Por: André | 15 Agosto 2013
“Sem dúvida, ainda é muito cedo para avaliar a futura linha pastoral do novo Papa Francisco; devemos esperar e manter a esperança, mas a súbita e radical mudança da atmosfera eclesial que se produziu em muito pouco tempo são um sinal não apenas positivo e alentador, mas também um sinal claro do profundo desejo de mudanças.” A reflexão é de Víctor Codina, em artigo publicado no sítio espanhol Religión Digital, 13-08-2013. A tradução é de André Langer.
Fonte: http://bit.ly/16RxQLm |
Víctor Codina é sacerdote jesuíta e teólogo latino-americano. Nascido na Espanha, desde 1982 vive na Bolívia. Atualmente, é professor emérito da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Boliviana de Cochabamba, ao mesmo tempo em que se mantém em contato pastoral com comunidades de base e setores populares. Seus últimos livros são; No extingáis el Espíritu (Santander: Sal Terrae, 2008); Una Iglesia Nazarena (Santander: Sal Terrae, 2010); e Diario de un teólogo del posconcilio (Bogotá: San Pablo, 2013).
Eis o artigo.
A Igreja, uma anciã que vem de longe
Antes de nos perguntarmos para onde vai a Igreja, vamos responder à seguinte questão: de onde vem a Igreja? E embora possa parecer estranho, escritores dos primeiros séculos e alguns Padres da Igreja, como Agostinho, respondem a esta pergunta afirmando que a Igreja é uma anciã, é a Igreja prefigurada desde as origens do mundo, é a Igreja de Adão e do inocente Abel, a Igreja que faz parte do desígnio salvífico do Pai que quer constituir uma humanidade fraterna e filial, que participe da vida e da comunhão trinitária. A Igreja que faz parte do projeto trinitário de Deus, que vai se realizando na história da salvação em diversas etapas (Lumen Gentium 2) e da qual ela mesma é sacramento, semente e germe (LG 5).
Este projeto de Deus na plenitude dos tempos se manifesta em Cristo e na efusão do Espírito Santo. Diante desta postura tradicional que afirma que o Jesus histórico funda a Igreja como uma instituição religiosa com seus dogmas, leis e ritos, uma teologia mais crítica considera hoje a Igreja como um processo que vem do Antigo Testamento, começa com o movimento de Jesus, mas que tem sua culminância apenas no acontecimento pascal: a Igreja surge pelo mistério da morte e ressurreição de Jesus e do dom do Espírito Santo. Jesus é o fundamento da Igreja mais que seu fundador e, em todo o caso, o Espírito é cofundador da Igreja.
A Igreja primitiva, ao formular sua fé, situa a Igreja não no segundo artigo do credo sobre a fé em Jesus Cristo, mas no terceiro artigo da fé, no Espírito Santo. Isto tem grande relevância não apenas teológica, mas pastoral: o Espírito habita a Igreja, santifica-a e a guia para a verdade, a enriquece com diversos dons e carismas, a rejuvenesce e a renova constantemente (LG 4). A Igreja não é nem um clube, nem uma empresa multinacional, nem uma ONG piedosa, nem um partido ao qual alguém se filia ou desfilia segundo a conveniência: é Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo, inclusive em momentos de noite escura, de eclipse, de crises e tempestades.
A cúpula de São Pedro
No interior da belíssima cúpula de São Pedro de Roma está escrito em latim e grego o versículo de Mateus 11, 18 no qual Jesus afirma que Pedro é pedra e que sobre esta pedra edificará sua Igreja, contra a qual as forças do mal e da morte não prevalecerão. Mas faltaria completar este versículo com o que Mateus acrescenta logo depois, no versículo 23: que Pedro é pedra de tropeço, pedra de escândalo e Satanás.
O fato de que Pedro seja pecador e santo, já prenuncia que a Igreja é ao mesmo tempo santa e pecadora, casta e prostituta, segundo os Padres da Igreja. Isto nos livra de qualquer triunfalismo idealista e espiritualista, nos faz compreender que a Igreja é humana e divina, que não pode ser entendida à margem da sua história concreta, de seu peregrinar em meio a fragilidades, perseguições e consolos de Deus (LG 8). A história faz parte da eclesiologia, de modo análogo ao fato de que o Jesus histórico faz parte da cristologia.
Na história da eclesiologia podemos distinguir diferentes momentos. O primeiro milênio constitui uma Igreja que, mesmo no meio de suas tensões e problemas, vive fortemente a dimensão da comunidade e da comunhão; ao contrário, no segundo milênio prevalece uma eclesiologia de poder e verticalidade, clerical, triunfalista e juridicista, a chamada Igreja da cristandade, que atinge sua expressão última nos séculos XIX e XX, na chamada época “piana”, que compreende desde Pio IX até Pio XII.
Não se pode esquecer todos os aspectos positivos de evangelização e santidade deste longo período da Igreja da cristandade, a Igreja das catedrais e das sumas teológicas, mas que é também a Igreja dos Estados Pontifícios, das cruzadas, das divisões internas, da Inquisição, das guerras de religião, do antissemitismo, de uma evangelização muitas vezes ligada aos impérios coloniais... Dos pecados desta Igreja do segundo milênio pediu perdão publicamente o Papa João Paulo II no Jubileu do ano 2000.
Às vésperas do terceiro milênio surge um novo período eclesiológico, diferente do segundo milênio da cristandade e em muitos aspectos semelhante às intenções da Igreja de comunhão do primeiro milênio, mas aberta aos tempos modernos.
A janela aberta
João XXIII, um homem enviado por Deus, um camponês simples, mas intuitivo com a sabedoria do coração, convoca o Concílio Vaticano II: uma janela aberta ao Espírito que sacode e limpa a poeira dos tempos de Constantino. Inicia-se um terceiro milênio eclesiológico com profundas mudanças na Igreja: passa-se da Igreja clerical a uma Igreja Povo de Deus de todos os batizados, de uma Igreja triunfalista a uma Igreja peregrina que caminha com o povo rumo ao Reino, de uma Igreja juridicista a uma Igreja mistério e sacramento da união com Deus e com a humanidade (LG 1; 9; 48), do anátema ao diálogo.
Com a morte de João XXIII, Paulo VI prossegue o Concílio e o leva ao término com sabedoria e eficácia. É uma autêntica primavera eclesial a que se experimenta na Igreja nestes anos, um verdadeiro Pentecostes, como havia sonhado e pedido João XXIII. Sem o Vaticano II, afirma o cardeal König de Viena, a Igreja teria sido uma autêntica catástrofe.
Na América Latina, o Concílio foi recebido de forma criativa em Medellín: surge “a opção pelos pobres”, que representa a realização do sonho não realizado de João XXIII – de que a Igreja fosse, sobretudo, uma Igreja dos pobres; aparecem bispos próximos ao povo, verdadeiros Santos Padres profetas da Igreja dos pobres como Proaño, Hélder Câmara, Méndez Arceo, Samuel Ruiz; surgem as comunidades eclesiais de base, a leitura popular da Bíblia, a vida religiosa inserida nos meios populares, o compromisso social e eclesial dos leigos, a Teologia da Libertação e um impressionante florescimento de mártires assassinados pela fé e pela justiça, desde bispos como Romero e Angelelli até teólogos como Ellacuría e religiosas como a Irmã Dorothy e uma infinidade de pessoas do povo simples, verdadeiros santos inocentes massacrados por governos ditatoriais que se proclamavam católicos.
A janela se fecha
O Vaticano II, depois de tantos séculos de fechamento eclesial, produziu reações extremas. Por um lado, Lefebvre e seus seguidores acusaram o Concílio de modernista e protestante. Por outro lado, alguns grupos progressistas exageraram na sua aplicação. Por tudo isso, em Roma, espalhou-se o pânico às divisões internas, atribuiu-se ao Concílio tudo quanto de negativo acontecia na Igreja. Paulo VI, que havia escrito uma admirável encíclica sobre o diálogo (Ecclesiam Suam), acabou impondo seu parecer sobre o celibato e o controle de natalidade (Humanae Vitae).
Os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI foram, sem dúvida, um exemplo de testemunho pessoal e evangélico, e um modelo de dedicação pastoral a serviço da Igreja: João Paulo II, com sua forte personalidade carismática polonesa, missionário incansável que reunia grandes multidões, conduziu a Igreja com mão firme até o terceiro milênio; Bento XVI, um grande intelectual alemão, enriqueceu a Igreja com um profundo magistério teológico centrado no núcleo essencial da fé cristã, reprimiu os escândalos sexuais e surpreendeu todo o mundo com o gesto simples e humilde da sua renúncia ao papado...
Não obstante, no transcurso de ambos os papados, seja pelo medo de divisões na Igreja, seja por pressões da cúria vaticana, começa-se a propiciar uma hermenêutica do Vaticano II mais centrada na continuidade do que na novidade do aggiornamento conciliar. É significativo a este respeito que João XXIII fosse beatificado juntamente com Pio IX, o Papa do Vaticano I. O grande historiador do Vaticano II, Giuseppe Alberigo, afirma que parecera que pouco a pouco a minoria que no Vaticano II havia ficado de algum modo marginalizada, agora volta a brandir as bandeiras da tradição antimodernista, antiliberal e anticomunista. A janela aberta por João XXIII lentamente se fecha novamente com os governos de João Paulo II e Bento XVI: centralização no governo, enfraquecimento da colegialidade episcopal, grande preocupação com a ortodoxia e medo do relativismo, concessões aos grupos lefebvristas e, por outro lado, censura aos teólogos mais abertos, medo dos ministérios laicais, freio no ecumenismo, nomeação de bispos mais seguros que proféticos, conflitos com congregações religiosas abertas, promulgação do Catecismo da Igreja Católica – quando os padres conciliares haviam se oposto a isso –, auge de movimentos eclesiais e carismáticos de tipo espiritual que recebem forte apoio do Vaticano, etc.
Passa-se da primavera ao inverno eclesial. A Igreja tende a fechar-se em um gueto (Karl Rahner), volta-se à grande disciplina (João B. Libanio), é uma noite eclesial escura (José I. González Faus), começa uma involução: à revista Concilium segue-se agora a revista Communio, ao teólogo conciliar Karl Rahner sucede-o agora o teólogo pós-conciliar Von Balthasar; há um cisma silencioso de muitos que abandonam a Igreja. Se acrescentarmos a isso os escândalos sexuais de pessoas eclesiásticas significativas, os escândalos financeiros e lutas internas da cúria vaticana, se compreenderá o clima de desolação que dominou ultimamente na Igreja.
“Francisco, restaura a minha Igreja”
A admirável renúncia de Bento XVI, oprimido pela idade e pelos escândalos sexuais e financeiros, e a eleição do Papa argentino, o jesuíta Jorge Mario Bergoglio, parecem abrir um novo horizonte para a Igreja.
Os primeiros sinais do papado de Francisco são muito positivos e despertaram esperança na Igreja e na humanidade: sua simplicidade e humildade de pedir a oração e a bênção do povo a quem chama de irmãos e não filhos, o fato de se apresentar simplesmente como bispo de Roma, o desejo de uma Igreja pobre e dos pobres, a ênfase na misericórdia e na ternura, o pedir aos pastores para que vão à periferia e que tenham “cheiro de ovelha”, sua permanência momentânea fora do palácio vaticano, seus gestos de acolhida de crianças e deficientes e, sobretudo, a postura de assumir o nome de Francisco, o poverello que recebeu o chamado para restaurar a Igreja, amansou o lobo, abraçou o leproso, entoou o cântico da criação e se configurou com o Crucificado... Há quem recorde a figura de João XXIII, sente-se que a Igreja começa a sair da desolação de anos passados, em que a barca da Igreja parecia soçobrar com as violentas turbulências de fora, mas também com as fendas internas.
Sem dúvida, ainda é muito cedo para avaliar a futura linha pastoral do novo Papa Francisco; devemos esperar e manter a esperança, mas a súbita e radical mudança da atmosfera eclesial que se produziu em muito pouco tempo são um sinal não apenas positivo e alentador, mas também um sinal claro do profundo desejo de mudanças.
As tarefas pendentes que aguardam pelo novo bispo de Roma e que o povo reclama são imensas: voltar ao Concílio e à Igreja dos pobres, descentralização eclesial, participação do povo na escolha dos bispos e na reforma do método vigente de escolha do Papa, que os sínodos episcopais sejam deliberativos e não meramente consultivos, mudanças nos ministérios ordenados (celibato não obrigatório para o clero latino, ordenação de homens casados, acesso da mulher aos ministérios), repensar a moral sexual e matrimonial, revisão da pastoral dos divorciados, diálogo com as ciências e com a biogenética, abertura à problemática ecológica, aproximação ecumênica entre as Igrejas, diálogo inter-religioso, maior consideração dos teólogos, reforma da cúria vaticana e um longo etc.
Mas, não será esta tarefa excessiva para um só homem, por mais inteligente, capaz, enérgico e evangélico que seja? Não será uma missão impossível?
De baixo para cima
Vastos setores da Igreja costumam ter uma formação eclesial pobre e muitas vezes errônea. Identifica-se a Igreja com a hierarquia, a hierarquia com o Papa, o Papa com a cúria romana; superdimensiona-se a figura do Papa a quem se considera o representante de Deus na terra, a Cabeça da Igreja, quando o Papa é simplesmente o bispo de Roma, aquele que preside na caridade todas as Igrejas, aquele que sucede a Pedro na missão de manter a fé e a unidade eclesial.
Esquece-se com frequência que a Igreja é feita por todos os batizados, que todos somos o Povo de Deus, o Corpo de Cristo e o Templo do Espírito Santo, que todos possuímos a unção e os dons do Espírito (LG 12), que são muitos os que querem uma profunda renovação eclesial. Na América Latina, são muitos os que desejam voltar a Medellín e a Puebla, não retroceder, não esquecer os mártires jesuânicos, crer que outra Igreja é possível, uma Igreja não simplesmente de batizados, mas de discípulos e missionários de Jesus, como proclama Aparecida.
Não devemos esperar que as reformas venham somente de cima. Devemos começar, cada um do seu lugar eclesial, a restaurar a Igreja, a continuar a linha do Vaticano II, a voltar ao Evangelho, a gerar comunidades vivas, a defender a vida ameaçada. O Espírito ordinariamente age de baixo para cima, da periferia, dos não implicados no sistema social e eclesial, dos leigos, dos jovens, das mulheres, dos pobres, dos indígenas, dos excluídos da história, que eram os prediletos de Jesus. A partir deles o Espírito clama hoje com gemidos inefáveis pedindo uma volta ao Evangelho, está chamando toda a Igreja a voltar para Jesus de Nazaré, pois fora de Nazaré não há salvação...
O Papa não está sozinho em sua missão e encontrará grande apoio eclesial se, por exemplo, se afastar da chefia do Estado vaticano e de toda a parafernália de bandeiras, hinos, banco vaticano, guarda suíça, núncios embaixadores e uma corte renascentista e barroca... que está muito distante do mundo moderno de hoje e muito mais ainda do Evangelho e dos pobres da terra.
Não podemos ser ingênuos. Nunca as mudanças são rápidas, há resistências e fragilidades humanas, há pecado na Igreja e em suas estruturas, mas devemos confiar na força do Espírito que continuamente impulsiona a Igreja para o Reino, para a fraternidade de irmãos e irmãs, de filhos e filhas do Pai, para o projeto de Deus, ao sonho trinitário das origens da criação, à anciã Igreja de Adão, de Abel e dos justos de todos os tempos.
A Igreja, movida pelo Espírito de Jesus, vai ao encontro do Reino de Deus, do qual ela já é semente e germe na história. Não extingamos o Espírito.
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Para onde vai a Igreja? Artigo de Víctor Codina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU