Por: André | 19 Agosto 2013
De passagem por Buenos Aires, convidado pelo Encontro Nacional de Sacerdotes na Opção Preferencial pelos Pobres, conversamos com Víctor Codina, sacerdote jesuíta espanhol, que nos falou da sua vida, seu pensamento teológico e suas esperanças.
A entrevista é de Oscar Campanha e publicada na revista argentina Vida Pastoral, n. 244, 2003. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Para quem não lhe conhece tanto, conta-nos um pouco quem você é e como chegou à América Latina?
Nasci na Espanha há 71 anos e entrei na Companhia de Jesus em 1948, de maneira que tenho mais de 55 anos como jesuíta. Da minha província, que é a Catalunha, haviam enviado muitos para a Bolívia; inclusive tinha um irmão jesuíta ali. Então, vim em 1971 para a América Latina. Estive na Bolívia, na Argentina – convidado pelo mestre de noviços daquela época, Jorge Bergoglio –, na Venezuela, e aproveitava os verões da Espanha para vir aqui para dar cursos, lá por 1978, 1979. Mas um fato importante foi que em 1980 mataram Luis Espinal, que era meu companheiro e que estava na Bolívia; um homem profético, que foi amarrado, torturado e crivado de balas exatamente três dias antes de dom Romero, de maneira que as pessoas uniam a figura de Espinal à de Romero. Isto me moveu a pedir para vir para a América Latina para suprir uma morte; não é que eu pudesse fazer o que ele fazia, mas como uma colaboração para a América Latina. Então, desde 1982 estou na Bolívia. Estive em Cochabamba, em Oruro, em Santa Cruz e desde novembro passado estou novamente em Cochabamba. Minha atividade foi variada: por um lado, mantive contato com a Faculdade de Teologia onde dou aulas, mas também estive em setores populares, em bairros, em comunidades de base; em Oruro fizemos um centro de serviço popular com muitas conversas com leigos, com pessoas comprometidas e destas conversas saiu grande parte de uma série de cadernos que fizeram bastante sucesso: “Ser cristão na América Latina”; “Cristãos em festa”; “O credo”; “O que é a Igreja”; etc., que nasceram, pois, ao calor de conversas com grupos de base, com grupos populares.
A Igreja está no Oriente
Quanto à sua obra teológica escrita, você teve a peculiaridade de se enfronhar em temas que não foram comuns na América Latina. Por exemplo, o tema da liturgia ou da pneumatologia ou das Igrejas Orientais. Sobre este último ponto, o que o moveu a refletir sobre a experiência das Igrejas do Oriente?
Na Europa, eu tinha a impressão de asfixia teológica, de que a teologia latina era uma teologia sumamente racionalista, sumamente fria, sumamente especulativa e que lhe faltava vida, lhe faltava espírito, com uma grande separação entre espiritualidade e teologia, uma espiritualidade muito caseira e uma teologia muito pouco espiritual. Então, em um ano sabático, pedi para ir a Paris para estudar teologia oriental e descobri uma nova dimensão da fé cristã, a dimensão do Oriente. Foi como passar de duas dimensões para três dimensões, a dimensão do Espírito dava a tudo um realce e um volume totalmente novo. Comecei a me dedicar à teologia oriental e, quando vim para a América, me pareceu que na América também este tipo de teologia oriental podia encontrar um certo eco. Inclusive escrevi um artigo sobre a relação entre a teologia latino-americana e a teologia oriental. Me parece que as duas partem da vida, as duas partes de baixo, as duas supõem uma religiosidade popular muito forte, têm uma dimensão dos pobres, têm a dimensão do Espírito, têm a dimensão da liturgia, da religiosidade popular, dos ícones. De maneira que inclusive escrevi um artigo em uma revista sobre o que teria acontecido se a América Latina tivesse sido evangelizada pelos autores, pelos teólogos e pelos pastores da Igreja Oriental. Creio que teria havido muito mais respeito pela cultura, muito mais respeito pelas religiões, muito mais respeito pela terra e muito mais respeito pela religiosidade popular.
A fé do povo
Um dos temas que você menciona por causa da relação da teologia com o Oriente é a questão da religiosidade popular. Coube-lhe estabelecer-se na América Latina em 1982, no que foi o imediato pós-Puebla, do qual entre outras coisas lembro desse debate – que inclusive na Argentina pegava –, essa espécie de oposição entre libertação, de um lado, e cultura, do outro; comunidades de base, de um lado, religiosidade popular, do outro. Sempre deu a sensação de que em suas obras encontrava pontos de contato, de encontro e de comunhão entre ambas as vertentes. Isto é uma sensação minha ou realmente acredita que é assim?
Creio que é assim. Tentei descobrir na religiosidade popular uma força religiosa, cultural, mística inclusive; mas, ao mesmo tempo, tentar fazer com que esta religiosidade popular se concretize em um compromisso social, político, humano, com o bairro, com a sociedade, descobrindo na religiosidade popular uma fé profunda, uma fé do povo, a fé dos simples, a fé dos pobres, de modo que as bem-aventuranças bíblicas sobre a fé dos pobres e dos humildes que entendem o Evangelho me parece que vale tanto para as comunidades de base como para a religiosidade popular. Cheguei a escrever um artigo há alguns anos sobre os sacramentais, e creio que os sacramentais, a água benta, as cinzas, as palmas do Domingo de Ramos, as procissões, as imagens, são os sacramentos dos pobres e que não estão tão clericalizados, mas que são administrados pelos pobres, que os leigos administram com mais desenvoltura que os clérigos e a partir daqui se pode chegar a compreender os sacramentos mais tradicionais da Igreja: a partir da água benta descobrir o que é o batismo; a partir das cinzas descobrir o que é a reconciliação; a partir das palmas descobrir o que é o mistério pascal. Aqui encontro um filão que vale tanto para as comunidades de base como para uma religiosidade popular.
Desafios e esperanças
Por onde pensa que passam os desafios para a pastoral da Igreja na América Latina? Obviamente, pressente-se certas coisas que lamentavelmente há séculos são óbvias, como a questão da pobreza e da injustiça. Ao contrário, quando digo desafios, me pergunto pelos caminhos que a Igreja deveria percorrer para dar conta deles.
Me parece que a partir da injustiça e da pobreza viria toda uma ação libertadora. Mas esta ação libertadora deveria estar empalmada e não desligada da evangelização. Ou seja, evangelizar os pobres, me parece, continua sendo uma tarefa por realizar, porque, como disse Enrique Dussel, a América Latina é um continente que ainda está no catecumenato, que foi batizado, mas que não passou pela catequese, necessita ser evangelizado e especialmente os pobres, porque são a maioria. Então, que seja este evangelho dirigido aos pobres um evangelho libertador, um evangelho construtivo, um evangelho novo que realmente vai elevando para caminhos de pastoral mais autênticos.
Vê, hoje, a Igreja Latino-americana com forças, com medos, com uma mística para levar adiante esta tarefa evangelizadora?
Creio que a situação decaiu desde Medellín e Puebla. Já Santo Domingo não é a mesma coisa que Medellín e Puebla. Eu noto um certo cansaço, uma certa perplexidade teológica, um certo desconcerto, uma falta de luz; buscam-se prioridades, mas não se sabe quais prioridades são as autênticas. Me parece que é um momento que faz parte da Igreja universal, momento de desconcerto, de decadência do pontificado, de final de um pontificado, porque o Papa insistiu em remar mar adentro. Mas estas são palavras: falta muito para que isto seja levado à prática.
Quando pensa o futuro da Igreja universal e latino-americana, onde assenta a esperança? Quero dizer, essa esperança, que como dom é transcendente, em que coisas concretas a vê?
Bom, há muitos sinais de esperança, por exemplo: a tomada de consciência dos leigos, de seu papel na Igreja e na sociedade, me parece que isto é fundamental. O que Santo Domingo fala do protagonismo dos leigos é um sinal de esperança. Dentro dos leigos, as mulheres: as mulheres são as mais ativas, não apenas nas comunidades de base, mas também em nível teológico. Na América Latina, as que mais escrevem agora são mulheres. Então, eu creio que isto é um sinal de esperança. Outro sinal de esperança é a revalorização das culturas, está surgindo uma teologia indígena, uma teologia afro-americana que me parece que pode dar muita esperança. Também há o que se chama de diálogo inter-religioso, o que Dom Pedro Casaldáliga chama de macroecumenismo. Ou seja, um diálogo não apenas com as Igrejas cristãs, mas também com as grandes tradições religiosas da humanidade e aqui entraria o diálogo com as religiões ancestrais de muitos dos povos da América Latina. Estes são sinais de esperança que, me parece, podem nos dar ânimo para seguir em frente. Junto com isto eu creio que cresce o sentido comunitário, que apesar do neoliberalismo que é sumamente individualista, em todas as partes há um desejo de comunidade, de formar grupo, de buscar a casa comum, de comunhão. Estes seriam alguns dos caminhos de esperança que vejo.
Novas teologias
Questões como o leigo, a mulher, os povos indígenas, o intercultural, o inter-religioso... Quando se vê a caminhada teológica na América Latina dos anos 1960 para cá aparecem como riquezas e novas incorporações. Mas, às vezes, esses temas novos, vistos a partir da crise dos anos 1990, pareceram como um refúgio, inclusive no sentido pejorativo, diante de certos temas que logo desapareceram com um questionamento muito forte do estrutural. Talvez os anos 1970 foram muito marcados por um pensamento sociopolítico sobre o estrutural e hoje o que vemos é que aparece a variedade e a riqueza de problemáticas, mas também a sensação de uma certa incapacidade de voltar a retomar, a partir de algum ponto de vista, a questão estrutural.
Creio que isto é divido às mudanças que houve nestes últimos anos e que nos fazem ver que mudar estruturas, como se dizia alegremente nos anos 1970, não é tão fácil assim. Que a tomada do poder que parecia estar na esquina nos anos do socialismo na América Latina não é tão fácil e que teve seus fracassos. Então, me parece que atualmente devemos começar mais do micro, do pequeno, como disse um autor: “no germinal está a utopia”. Ou seja, estas pequenas mudanças libertadoras de comunidades, de mulheres, de bairros, de direitos humanos, de jovens, de voluntários, isto vai semeando, tecendo uma rede que pode chegar a fazer mudar as estruturas mais adiante. Porque, como disse o grito de Porto Alegre, “outro mundo é possível”. Acontece que nos faltam os meios para poder transformar este mundo. Eu creio que devemos começar pelo pequeno, de baixo para cima, do simples. Disse Pablo Richard: “devemos passar de elefantes a formigas”. Nos anos 1970 éramos elefantes, pensávamos em grandes coisas, grandes palavras, grandes relatos; hoje, talvez as formigas, que são mais simples, menores, mas que se metem em todas as partes, podem desfazer um edifício, que trabalham em rede, pode ser um modelo de ação diferente, mas mais eficaz.
Junto com as novas temáticas ou problemáticas que apareceram, há algum elemento, autores, perspectivas onde vê algo realmente novo na teologia latino-americana?
Creio que ainda não aparece a nova geração na teologia latino-americana; ou seja, um pouco são os autores clássicos, acontece que estes autores clássicos foram se abrindo a outras dimensões. Por exemplo, Leonardo Boff abriu-se muito fortemente ao diálogo ecológico, ao diálogo religioso. Diego Irarrazaval se abriu fortemente à teologia do gênero, à teologia dos indígenas. Apareceu Da Silva, brasileiro, que se abriu à teologia africana com muita força (ele é afro-americano). E as mulheres, desde Ivone Gebara até Teresa Porcile, que morreu, foram se abrindo a estas novas dimensões. Mas ainda conheço pouco as novas gerações que estão vindo, me parece que ainda há um certo vazio, que as novas gerações não estão tão entusiasmadas em seguir por este caminho, mas que se abrem a outros caminhos diferentes.
Espanha e América Latina
Você continua mantendo relações com sua Espanha natal. Como sente que repercutiu ali, nos últimos anos, a teologia latino-americana?
Eu penso que sempre houve, desde os anos 1970, uma grande sensibilidade na Espanha para com a América Latina em muitos autores pela possibilidade cultural, pela língua. Na Espanha há um grupo de autores muito sensíveis à realidade latino-americana. Em Granada, Castillo e Sicre; em Madri, Floristán, Tamayo e Lis; na Catalunha, González Faus, Alegre e Vives. No País Basco, Aguirre e Dolores Aleixandre. Ou seja, houve uma sensibilidade bastante forte. De fato, não é por acaso que o primeiro encontro de teólogos da libertação aconteceu em El Escorial, em Madri, já em 1972. Depois, houve um segundo encontro, em 1992, que foi como uma espécie de avaliação, já então se deu a mudança. Eu a formulo dizendo que se passou do sucesso ao exílio, mas também foi uma riqueza constar esta proximidade que havia na Espanha para captar toda a revolução da teologia latino-americana.
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“No germinal está a utopia”. Artigo de Víctor Codina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU