30 Julho 2011
Nos últimos tempos, um ciclo de inquietação sobre a Alemanha brotou em complexas revistas de relações exteriores. As palavras vazias da Alemanha sobre o auxílio às economias da zona euro em apuros, sua abstenção em uma votação no Conselho de Segurança sobre a Líbia e um acordo de 2,5 bilhões de dólares para vender tanques de controle de multidões para a Arábia Saudita, apesar da repulsa generalizada diante das imagens de tanques árabes esmagando os protestos no Bahrein, dispararam todo o tipo de alarmes.
A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 27-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No fundo, o medo é que, depois de meio século de andar em conjunto com outras potências ocidentais, a Alemanha possa estar se voltando à sua forma histórica – colocando seus próprios interesses estratégicos e comerciais em primeiro lugar, embora desestabilizando o resto do mundo.
Pelo que se vê, não é apenas a instituição das relações exteriores que está se preocupando.
O catolicismo também abriga um medo arraigado do excepcionalismo alemão, enraizado não nas memórias das duas guerras do século XX, mas sim na Reforma Protestante. Há muito tempo existe uma sensação de que o catolicismo de língua alemã é suscetível ao que o falecido teólogo suíço Hans Urs von Balthasar chamou de "complexo antirromano", ou seja, grosso modo, um instinto a se rebelar.
Expressões desse instinto podem ser encontradas em uma vasta área da Alemanha, da Áustria e da Suíça, mas em nenhum outro lugar ele tem sido mais manifesto e público nas últimas décadas do que na Áustria.
A última erupção foi no final de junho, quando mais de 250 padres austríacos, que representam 15% do clero diocesano do país, publicaram um Apelo à Desobediência público. O texto pedia o fim do celibato clerical e a ordenação de mulheres como sacerdotes. Liderado por um ex-vigário geral da arquidiocese de Viena, o grupo também anunciou a intenção de desafiar a lei da Igreja em várias áreas, incluindo a distribuição da Comunhão àqueles que se divorciaram e se casaram novamente e a permissão de que as mulheres façam homilias na missa.
A iniciativa se baseia em uma pesquisa com os padres austríacos no ano passado, que constatou que 80% são favoráveis ao fim do celibato, e 51% apoiam as presbíteras. Ela também reflete o crescente descontentamento popular. De acordo com dados do governo, cerca de 87 mil católicos austríacos formalmente deixaram a Igreja no ano passado, um aumento de 64% sobre os 53 mil que o fizeram em 2009.
Contraposição de forças
Duas forças recentes moldaram o clima austríaco: a crise dos abusos sexuais e um choque surpreendentemente nítido entre um instinto progressista e as perspectivas dos papas João Paulo II e Bento XVI.
Em 1995, o cardeal Hans Hermann Groër, de Viena, foi forçado a renunciar na sequência de denúncias de que ele havia molestado de monges noviços quando ele era abade beneditino na década de 1970. Percepções de que a Igreja demorou para responder desencadearam um poderoso movimento de reforma. Assim surgiu uma campanha nacional chamada Wir sind Kirche, ou "Nós somos Igreja", que coletou 750 mil assinaturas de apoio na Áustria e mais de 2 milhões na Alemanha.
A crise explodiu novamente em 2004, quando mais de 40 mil imagens pornográficas foram descobertas em computadores do seminário da diocese de Sankt Pölten, na Áustria, incluindo fotos sexualmente comprometedoras dos seminaristas e dos funcionários. O truculento bispo de Sankt Pölten, Kurt Krenn, um dos defensores mais explícitos de Groër e um duro crítico do Wir sind Kirche, foi forçado a renunciar.
Pouco tempo depois, dois clérigos austríacos formaram uma Iniciativa dos Párocos, para protestar contra o que eles chamaram de "espiral do silêncio" sobre as reformas necessárias. Esse grupo é a força motriz por trás do recente Apelo à Desobediência.
O que aumenta essa fermentação é o fato de a Áustria ser um campo de batalha principal para pontos de vista concorrentes do Concílio Vaticano II (1962-1965).
Por quase 30 anos, de 1956 a 1985, a força dominante na vida católica austríaca foi o falecido cardeal Franz König, um dos arquitetos do Vaticano II e um herói da ala progressista da Igreja.
Embora König tenha ajudado a planejar a eleição de João Paulo II em 1978, ele estava fora de sintonia com o tom fortemente evangélico do papado de João Paulo II – uma dissonância simbolizada pela escolha do muito mais conservador Groër para substituir König em 1985 e, uma década depois, pela transição para o cardeal Christoph Schönborn, um protegido de Bento.
Schönborn ainda não comentou o apelo à desobediência, embora o vice-presidente da Conferência dos Bispos da Áustria disse que o documento "ameaça o caráter da Igreja global" e "revoga unilateralmente as obrigações comuns" do sacerdócio. Supostamente, Schönborn está preparando uma carta ao clero da arquidiocese de Viena para abordar as queixas dos padres.
Complexo antirromano
O drama austríaco impressiona por ser um testemunho da vigência e da resistência do "complexo antirromano" no reino teutônico.
Quase três décadas de liderança de João Paulo II, a eleição do primeiro papa alemão em cinco séculos e repetidos ciclos de energia para a reforma que nunca vão a lugar algum: tudo isso fracassou para sufocá-lo. Ele tem combustível suficiente no tanque para mobilizar uma parcela significativa dos padres e dos leigos/as, para galvanizar a atenção da mídia e para forçar o oficialismo romano a prestar atenção.
Essa resistência também pode estar relacionada com uma outra característica única da paisagem de língua alemã: O sistema de "impostos da Igreja", em que o clero e os/as leigos/as que trabalham para a Igreja muitas vezes obtêm salários do Estado e desfrutam algum isolamento perante a supervisão direta dos bispos.
Alemães afins aplaudiram a insurreição austríaca, enquanto a Alemanha luta para se recuperar da sua própria crise abuso sexual. A oposição leal está se preparando para fazer ouvir a sua voz durante a viagem de Bento a Berlim, Erfurt e Freiburg, entre os dias 22 e 25 de setembro, sua terceira volta para casa, mas a primeira desde a eclosão dos escândalos dos abusos em 2010.
Seria errôneo dizer que o catolicismo alemão está dominado por uma vanguarda revolucionária – a melhor lembrança disso é o próprio Bento.
No entanto, por razões antigas e recentes, a combustibilidade do catolicismo de língua alemã o torna um sinal único de contradição na Igreja global, uma bête noire [besta negra] para alguns e um farol de esperança para outros.
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Complexo antirromano? O instinto alemão a se rebelar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU