07 Janeiro 2014
A exortação apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, não é um documento político ou econômico, mas claramente vem gerando debates entre políticos e economistas. Era sabido que, tão logo o presidente Barack Obama citasse o texto papal, críticos da ala conservadora, tais como Rush Limbaugh, iriam enlouquecer, e de fato Limbaugh enlouqueceu, ao dizer que o papa não sabia coisa alguma do que estava falando e que tudo o que escreveu era “puro marxismo”.
A reportagem é de Michael Sean Wintes, publicada pelo National Catholic Reporter, 03-01-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Críticos católicos levantaram uma interessante objeção: disseram não haver um tal mercado autônomo, nem um tal consumismo desenfreado. No texto, Francisco afirmou que “enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Este desequilíbrio é o resultado de ideologias que defendem a autonomia absoluta do mercado e da especulação financeira”. E, embora a escolha do momento para a publicação seja coincidência, estas palavras do pontífice parecem particularmente desafiar uma cultura como a nossa, que estava entrando num período de compras de fim de ano, quando a Evangelii Gaudium foi publicada, em 24 de novembro: “Os mecanismos da economia atual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido social”.
Para ser claro, o Papa não falava de teoria econômica em termos abstratos. Estava descrevendo o mundo como ele vê e conhece. Francisco nunca teve o prazer de participar de uma palestra no Acton Institute, um instituto pró-mercado. No entanto, conhece de perto a realidade das favelas. Presidiu a Conferência Episcopal da Argentina durante a crise da dívida soberana. Pode até ser verdade que não exista uma economia de mercado completamente sem restrições, mas também é verdade a exagerada licenciosidade existente, hoje, para justificar o acúmulo do que só pode ser considerado uma condenação severa, insistente e humanamente sofisticada: “o sistema social e econômico é injusto na sua raiz”, afirmou.
Teólogos irão discutir e debater o Evangelii Gaudium por muito tempo. As conferências dos bispos irão se ver frente às diferentes partes do documento. No entanto, o que isso significa para o cenário político nos EUA?
Em primeiro lugar, enquanto católicos conservadores argumentam que existem somente cinco questões “inegociáveis” para os católicos na arena política – aborto, casamento homoafetivo, eutanásia, pesquisas com células-tronco e clonagem humana –, eu penso que podemos dizer, com certeza, que a pobreza entrou nessa lista. Nunca gostei da ideia de isolar questões “inegociáveis” do resto. Em certo sentido, todos os ensinamentos da Igreja são “inegociáveis”. Porém, Francisco colocou claramente a preocupação com os pobres no centro do engajamento da Igreja com a política e a sociedade, de tal maneira que ninguém mais pode negar. Na verdade, ele não apenas colocou a questão da pobreza no topo da lista das preocupações da Igreja em sua esfera pública, como também a assentou no coração da evangelização em si. Queiramos ou não, ninguém poderá negar isso.
Em segundo lugar, quando a Conferência dos Bispos Católicos dos EUA se pôr a reescrever o seu quadrienal guia para eleitores – intitulado “Formando consciências para uma cidadania fiel” –, o foco sobre a pobreza irá exigir que os bispos calibrem o uso que fazem do conceito de mal intrínseco na avaliação das escolhas políticas. Este conceito nunca foi exatamente aplicável: há uma série de coisas, tais como mentira e masturbação, que são intrinsecamente más e que, todavia, não parecem suscetíveis de correção via legislação. A pobreza não é um mal intrínseco, mas é um sério mal, e os bispos irão precisar lhe dar uma ênfase renovada para combatê-la. O artigo muito discutido de Dom Robert McElroy, publicado na revista America em outubro de 2013, apontou o caminho a seguir: afastem-se do excesso de confiança relativa ao conceito de mal intrínseco e priorizem a pobreza e o aborto como as questões mais salientes para os católicos na esfera pública. Esta estratégia tem a vantagem de deixar claro, a todos, que a Igreja não é um braço dos partidos políticos, que nossas preocupações com os pobres e com o fim dos tormentos advindos do aborto estão enraizados na mesma preocupação fundamental que se tem quanto à dignidade humana.
E em terceiro lugar, enquanto que o documento apostólico Evangelii Gaudium não tem nenhuma proposta específica de políticas a serem adotadas, o texto convida os políticos e economistas católicos a sugerirem ideias específicas de políticas que tenham incorporadas a visão do Papa. Aqui é o lugar onde tanto os católicos de direita quanto os de esquerda deveriam se engajar em reflexões sérias e em colaboração.
Creio que mesmo o mais esquerdista dos liberais concederia um papel para os mercados, e que mesmo o mais ferrenho dos conservadores iria admitir que os mercados não são suficientes para darem conta das necessidades dos pobres. Também creio que ninguém pensou que o Papa Francisco tenha essas coisas para pôr à venda por nas lojas de conveniência. Como será uma cultura política e econômica que reflita a dignidade humana?
Os mercados presumem que haverá vencedores e vencidos, e um dos temas mais incisivos do Papa é que, aos olhos de Deus – e portanto aos olhos da Igreja –, nenhum ser humano é um perdedor. Gostaria de sugerir o seguinte: que uma pequena quantidade de ideias de políticas possam abordar algumas das preocupações do Papa, por exemplo a de que a dignidade humana seja protegida das forças do mercado mesmo quando seres humanos forem encorajados a entrar nele em busca de sua subsistência. Primeiro, ninguém perderia no mercado, ninguém que é demitido ou que seu negócio venha a fechar deveria perder tudo. Cada sociedade deveria fornecer suficientemente, para as necessidades humanas básicas, elementos como abrigo, cuidados com a saúde e educação para todos, não importando como os membros de tal sociedade se saíssem no mercado. Segundo, aqueles que participam no mercado deveriam ser capazes de ter uma vida decente. Esforços para aprovar um salário mínimo, em vez de um salário mínimo no nível de pobreza que temos hoje, iriam ajudar elevar o piso para todos os envolvidos. Terceiro, aos os vencedores deveria ser-lhes permitido vencer, porém eles precisariam vencer com tanta diferença? O Papa claramente se preocupa com a crescente desigualdade de renda no texto do Evangelii Gaudium, e uma estrutura de impostos mais progressista poderá certamente ajudar superar tal desigualdade. Por fim, a globalização não deve se tornar uma forma nova de colonialismo, ditado por interesses de mercado em lugar de interesses dos governantes.
Estes quatro objetivos políticos não trariam a hecatombe, o fim dos tempos. Todavia, fariam as nossas sociedades um pouco mais decentes e humanas, e é precisamente por isso o que o Papa Francisco está clamando: uma sociedade que seja humana.
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Exortação apostólica desencadeia debates políticos e econômicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU