Por: André | 14 Janeiro 2014
“Do Sul da Igreja sopra o Espírito, desde os pobres, os marginalizados, as mulheres, os jovens, os indígenas, desde “o menino” que descobre que o “rei”, seja este a sociedade ou a Igreja, está nu”. A reflexão é de Víctor Codina, em artigo publicado no sítio espanhol Religión Digital, 13-01-2014. A tradução é de André Langer.
Víctor Codina é sacerdote jesuíta e teólogo latino-americano. Nascido na Espanha, vive desde 1982 na Bolívia. Atualmente, é professor emérito da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Boliviana de Cochabamba, ao mesmo tempo em que mantém contato pastoral com comunidades de base e setores populares.
Seus últimos livros são: “Não extingais o Espírito” (1Ts 5,19). Iniciação à Pneumatologia (São Paulo: Paulinas, 2010), Una Iglesia Nazarena (Santander: Sal Terrae, 2010); Diario de un teólogo del posconcilio (Bogotá: San Pablo, 2013) e Diosito nos acompaña siempre (Cochabamba: Kipus, 2013).
Eis o artigo.
O rei está nu
No conhecido conto de Hans Christian Andersen sobre A nova roupa do rei, o rei, crendo estar vestido com uma roupa maravilhosa feita por grandes espertalhões, saiu à rua nu, mostrando suas vergonhas, mas ninguém se atreveu a dizer nada porque temiam ofender o monarca e perder seus favores; no meio do caminho, uma criança se atreveu a levantar a voz e gritou, para o assombro de todos: o rei está nu!
O rei do conto não representa uma pessoa, mas um sistema, político ou religioso. Mas até agora as “crianças” que diziam que o rei andava nu, eram tidas como imprudentes, utópicas e ingênuas.
Aqueles que proclamavam que “outro mundo é possível” eram ridicularizados pelos sensatos economistas e estadistas reunidos em Davos. Quando Hans Küng escrevia cartas aos bispos pedindo reformas na Igreja ou o jesuíta egípcio Henri Boulad se dirigia a Bento XVI com vários pedidos de mudança, quando se falava do perigo de que a Igreja se convertesse em um gueto, ou se detectava um cisma silencioso de pessoas que abandonavam a Igreja... os “sensatos” acreditavam que estavam exagerando.
E acontece que agora Francisco, o novo bispo de Roma, é quem, como a “criança” do conto, diz que o sistema econômico liberal, baseado na idolatria do dinheiro é injusto, pois enriquece uns poucos e converte uma grande maioria em massas sobrantes; que a atitude dos países ricos para com os emigrantes africanos e asiáticos, muitos dos quais morrem na tentativa de chegar às costas europeias, é uma vergonha; que vivemos uma bolha do consumo e com o coração anestesiado diante do sofrimento alheio. Francisco condena as armas químicas e diante das crianças mortas na Síria lança um dia de oração e jejum para evitar uma nova guerra; no Brasil, diz aos jovens que arrumem confusão e sejam revolucionários em busca de um mundo melhor e mais justo; que o problema da Igreja é o desemprego dos jovens; que as confissões religiosas do mundo devem unir-se para resolver o problema da fome e da falta de educação.
Francisco reconhece-se pecador e pede orações; recorda que a Igreja necessita de uma conversão e de uma contínua reforma; que o ambiente cortesão é a lepra do Papado; que a cúria é vaticanocêntrica e transfere sua visão para o mundo; que o clericalismo não é cristão; que a Igreja não pode ser restauracionista nem prender-se ao passado; que os pastores devem cheirar a ovelha e não converter-se em clérigos de despacho ou colecionadores de antiguidades, nem cair no carreirismo; que os bispos não podem estar sempre nos aeroportos; que a confissão não pode ser uma tortura, mas um lugar de misericórdia; que se deve evitar o centralismo e o autoritarismo no governo da Igreja; que não se deve teorizar desde o laboratório, mas experimentar a realidade do povo; convida-nos a não ter uma visão monolítica, a respeitar a diversidade, a não ser narcisistas, e a recordar que a Igreja não é uma Ong piedosa, mas a casa de Deus que há de desnudar-se de tudo o que é mundano.
Quem, há algum tempo, teria esperado que o Papa fosse esta “criança” que denuncia que o “rei” anda nu pela história...?
O Papa cristão
O chargista El Roto, que publica no jornal El País, da Espanha, vinhetas humorísticas, sempre críticas e muitas vezes inclusive ácidas, desenhou há pouco um personagem vestido de vermelho (Cardeal? Bispo? Monsenhor?) que exclamava indignado: “Que calamidade! Chegou um Papa cristão!”.
Deixando de lado a ironia sarcástica do humorista, é muito certo que o que Francisco diz e faz não é outra coisa que traduzir o evangelho para o mundo de hoje: estar mais preocupado com a fome do mundo do que com os problemas intraeclesiais, fazer com que a Igreja seja um sinal do perdão e da misericórdia de Deus, uma Igreja pobre e dos pobres, deve ser como um hospital de campanha que cura feridas; que deve sair às ruas, ir às fronteiras existenciais mesmo com o perigo de acidentes; que respeite os leigos e a dignidade das mulheres; que viva em uma atmosfera de diálogo com todas as confissões religiosas sem proselitismo, buscando acima de tudo o bem da humanidade; que respeite a consciência de cada pessoa que é a que deve optar pelo bem; que não se centre obsessivamente em temas morais como o aborto, o matrimônio dos homossexuais e o divórcio, mas que anuncie a boa notícia da salvação em Cristo; que caminhe com outros em meio às diferenças, em espírito sinodal e fraterno; que reconheça que todos somos filhos e filhas do mesmo Pai e irmãos e irmãs, uma Igreja com entranhas maternais de misericórdia, que reflete a ternura de Deus e cuide da criação... que não se grite nem se aclame o Papa Francisco, mas Jesus.
O pulso do Papa não treme. Criticou publicamente um monsenhor envolvido em tráfico de divisas, afastou de seus cargos um bispo que construiu um luxuoso palácio episcopal e um núncio acusado de pedofilia.
Respira-se um ar novo, oxigenante, com cheiro a Evangelho. O que surpreende positivamente a crentes e não crentes, começa a suscitar receio e medo em alguns setores eclesiais que se escandalizam farisaicamente com muitas ações e palavras do Papa. Alguns o chamam pejorativamente de “argentinito” e pedem que Deus “o ilumine ou o elimine”...
As flores do Papa Francisco
O mais surpreendente é que o novo bispo de Roma causou um impacto por seus gestos e símbolos e por suas expressões gráficas mais do que por seus longos discursos ou encíclicas que muito poucos leem. Os semiólogos explicam a importância e o impacto dos símbolos para influenciar e mudar a mentalidade do povo. Francisco optou pelo método de Jesus que falava em parábolas e dava sinais do Reino: curar enfermos, alimentar o povo faminto, comer com pecadores, lavar os pés dos seus discípulos...
A Encíclica Lumen Fidei, assinada por Francisco, mas escrita quase inteiramente por Bento XVI, teve pouca ressonância, mas, ao contrário, o povo crente e não crente captou seus gestos: beijar uma criança com deficiência, lavar os pés de uma jovem muçulmana, comer em Assis com crianças com síndrome de Down, lançar ao mar em Lampedusa uma coroa de flores amarelas e brancas em memória dos emigrantes mortos, usar seus sapatos velhos de antes, não viver nos Palácios Apostólicos, viajar por Roma em um carro simples e pequeno, responder às perguntas de um jornalista não crente, convidar a Santa Marta o rabino de Buenos Aires, dar de presente sapatinhos ao neto de Cristina Fernández de Kirchner, receber Gustavo Gutiérrez, celebrar a eucaristia no dia de Santo Inácio na Igreja do Gesù e levar um ramo de flores ao túmulo do padre Pedro Arrupe, ex-Geral da Companhia de Jesus que havia sido questionado e marginalizado pelo Vaticano.
As flores do Papa Francisco recordam as flores de São Francisco de Assis e do Papa João XXIII. Mudou o clima eclesial. Não sabemos se o Papa Francisco terá condições de levar adiante a reforma da cúria e da Igreja, mas desbloqueou o ambiente, e o inverno eclesial parece ceder a uns simples e ainda tímidos brotos de primavera. Voltará a primavera conciliar?
Um ícone pastoral latino-americano
Este Papa vindo do Sul, da América Latina, traz para toda a Igreja um estilo pastoral novo que reflete a caminhada da Igreja latino-americana de Medellín até Aparecida: a opção pelos pobres, a denúncia das estruturas injustas de pecado, o respeito à fé e à religiosidade do povo simples, a devoção mariana, a simplicidade e a cordialidade, o cuidado da Mãe Terra, a confiança na misericórdia de Deus que sempre está aberto ao perdão.
Por trás de seus gestos e palavras está sua experiência pastoral e teológica latino-americana, argentina, seus contatos frequentes com as favelas e com os padres “villeros”, seu sentido de povo, o influxo da Teologia de Lucio Gera e de Juan Carlos Scannone...?
O programa pastoral do Papa é Aparecida, de cuja última redação ele foi o responsável: discípulos e missionários de Jesus Cristo para que o mundo tenha vida, conversão pastoral, Igreja em estado de missão, Igreja casa e comunidade, opção pela formação de leigos, ver nos pobres o rosto de Jesus, pois não se pode falar de Cristo sem falar dos pobres... Tudo aquilo de cheirar a ovelha, sair às ruas, ir às fronteiras... cheira a América Latina e é uma mensagem para todo o mundo, mas em especial para o Continente Americano. Não em vão observamos esse detalhe significativo de que o Papa presenteou o documento de Aparecida a vários líderes latino-americanos.
Do Sul da Igreja sopra o Espírito, desde os pobres, os marginalizados, as mulheres, os jovens, os indígenas, desde “o menino” que descobre que o “rei”, seja este a sociedade ou a Igreja, está nu...
Toca-nos agora proteger a nudez do “rei”, cobrir suas vergonhas, instaurar entre todos um mundo mais justo e fraterno, uma Igreja mais simples e comunitária, mais nazarena, que cheire a Jesus e a Evangelho.
Que maravilha, temos um Papa realmente cristão!
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Um novo clima pastoral. Artigo de Víctor Codina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU