11 Novembro 2014
A capa da People, a mais popular revista de celebridades americana, costuma ser reservada a fotos retocadas de Jennifer Lawrence ou a astros populares cuja morte traumatiza o país, como foi o caso recente do suicídio de Robin Williams. Além de uma longa história de dependência de drogas e depressão, Williams começara a ter sintomas da doença de Parkinson.
Mas nada ampliou tanto o impacto do contraste entre vida e morte quanto o belo rosto de Brittany Maynard estampado na capa da revista, na última semana de outubro, ao lado da manchete: “Minha Decisão de Morrer”. Maynard, de 29 anos, diagnosticada com um agressivo tumor no cérebro no começo do ano, morreu pelas próprias mãos, na companhia de família e amigos no último fim de semana, ao ingerir uma dose de barbitúricos sob prescrição médica. Ela se mudou para o Oregon por ser um dos cinco Estados americanos que legalizaram o suicídio assistido para pacientes terminais.
A entrevista é de Lúcia Guimarães, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 09-11-2014.
Mais que a escolha de morrer com dignidade, a decisão de compartilhar com o mundo os detalhes da opção e seus motivos torna Maynard um marco na história da morte voluntária. O debate começou nos anos 1980, quando Derek Humphry fundou na garagem de sua casa em Santa Mônica, Califórnia, o primeiro de uma rede de grupos do movimento Direito à Morte, hoje reunido sob a fundação Compaixão e Escolhas. Em 1975, Humphry tinha assistido ao suicídio da mulher, em estágio avançado de câncer de mama, e publicou um best-seller, Final Exit (saída final).
Nos anos 1990, o controvertido médico Jack Kevorkian ajudou Janet Adkins a se suicidar com uma dose de barbitúricos. A figura sinistra de Kevorkian, morto em 2011 e vivido num filme por Al Pacino, provocou um retrocesso legal, na opinião do respeitado bioeticista americano Arthur Caplan. Ele depôs contra o homem apelidado de Doutor Morte no primeiro dos quatro processos que Kevorkian enfrentou, em 1994. Caplan dirige a divisão de Ética Médica do Langone Medical Center da Universidade de Nova York e recebeu o Aliás em casa para falar da semana que mudou o debate do suicídio assistido.
Eis a entrevista.
Por que o sr. apoia a decisão de Brittany?
Acredito que foi uma decisão ética porque ela sabia o que queria, era adulta, capaz e preferiu não se submeter ao tratamento paliativo do estágio avançado da doença. Não queria perder o controle sobre seu corpo e mente. Acredito que não tenha sofrido pressão, fazendo uma escolha sobre a qual refletiu.
O sr. cita Oregon como exemplo de bom senso na legislação sobre suicídio assistido.
Oregon tem a lei do suicídio assistido há 17 anos e por isso já temos estatísticas. Menos de 1 em 500 pessoas com doenças terminais solicita as pílulas e entre as que pedem um terço decide não tomar os barbitúricos. Isso me leva a crer que não haja pressão em grande escala sobre pacientes, nenhum tipo de conspiração. As pessoas estão fazendo a escolha raramente, o que me faz acreditar em algo mais: tornar o método disponível vem evitando que mais pessoas se suicidem, como acontece em Estados e países onde o procedimento é ilegal. As pessoas se suicidam com armas de fogo, se jogam na frente de trens. A opção legal do suicídio assistido acalma o paciente, que sempre pode voltar atrás.
Quais os passos necessários para recorrer ao suicídio assistido no Oregon?
Muita gente teme que, se médicos vão prestar assistência ao suicídio, corremos o risco de ver o procedimento aplicado a doentes mentais e até a pessoas temporariamente deprimidas. Não aconteceu nada disso no Oregon. Mas pode acontecer em outros países, como Bélgica, Holanda e, em menor grau, Suíça. No Oregon há supervisão e controles estritos. A pessoa tem que ter uma doença terminal certificada por dois médicos e competência mental certificada por psicólogo ou psiquiatra. É preciso solicitar as pílulas três vezes, a intervalos de um mês. Em seguida, o paciente tem que decidir ingerir as pílulas por conta própria; se outra pessoa ajudar, é homicídio. O paciente tem que informar a polícia e o departamento de saúde pública local. Assim, há relatórios dos médicos envolvidos. Processo muito diferente de quando o dr. Jack Kevorkian ajudava as pessoas a se suicidarem no compartimento traseiro de sua caminhonete, sem nenhuma supervisão. Creio que alguns de seus pacientes não tivessem competência mental para decidir, ou tivessem impedimentos físicos, sem serem doentes terminais.
O suicídio assistido ocorre com frequência onde é ilegal? A Justiça ignora essa prática?
A prática de apressar a morte de doentes terminais vem de muito tempo. Há 25 anos fizemos uma pesquisa anônima entre enfermeiros num certo complexo hospitalar e 15% responderam que sim, tinham atendido a pedidos de pacientes que queriam morrer mais rápido. Não há dúvida de que acontece, sou testemunha. O paciente está desesperado de dor e o médico aumenta a dose do tratamento paliativo sabendo que há o risco de morte. Com exceção de um caso na Califórnia, há mais de 20 anos, não acredito que nenhum médico ou enfermeiro tenha sido processado por dar esse tipo de assistência. À exceção de Kevorkian, que fez questão de se filmar e mostrar na TV. Acredito que promotores desviem sua atenção porque dificilmente vão obter condenação. Juízes e jurados teriam simpatia pelo réu.
E a questão da disparidade econômica no acesso ao suicídio assistido?
Os ricos, é claro, têm mais acesso à medicina que os pobres. Têm relacionamentos longos com médicos particulares. Os pobres são atendidos por pessoas diferentes em centros de saúde ou emergências. Uma conversa típica que conheço é: ‘Sra. Smith, não deve tomar mais que 20 destas pílulas, 20, compreendeu?’. E a sra. Smith vai obtendo mais receitas e guardando as pílulas. É uma espécie de conluio, mas não vejo acontecer entre os pobres ou entre quem não tenha um vínculo forte com seu médico. É preciso o médico confiar no paciente, saber que ele vai fazer a escolha no momento certo, esteja mentalmente são e não vá passar as drogas para uma terceira pessoa. Então, sim, quando o suicídio assistido é ilegal, se torna um privilégio para os afluentes.
Por que decidiu ser testemunha no primeiro dos quatro julgamentos de Kevorkian, em 1994, em que ele acabou absolvido?
Fui testemunha do promotor no julgamento pela morte de Janet Adkins, ironicamente, uma mulher do Oregon. Ela tinha sido diagnosticada com o mal de Alzheimer, foi para Michigan e disse a Kevorkian que não queria enfrentar a doença. Não estava num estágio terminal. De fato, sofria apenas de alguma perda de memória. Ele conversou apenas três dias com ela. Em seguida, ajudou-a a morrer com o mecanismo que ele tinha inventado, em que o paciente puxa a alavanca. Batizou o mecanismo de Thanatron, máquina da morte, numa referência ao deus grego da morte, Tânatos. Kevorkian contratou um advogado extravagante e disse que era seu dever ajudar a paciente. Não foi condenado porque não havia então lei sobre suicídio assistido em Michigan, e o Estado tratou logo de passar uma lei. Não me oponho ao envolvimento médico no suicídio assistido, mas acho que Kevorkian ultrapassou o limite ético. Ele não conhecia bem os pacientes. A autópsia de Janet Adkins revelou que ela não tinha o mal de Alzheimer. Kevorkian demonstrava entusiasmo impróprio com o dilema do suicídio assistido, e não pedia avaliação psiquiátrica ou neurológica. Minha impressão é que ele ficou fora de controle, não que estivesse errado sobre o debate. Como resultado, o movimento pela morte digna sofreu um retrocesso porque ele assustou o público.
Qual a importância de Derek Humphry, autor do best-seller Final Exit e fundador do grupo Compaixão e Escolhas?
Nos anos 1980, Humphry defendeu uma posição impopular porque acreditava no suicídio assistido sem médico. Ele dava instruções sobre como colocar um saco plástico na cabeça ou tomar uma dose específica de certas pílulas. Era uma espécie de movimento de autoajuda que tem uma variação na Suíça com o Grupo da Dignidade. Lá, eles se encontram, providenciam receitas para drogas, mas médicos não estão presentes, não há relatório e acontece com permissão do governo. Isso me deixa um pouco nervoso porque a falta de supervisão pode levar a abusos contra pacientes.
O que pensa da lei sobre eutanásia de crianças aprovada na Bélgica no início do ano?
A posição americana é respeitar a escolha, permitir ao paciente decidir terminar sua vida. A posição belga é, se a dor e o sofrimento se tornam insuportáveis, as pílulas devem ser administradas. Então, ela se aplica a doentes mentais ou crianças. Isso para mim é eutanásia, não suicídio assistido. Na Bélgica, o médico pode avaliar inclusive a dor emocional do paciente e isso me incomoda profundamente. Vejo como um caminho para extermínio em que outro decide que sua vida não vale a pena ser vivida. A diferença para mim é grande.
O Vaticano condenou o suicídio de Brittany Maynard. Como o sr. lida com a religiosidade de pacientes e suas famílias?
Quando converso com pacientes em dilema religioso, meu papel não é tratar de sua fé e sim esclarecer as opções. O judaísmo e o cristianismo têm, por exemplo, mártires, de modo que a tradição do suicídio racional não lhes é estranha. Se o paciente conversa com seu conselheiro religioso e decide que é inaceitável, destaco a importância de providenciar assistência médica paliativa. A consciência do paciente conta e, vamos ser justos, acredito que o catolicismo respeite a consciência individual. O desafio, na minha posição, é saber que, se o paciente espera tempo demais, pode perder a capacidade mental para decidir.
A questão varia de cultura para cultura?
Sim, a cultura americana é dedicada à autonomia individual, a meu ver, ao ponto de exagero, como por exemplo no debate sobre porte de armas. Países como Brasil, Portugal e Espanha não têm o mesmo horror em delegar decisões a terceiros ou especialistas. Não ficaria surpreso se o Brasil não aprovar uma lei de suicídio assistido, não por causa da Igreja, mas porque não tem o mesmo impulso individualista.
Vivemos mais e, portanto, passamos mais anos com pouca qualidade de vida. O sr. vê um futuro em que idosos, mesmo sem doenças terminais, escolherão a hora de morrer?
O que vejo é, em caso de certas doenças, o idoso pedir para interromper um tratamento. Mas sabe o que percebo quando converso com idosos frágeis? Sofrem menos por, digamos, perder a mobilidade do que por perder os amigos. Não se sentem mais inseridos na cultura, detestam a música, o que passa na TV. Então, acho que isolamento e desconexão, tanto quanto decrepitude física, tornam os mais idosos infelizes. Conheço muitos que reclamam o tempo todo, mas nunca decidem dar cabo da própria vida, inclusive agnósticos que não sabem o que os espera. O impulso de viver é muito forte.
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