04 Novembro 2014
Após um mês em Roma, aonde viajou para participar no Sínodo da Família, o cardeal Ricardo Ezzati voltou quinta-feira ao Chile. Uma reunião a portas fechadas com o núncio apostólico, a polêmica pelas declarações de três sacerdotes e o debate dentro da própria igreja em torno a temas como o aborto e o AVP, marcam a análise do presidente da Conferência Episcopal em seu regresso.
A entrevista é de Sergio Rodriguez, publicada pelo jornal La Tercera, 02-11-2014. A tradução é de Benno Dischinger.
“Muito bem, estou perfeitamente bem”, diz, sorrindo, o cardeal Ricardo Ezzati, sentado numa pequena sala de reuniões de sua casa pastora, em Santiago. Seu rosto, sem embargo, reflete certo cansaço. Às 9h30 de quinta-feira regressou ao Chile, depois de ter passado quase um mês no Vaticano, participando da III Assembléia Extraordinária, convocada pelo Papa Francisco, para o Sínodo sobre a Família.
“Cheguei a trabalhar em minha correspondência. Também tive reuniões com bispos auxiliares e com a Conferência Episcopal, preparando a assembléia plenária de novembro. Ontem (quinta-feira) tive um longo diálogo com o senhor núncio (Ivo Scapolo), confirmações e outras atividades”, enumera.
O do núncio apostólico, sem embargo, não é um detalhe menor. Enquanto o cardeal Ezzati estava em Roma, no Chile se tornou público um problema que o prelado não tinha considerado e que indiretamente o envolveu. Reportajes deu a conhecer que, atualmente, se encontram sob o exame da Congregação para a Doutrina da Fé, do próprio Vaticano, um número indeterminado de declarações que, durante os últimos meses, três sacerdotes haviam entregado aos meios de comunicação: Felipe Berríos, José Aldunate e Mariano Puga.
O denominador comum é que todas elas continham críticas a determinados aspectos da Igreja crioula, fundamentalmente relacionados a temas importantes e ao seu papel ante a Reforma Educacional. De fato, foi o próprio núncio Scapolo, através de um correio eletrônico, que lhe confirmou esta “preocupação” da Santa Sé a Puga.
Em seu regresso, a análise do presidente da Conferência Episcopal ante esse cenário é clara: “A primeira coisa que quisera dizer é que lamento muito que, por uma série de desinformações, se tenha gerado um clima tão beligerante. Com total franqueza neguei minha participação nos fatos. Nada mais longe do que, como Pastor, desejo para nossa comunidade. O próprio Santo Padre disse que ‘a divisão numa comunidade cristã é um pecado gravíssimo, é obra do diabo’, e falando aos Gendarmes da Cidade do Vaticano lhes disse que as bombas mais perigosas que podem causar dano a uma comunidade são as maledicências e a difamação das pessoas. Aqui se disseram coisas que não correspondem aos fatos e se construiu uma novela de fantasia”.
Eis a entrevista.
Tomou contato com os sacerdotes?
Minha primeira ação pastoral frente às diversas declarações do padre Berríos foi convidar o superior da Companhia de Jesus, a quem corresponde velar por seus irmãos, a dialogar sobre o tema. Uns dias depois acolhi ambos, para compartilhar uma ceia e seguir dialogando com eles sobre a situação de incômodo criada com raiz na entrevista televisiva, em meios radiofônicos e de imprensa. Com o padre Mariano Puga, sobre o qual tenho jurisdição, por ser do clero da arquidiocese (os outros dois são jesuítas), compartilhei de um longo diálogo, em torno a uma taça de café. Nunca se questionou seu serviço social, especialmente a favor dos mais pobres, senão unicamente os temas referentes à moral da vida, enfrentados de maneira claramente ambígua. Em relação ao padre José Aldunate, não reagi, por respeito à sua idade avançada. Não faltaram ocasiões para seguir dialogando.
Mas, estas reuniões se deram antes que o tema se tornasse público. Teve alguma nova comunicação com eles?
Não, até agora não. Vi a declaração do padre Mariano Puga, que me parece muito sábia e correspondente à verdade (...), mas não estou fechado a nenhum diálogo. Não tenho nenhuma bronca com ninguém.
Nos últimos dias, o sacerdote Felipe Barrios fez outras declarações de caráter crítico...
A Igreja é uma realidade muito ampla, não sou eu a Igreja, sou padre dela, todos os batizados o somos. É uma questão dele, um amadurecimento dele, e uma responsabilidade que tem seu superior provincial, que deve velar pelas pessoas que formam parte de sua comunidade.
Como viu o senhor este capítulo?
Segundo minha perspectiva, no Chile existe o costume de que muita gente, quando não está de acordo com algo, o envia não sei a quem. E no âmbito eclesiástico, lastimosamente, também existe isso. Em Roma tive uma reunião de uma hora com o prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé (Gerhard Ludwig Müller).
E o que lhe disse ele?
Convidou-me a dialogar sobre este tema, mas lhe reitero que não chegou nenhuma acusação a Roma. O que chegou são recortes da entrevista feita no canal nacional (TVN) e dos que apareceram na imprensa escrita. Só isso. Não há nenhuma acusação formal.
O prefeito lhe precisou como se estava vendo o tema?
São coisas que chegam, todo o mundo manda coisas. Não é nenhuma denúncia, senão somente o que é público e que aqui nós todos conhecemos.
Em seu regresso ao Chile você se reuniu com o núncio Ivo Scapolo. Como o viu?
Bem, muito tranquilo, e a ele trataram mal, de maneira injusta. Ele está cumprindo com seu dever, e tampouco mandou acusação de nada. Que tenham chegado a Roma fotocópias de entrevistas é algo muito normal. Eu não lhes dou nenhuma importância. Como lhe dizia, eu não enviei nenhuma nota a Roma com respeito a isto. O único que se me perguntou foi como tratei pastoralmente estes três sacerdotes, e insisto em que a eles eu os recebi aqui mesmo. E ninguém questionou nenhuma das coisas do âmbito social em que atuam. Isso está muito bem. Eu ponho a firma em todas (essas acusações).
De que conversaram então?
A conversação que tivemos foi relativa aos temas da ética da vida, como o aborto. Há outras expressões que, imagino, são mais fruto do entusiasmo do momento do que da reflexão, algumas contra o Papa João Paulo II, apreciações gerais da Igreja, das universidades. Mas, essas reflexões não causam dano nem à Igreja, nem ao país. É quando se tocam aspectos próprios de um sacerdote, e que este deve ensinar, porque fala em nome da Igreja e do Evangelho, quando se deve ser fiel. E, naturalmente, há pessoas que se escandalizam quando um sacerdote não manifesta com clareza o ensinamento de Jesus e da Igreja. O aborto, por exemplo, é uma matéria doutrinal. Alguém pode matizar certas coisas, mas esta é a supressão voluntária da vida humana. Há temas nos quais não pode haver matizes.
Têm aparecido outros católicos expressando seu descontentamento, como Benito Baranda...
Não é um mal que haja pessoas que vêem as coisas criticamente. Os leigos têm o direito de opinar. Nós bispos não somos intocáveis. Nós nos equivocamos. Somente peço fazê-lo num clima de fraternidade. Benito Baranda nunca veio conversar comigo. Pessoalmente, não o conheço. Só o conheço por sua fama. E sempre o tenho visto crítico com a hierarquia da Igreja, antes que eu fosse presidente da Conferência Episcopal. Essas pessoas fazem bem. A crítica ajuda a fazer uma auto-análise, para exercer com transparência a pastoral. Eu acolho a crítica.
Lhe doeu este clima de divisão?
Como não vai doer, se a Igreja é a vida de alguém. No âmbito pessoal, como não vai doer que se construa uma novela em torno a suposições; que se suponha má vontade ou atitudes desumanas. Porém tenho estado sempre muito tranquilo, dormi bem e isto não me tirou o sono. A Igreja no Chile é muito unida.
Como avalia os sinais de incômodo de um setor dos católicos?
Como dizia anteriormente, lamento profundamente que se tenha gerado um clima de crítica infundada por informações incompletas e mal-intencionadas. Na Igreja, tanto os leigos como os presbíteros e religiosos, têm o legítimo direito à opinião e ao debate. As diferenças na Igreja são legítimas e estão chamadas a oferecer uma face mais completa de Cristo e da missão da Igreja. Os diversos dons e carismas não podem ser fonte de quebra nem divisão. A unidade da Igreja é tarefa de todos. Esta é também a missão e o empenho do bispo.
Há sacerdotes que a Igreja considera incômodos ou rebeldes? Todos devem aderir plenamente ao discurso da hierarquia?
Cada sacerdote, fiel à vocação que recebeu, é um dom de Deus para a Igreja e a sociedade. A quem deve aderir o presbítero, com todo o coração e toda a inteligência, é a Jesus Cristo. No dia de sua ordenação presbiteral, o sacerdote, pondo as suas mãos nas do bispo, promete obediência e respeito. É um signo que expressa compromisso mútuo: da parte do sacerdote, que confia seu caminho nas mãos de seu bispo, e da parte do bispo, que o acolhe com afeto e responsabilidade, disposto a dar a vida por ele.
Por que se tornaram públicas as declarações dos três sacerdotes que estão sendo examinadas?
As declarações dos três irmãos sacerdotes têm sido absolutamente públicas. Todos as temos conhecido pelos meios de comunicação. Não conheço outras declarações.
Nestes dias ocorreu outro fato que também tocou à Igreja: a condenação do sacerdote John O’Relly, pelo delito de abuso sexual contra uma menor. Você está de acordo com a forma como se abordou este tema pelo Arcebispado?
O sacerdote John O’Relly pertence a uma comunidade religiosa de direito pontifício. Portanto, seu superior imediato é o provincial e o diretor geral da Legião de Cristo. O arcebispado de Santiago tomou ato da resolução do Terceiro Tribunal Oral no Penal; valorou a ação da justiça civil; expressou solidariedade com a vítima e sua família, e manifestou sua pena e dor à congregação. Estamos à espera da leitura da sentença da justiça civil, no próximo dia 11 de novembro.
Há espaço para uma reflexão acerca de situações que, talvez em termos de comunicação, poder-se-iam enfrentar melhor?
Parece-me que neste, como em outros campos da vida nacional, se deveria superar a tendência da superficialidade e dar maior espaço ao discernimento no pleno respeito da dignidade das pessoas. Dos acontecimentos sempre se pode aprender.
Sínodo no Vaticano
Pareceria haver uma brecha entre o que considera um setor da população no que se refere a temas de valor e o que estabelece a Igreja Católica. Como tomam nota desta situação?
É verdade, e o desafio tem sido reconhecido pelo Sínodo. A Assembléia Geral Extraordinária, da qual acabamos de participar, recolheu esses antecedentes e votou algumas indicações para reverter a brecha. Esta é uma tarefa de toda a comunidade eclesial. A Assembléia Ordinária, do próximo ano, deverá seguir estudando para discernir os caminhos pastorais que a hora presente reclama da Igreja. A isso nos temos comprometido todos e não me cabe dúvida de que, como sucedeu já na primeira etapa, não faltará o aporte da comunidade eclesial de Santiago e do Chile.
No sínodo você se reuniu com o Papa Francisco. Ele vem ao Chile em 2016?
Viria no próximo ano, em julho, por ocasião de um congresso eucarístico em Tucumã, Argentina. E me havia dito pessoalmente que faria uma viagem que incluiria Uruguai, Argentina e Chile. Agora soube que, definitivamente, isso não vai ser no próximo ano, e que provavelmente seja em 2016. Mas ele viria ao Chile nessa data. Como Conferência Episcopal lhe reiteramos o convite e está muito desejoso de visitar estes três países.
Qual é, segundo seu critério, a principal conclusão do Sínodo?
A principal riqueza do Sínodo tem sido sua celebração, a experiência sinodal vivida nas duas semanas de duração do evento eclesial; quer dizer, o caminho percorrido juntos, “com Pedro e sob Pedro”, o Papa Francisco, com pastores provenientes de todo o mundo, com culturas e experiências diferentes, em atitude de escuta e de discernimento, sobre os desafios pastorais da família no contexto da Evangelização.
Este Sínodo foi o que você esperava, em termos de discussão e temas?
Pessoalmente vivenciei o Sínodo como uma experiência de graça e de proximidade da Igreja ao povo de hoje, a suas esperanças e a suas angústias. Permitiu que os padres sinodais trouxessem as vivências e as reflexões de suas comunidades eclesiais, a partir do Instrumentum laboris, quer dizer do questionário enviado e estudado pelas comunidades eclesiais durante o ano de 2013. Ao mesmo tempo, foi uma oportunidade para se oferecerem vários aportes, nas áreas teológica, jurídica, pastoral ou das ciências humanas. A discussão na Aula e no grupo lingüístico, do qual participei, foi profunda, aberta e livre. Não faltaram momentos de confrontação e de tensão, porém sempre dentro do respeito e da acolhida.
Eram as inquietudes e problemáticas levantadas pelos bispos de outras regiões do mundo similares às do Chile?
Me chamou a atenção constatar como as inquietudes e os desafios que afetam a família tenham fisionomia universal. A globalização não é só um fenômeno que abarca a economia e a tecnologia. Afeta muitas situações existenciais, entre elas, a família. Fala-se do individualismo exagerado (...). Com íntima alegria, também se constata a fidelidade de muitas famílias fiéis ao Evangelho, oferecendo um formoso testemunho de beleza do amor matrimonial e da família.
Qual a importância do Sínodo para o Chile?
Para o Chile, em especial para os matrimônios cristãos e a pastoral da Igreja chilena, a primeira parte do Sínodo constitui um convite a encarar a realidade da família, com suas luzes e suas sombras, a aprofundar, com renovada esperança e alegria, o que a revelação divina nos diz sobre a família, e a discernir os itinerários pastorais mais adequados para ser, ao mesmo tempo, fiéis a Deus e às pessoas concretas.
No recente dia 7 de outubro o Senado aprovou e despachou à Câmara o Acordo de Vida em Casal (AVP). Como o avalia?
A Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas e Evangélicas, num documento comum do ano de 2012, expressaram que a legalização das uniões de fato é inaceitável no plano dos princípios e perigosa no plano social e educativo. Qualquer que seja a intenção de quem propôs esta opção, o efeito será a debilitação da família. Mais grave ainda é a legalização das uniões homossexuais, já que, neste caso, se nega a diferença sexual entre as pessoas dessas uniões. Isto não prejudica o reconhecimento da dignidade de cada pessoa: para todos quero expressar meu respeito e solicitude pastoral. O que solicito também a todos quantos compartem o gozo do Evangelho.
Foi abordado o tema dos casais homossexuais e o reconhecê-los como família?
A Igreja sente o dever de dizer uma palavra de verdade e de esperança. É necessário acolher as pessoas com sua existência concreta (...). Com muita clareza a Relatio Synodi afirma que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias entre as uniões homossexuais e o projeto de Deus sobre o matrimônio e a família. Sem embargo, homens e mulheres com tendências homossexuais devem ser acolhidos com respeito e delicadeza, sem o estigma de injusta discriminação.
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Cardeal Ezzati: “Há temas nos quais não pode haver matizes na Igreja” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU