públicas e válidas de atenção, em parte porque o então arcebispo de Santiago, o Cardeal Francisco Errázuriz, considerou as histórias um tanto difícil de serem aceitas.
Desde que as revelações vieram à tona em 2010, a sociedade chilena – onde a Igreja é, em muitos aspectos, uma instituição aristocrática e conservadora – tem buscado se recuperar das implicações advindas do caso. No Chile, o filme “El Bosque de Karadima”, uma reconstrução fictícia do escândalo com base no testemunho sobretudo de uma das vítimas, James Hamilton, vem sendo exibido em salas de cinema lotadas nas últimas semanas. Um dos personagens, que o diretor do filme diz representar Barros, acoberta Karadima.
O papel de Barros
Nenhum caso canônico ou civil foi interposto contra Barros. Mas os católicos de Osorno dizem que o histórico que ele traz o desqualifica, objetivamente, segundo o Direito Canônico de ser o pastor da diocese.
Apontam para o fato de ele ser citado nos depoimentos das vítimas como tendo estado presente durante atos sexuais. Uma das vítimas, Juan Carlos Cruz, descreve em detalhes como o próprio Barros fazia parte dos abusos sexuais de Karadima. Mais tarde, como secretário do então cardeal arcebispo de Santiago, Dom Juan Fresno, Cruz e outros disseram que Barros encobria Karadima, destruindo correspondências.
Nenhuma dessas alegações foram objeto de investigação, e Barros nega-os, dizendo que só soube dos abusos cometidos por Karadima em 2010. No entanto, o peso das provas testemunhais, confirmadas pelos tribunais chilenos, é difícil de ignorar.
“Quando Dom Juan Barros Madrid diz que não viu nada, não é que nós não acreditamos nele, é que o ônus da prova está contra ele, segundo as conclusões das autoridades judiciais”, diz Juan Carlos Claret, estudante de Direito, de 21 anos, que tem trabalhado como porta-voz para a organização dos leigos em Osorno.
Claret é um dos três delegados de Osorno que estão viajando para a Bolívia, na esperança de apresentar as suas preocupações ao Papa Francisco.
Para o Pe. Peter Kleigel, sacerdote de origem alemã que passou 49 anos em Osorno, a questão é a aparente falta de remorso ou autoconsciência de Barros.
“Em 35 anos de uma relação estreita, ele simplesmente não pode dizer que nada sabia”, disse Kleigel ao National Catholic Reporter em entrevista por telefone. “Ele ainda defende Karadima e nunca pediu perdão. É por isso que nos opomos à sua nomeação”.
Uma diocese dividida
Os meios de comunicação chilenos descrevem Kleigel – que vem liderando os protestos em nome do clero – como o “filho ilustre” de Osorno, por seu papel na criação de habitações dignas no município de São Maximiliano Kolbe, fruto de décadas de trabalho de base inspirado no Evangelho, em mutirão com as paróquias locais.
Nesses últimos meses, desde que a Diocese de Osorno ficou indignada ao descobrir que Barros seria o seu bispo, Kleigel – que se aposentou como pároco em 2011 – encontrou uma nova missão: falar em nome dos paroquianos de Osorno, escrever ao núncio apostólico, conceder entrevistas à imprensa, e até mesmo se encontrar com o próprio Barros – tanto sozinho e como com o clero local – numa tentativa de reverter a decisão.
“Temos sido tratados como ovelhas burras. No entanto, a verdade é que o nosso povo está muito bem informado sobre os nossos deveres e direitos na Igreja, como resultado do trabalho dos bispos anteriores”, disse ele em um espanhol com um leve sotaque alemão. “É uma ofensa à comunidade dizer-lhes: ‘Nós não temos nenhum outro bispo, fiquem com este”. É isso o que a nossa comunidade não vai aceitar. O papa pode estar errado nesse caso”.
Desde a instalação Barros, a raiva em Osorno só piorou. Os paroquianos vêm arrecadando doações semanais; muitos se retiram das igrejas quando bispo aparece nelas de surpresa; muitos pedem que o bispo envie um delegado para conduzir as confirmações em vez de fazê-las ele próprio.
A campanha não é pessoal, disse Kleigel – “Desejamos o bem para Barros e desejamos nos reconciliar com ele” –, e sim com a sua aptidão para ser o ordinário. Um bispo, disse ele, deve ser “um fator de unidade, não de divisão e escândalo”.
Perguntado se a sua campanha conduz logicamente a um veto local da nomeação – com efeito, o direito de uma diocese de rejeitar o seu pastor –, Kleigel não vacila em responder: “Bem, isso vem depois”, disse ele. “Estamos no início do despertar da Igreja, e isso é bom”.
Um novo despertar em Osorno
Um dos efeitos imprevistos desta polêmica tem sido a galvanização dos leigos em Osorno, que agora se reúnem regularmente para discutir e estudar os documentos da Igreja.
“O que queremos é respeito, participação; queremos ser ouvidos”, afirmou Kleigel. “Não estamos dizendo que o sistema tem de ser mudado, mas apenas modificado de modo que não sejamos ignorados”.
Este despertar em Osorno se espalhou para outras dioceses, algumas das quais enviaram delegados a um encontro organizado por Claret e Kleigel em meados de junho. Num comunicado feito pelo grupo, os católicos de Osorno disseram que a transferência de Barros “produziu escândalo, divisão e deserção entre não poucos dos fiéis, tanto em nível local como nacional”. O texto pede para “se abrir espaços mais amplos de participação dos leigos na missão da Igreja”.
O encontro levou a uma reunião de três horas com Barros e o arcebispo de Puerto Montt, Dom Cristián Caro Cordero. De acordo com Claret, Barros sustentou que havia recebido esta missão pelas mãos do papa, enquanto Dom Cristián Caro Cordero insistiu que não havia nenhum impedimento canônico ou civil para a nomeação e que todos deveriam seguir em frente. Os cinco delegados de Osorno insistiram sobre os impedimentos objetivos que pontuaram na ocasião e pediram que Barros renunciasse. Havia pouco espaço para um acordo ou compromisso.
A responsabilidade do Papa Francisco
O que o papa está fazendo? A transferência de Barros para Osorno parece anular uma série de objetivos postos pelo pontífice. Impor Barros a contragosto dos bispos locais vai contra a ideia de colegialidade, e passar por cima de uma pequena diocese no sul do Chile faz pouco para restaurar a participação dos que se encontram às margens. Ignorar as alegações de abuso enfraquece a própria Comissão para a Tutela dos Menores, que já se queixou energicamente ao Papa Francisco através do seu presidente, o Cardeal Sean O’Malley.
Uma resposta é que as mãos do papa estavam amarradas. Barros, já sendo bispo e legalmente inocente, tinha de receber uma diocese. Se Francisco o suspendesse, as armas em breve estariam apontadas para três outros bispos que estiveram próximos de Karadima décadas atrás.
Uma outra possibilidade é que se tratou de uma decisão pessoal, deliberada pelo papa, que se reuniu com Barros no final de fevereiro por uma hora. Barros havia passado o mês de janeiro em retiro em Madrid conduzido por um jesuíta próximo a Francisco, o Pe. Germán Arana Beorlegui, que, segundo relatos, ficou satisfeito.
Seja qual for a explicação, Francisco parece ter conhecimento pleno dos fatos, como consequência dos esforços enérgicos encabeçados por Ezzati no sentido de dissuadi-lo.
Mas, quaisquer que sejam as razões do papa para nomear Barros à Diocese de Osorno, os paroquianos e a comunidade em geral não demonstram sinais de desistência ou de esmorecimento.
Enquanto Barros não renunciar, disse Claret, eles continuarão organizando protestos e ações porque o Evangelho não os permite aceitar a “revitimização e a impunidade” que Barros representa.
“Estamos convencidos de que Deus está falando a partir do sul do Chile”, Claret disse ao National Catholic Reporter.
Isso soa como algo que o próprio Papa Francisco diria.
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A polêmica nomeação de bispo chileno continua a dividir diocese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU