Por: Jonas | 08 Outubro 2013
Em Roma, impõe-se a primavera a marchas forçadas. Até o prefeito para a Doutrina da Fé, Gerhard L. Müller (foto), já não parece o outrora temido chefe do ex-Santo Ofício. Num bom castelhano, atende com amabilidade os jornalistas e se submete a nossas perguntas. O membro da Cúria admite sua amizade com Gustavo Gutiérrez e com a Teologia da Libertação “sadia”. Ri pelo fato do cardeal Cipriani ter lhe chamado de ingênuo e lhe dói que um teólogo como Hans Küng tenha pedido o suicídio assistido, por sofrer o mal de Parkinson. “Espero que ninguém siga o seu exemplo”.
Fonte: http://goo.gl/RDQSCA |
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada no sítio Religión Digital, 03-10-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Nesta conversa com o novo ateísmo, tema da X Jornada de Teologia da Universidade Pontifícia Comillas, que papel pode exercer um Papa como Francisco?
O Papa fez um diálogo com o editor do jornal Reppublica, Scalfari. Não tem nenhum medo de dialogar, porque nossa fé vem do “logos”, da Palavra de Deus, que é também o intelecto de Deus. E temos uma religião que relaciona o diálogo e a fé. E, por isso, a Igreja, não apenas o Papa, também os teólogos, são os primeiros interlocutores deste diálogo entre os não crentes e os crentes. Todos os homens são crentes, quando se pergunta aos ateus ou agnósticos no que acreditam, dizem que acreditam na natureza, na vida, em sua família... Todos os homens acreditam em alguma coisa, pois toda a Humanidade tem seu fundamento existencial em si mesma, numa realidade que está fora de nós mesmos. Nós chamamos a esta realidade Deus, que se revelou como nosso criador.
Você é amigo de Gustavo Gutiérrez, o pai da Teologia da Libertação?
Sim.
O Papa acaba de recebê-lo. De alguma maneira, está se reabilitando a Teologia da Libertação?
A Teologia da Libertação sadia nunca foi condenada, mas foi um elemento legítimo da teologia católica. A teologia tem que dar uma resposta a uma situação, sobretudo na América Latina, onde tantos homens vivem abaixo da dignidade humana, não tem nada que comer ou dar para comer a seus filhos, sem uma formação escolar ou um trabalho. A situação é muito ruim. Por isso, o Santo Padre Francisco também disse que a Igreja é responsável do homem como corpo, como ser social. Há tempo, temos a Doutrina Social da Igreja, mas, também, esta Teologia que se desenvolveu após a Gaudium et Spes e do Vaticano II adquiriu clara legitimidade. O magistério denunciou algumas formas ou ideias que não concordavam com a teologia católica, mas Gustavo Gutiérrez nunca caiu nesta armadilha de certo marxismo ou na luta de classes. Os homens de Jesus Cristo devem superar as guerras sociais, as guerras com as armas, entre tribos. Também na Espanha, todos devem se entender como espanhóis, apesar de haver uma cultura na Catalunha, no País Basco ou em Castela. Todos os países na Europa possuem diferentes culturas: isto enriquece em si mesmo. Contudo, é inútil dividir uma nação. Acreditamos em Pentecostes, todos os homens de diferentes culturas e línguas... Como Igreja, temos que ser exemplos, modelo desta forma de viver dos homens juntos, apesar das diferenças em todas as dimensões da vida humana. Estas diferenças são adequadas à vontade de Deus, e temos que viver juntos. Um corpo em Jesus Cristo. Muitos carismas do Espírito Santo.
Esta avaliação positiva que você faz da Teologia da Libertação colocou-lhe na mira de alguns setores, inclusive entre alguns da hierarquia, como o cardeal Cipriani.
(sorri) Disse que sou da extrema esquerda...
O cardeal de Lima o chamou de ingênuo
Ingênuo, sim... Todos nós somos ingênuos (risos), ele deve saber. Não é este o problema. Não me importa muito ser ingênuo, mas é necessário reconciliar os partidos que existem na Igreja. Todos aceitam a sadia doutrina da Igreja, é possível ter certo pluralismo no estilo da piedade, da veneração a Deus. Temos estes diversos ritos na Igreja. O pluralismo no estilo da Teologia, todas estas maneiras diversas, mas todos nós vivemos a mesma fé, os mesmos sacramentos. Nossa Congregação não tem apenas a tarefa de excluir os heréticos, mas também a de promover a fé, viver na unidade que Jesus nos deu. Existe uma unidade numa certa pluralidade. Existe uma cabeça, mas diferentes membros, diferentes carismas. Temos que superar essas ideologias da política, esquerda-direita, conservador ou progressista. Estas são categorias que vieram da filosofia do Iluminismo, do século XIX, que chegaram lamentavelmente à Igreja. Isto não tem nada a ver. Acreditamos em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, na Igreja que é a Esposa de Jesus Cristo. Temos que superar estas alas ou partidos que existem. Nós somos a Igreja. Temos uma fé, uma liturgia e temos que saber que todos somos irmãos e irmãs em Jesus Cristo, e em nossa Doutrina Social da Igreja temos o ponto da solidariedade e da fraternidade, da irmandade... Não apenas para a sociedade secular, temos que realizar estes valores entre nós, entre a Igreja.
Como veem, a partir da Cúria, a reforma que o papa Francisco deseja fazer?
Nossa Congregação, Doutrina da Fé, é a mais importante, porque nós somos “deuses” (risos), disse de uma maneira infantil. A unidade na fé revelada é a mais importante tarefa do prelado. O Papa, desde o princípio, é o fundamento da unidade. Todos, membros da Igreja de Cristo. Trata-se de dar esta primazia à Fé na Cúria, e o segundo passo à política diplomática, na relação com os Estados, que também é muito importante para o avanço da sociedade. Contudo, a razão de nossa existência é a relação dos homens com Deus, e a vida eterna. Por isso, a sadia doutrina é o instrumento para chegar à plena comunhão com Deus, a vida eterna com Deus e os próximos. O modelo de organização da Cúria Romana não pode ser como o das grandes organizações internacionais ou dos Estados. São organizações feitas por homens. A Igreja é uma criatura de Deus, que existe com elementos divinos e humanos, de acordo com a analogia da união apostólica. A Igreja é uma realidade divina. Como consequência, sua forma de organização é diferente das formas de organização do resto de associações meramente humanas. Por isso, a ONU não pode ser um exemplo para a Cúria. Nem uma empresa. As regras do mercado ou da comunicação moderna (imprensa, mass media) não podem ser as regras nem os princípios da forma de atuar da Igreja. A reforma da Igreja sempre foi “em Jesus Cristo”, através de Jesus Cristo. Temos que adentrar mais em Jesus Cristo, que é a cabeça da Igreja.
Deixarão o Papa fazer essa reforma espiritual e organizativa da Cúria?
Sim, sim... claro. Não acredito que haja resistências para uma reforma espiritual. Resistências existem em todos os homens por causa do pecado. Todos nós somos um pouco “frouxos”, queremos ter uma vida cômoda e resistimos em entregar nossa vida como um sacrifício. Todos nós necessitamos de uma conversão cotidiana. Não é certo o que alguns escrevem. Não é verdade que alguns se oponham, com uma oposição organizada contra o Papa. Isso seria um escândalo.
Você tem medo de que possa ocorrer algo com o Papa?
Essas são especulações. Não acredito que ninguém pense em atacar o Papa. Embora também possa ocorrer. O Diabo sempre tenta atacar todos nós. O atentado contra João Paulo II existiu, foi um atentado diabolicamente realizado pelo espírito que nega o amor. Contudo, não podemos pensar como homens inteligentes nessas especulações, nesses romances, dos quais não quero fazer propaganda.
Há alguns dias, Hans Küng pediu o suicídio assistido, caso se agrave seu Parkinson. O que você pensa sobre suas declarações?
É muito lamentável. Ele é teólogo, deve saber que Deus é o dono de nossa vida, e que o suicídio não é uma solução legal ou ética responsável. Espero que ninguém siga o exemplo de Hans Küng nisso que disse. É muito triste para mim que um teólogo que acredita em Deus criador se explique desta maneira. Está realizando a negação da graça. Nossa vida está nas mãos de Deus.
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“A Teologia da Libertação sadia nunca foi condenada”. Entrevista com o cardeal Müller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU