05 Mai 2020
Desde 17 de março, Edgar Morin e o socióloga Sabah Abouessalam vivem em condições privilegiadas, a quarentena imposta por causa da contingência sanitária da covid-19, na rua Jean-Jaques Russeau de Montpellier: “em um apartamento térreo, com um jardim - confessa em entrevista ao Le Monde -, onde posso desfrutar do sol, da chegada da primavera, bem protegido por Sabah, minha esposa, com vizinhos amigáveis que fazem nossas compras, em constante comunicação com meus entes queridos e meus amigos, convidado pela imprensa, rádio e a televisão para oferecer meu diagnóstico, coisa que posso fazer através do Skype”.
A reportagem é de Juan Manuel Gómez, publicada por Milenio, 02-05-2020. A tradução é do Cepat.
Contudo, Edgar Morin sabe que a grande maioria da população padece de maneira muito dura a crise atual: “os numerosos apartamentos pequenos não toleram a superlotação, os solitários e, acima de tudo, aqueles que não tem lar são vítimas de confinamento”.
Quando o entrevistador do Le Monde lhe pergunta se, aos 98 anos, conserva o impulso vital que sempre o caracterizou, Morin responde que ainda o conserva e que o obteve no ventre de sua mãe, que, enfraquecida pela gripe espanhola, era incapaz de abrigar um feto com segurança, mas mesmo com esse “impulso vital” não teria conseguido avançar sozinho (“o ginecologista me esbofeteou por meia hora para me arrancar o primeiro choro”, confessa). Consegui sobreviver, diz Edgar Morin, graças à ajuda de outras pessoas, e essa consciência da coletividade, da construção da humanidade, que é a grande lição de crises tremendas como a que vivemos atualmente, é um dos grandes legados do seu pensamento.
No contexto de nossa civilização, de onde vem e até onde chegará a crise total que desencadeou a contingência sanitária da covid-19? Por acaso, destruirá o mundo tal como o conhecemos ou passará despercebida, sem ter nos ensinado nada, e a lembraremos como uma anedota, como o dia em que nosso medo da iminência da morte despertou nossos instintos? Edgar Morin, que aos 98 anos continua refletindo sobre a relevância da globalidade, da transdisciplinaridade, da ideologia e dos pequenos prazeres de nossa vida cotidiana, fez um diagnóstico que vale a pena levar em consideração:
“É uma tragédia que o pensamento fragmentário e reducionista reja de maneira suprema em nossa civilização e prevaleça nas decisões em questões políticas e econômicas. [...] Na minha opinião, as deficiências no modo de pensar, aliadas à hegemonia inquestionável de uma sede desenfreada de lucro, são responsáveis por inúmeros desastres humanos, incluindo os que ocorreram a partir de fevereiro de 2020”.
Na formidável entrevista publicada no suplemento Idées do Le Monde (20 de abril), Nicolas Truong pergunta a Morin se a crise de saúde que estamos enfrentando acentua a complexidade do nosso mundo. O autor do clássico Introdução ao pensamento complexo (1990) e ex-militante da resistência francesa responde:
“Os conhecimentos se multiplicam de uma maneira exponencial, de golpe, transbordam nossa capacidade de assimilação e, sobretudo, lançam o desafio da complexidade: como confrontar, selecionar, organizar esses conhecimentos de maneira adequada, no momento de conectá-los e de integrar a incerteza. Para mim, isso revela mais uma vez a carência do modo de conhecer que nos foi encucado, que nos faz fragmentar o que é indivisível e reduzir a um único elemento o que compõe uma unidade integral, que é ao mesmo tempo diversa. Com efeito, a revelação fulminante dos transtornos a que estamos sujeitos é que tudo o que parecia separado está unido, porque uma catástrofe sanitária se torna uma catástrofe em cadeia que afeta a totalidade de tudo o que é humano”.
Efetivamente, nosso ambiente está forjado por contrastes, que são agravados e transmitidos ao vivo pela velocidade da tecnologia contemporânea, impossíveis de reduzir a premissas simples, unilaterais e lapidárias. Em uma coluna recente (27 de abril) do jornal El Universal, Juan Ramón de la Fuente, reitor da UNAM e que atualmente serve como embaixador do México na ONU, mencionava que nem todos nós, no México, vivemos da mesma maneira o confinamento imposto pela covid-19:
“A quarentena se torna mais suportável, apesar de tudo, se você começar deixando claro que existem pessoas que não podem ficar em casa porque não têm casa. Que existem muitos mais que não podem trabalhar em casa porque seu trabalho é necessariamente presencial e, além disso, se não trabalham hoje, não comem amanhã. A pandemia deixa nua nossa realidade. A quarentena nesse contexto é mais um privilégio do que uma imposição”.
Nesse sentido, Edgar Morin, cuja reflexão em torno ao fato de que a dificuldade de nos colocarmos em acordo, na atualidade, beira a insensatez, aponta na entrevista ao Le Monde as implicações de se viver em uma era global:
“Espero que a excepcional e mortífera epidemia que estamos vivendo deixe em nós a consciência não apenas de que estamos sendo arrastados ao interior da incrível aventura da humanidade, mas que também vivemos em um mundo ao mesmo tempo incerto e trágico. A convicção de que a livre concorrência e o crescimento econômico são panaceias sociais atenua a noção trágica da história humana que agora se viu agravada. […] A epidemia mundial do vírus desencadeou e, para nós, agravou terrivelmente uma crise sanitária que provocou um confinamento asfixiante da economia, transformando um modo de vida extrovertido, voltado para o exterior, em um introvertido, para o interior da casa, e colocou a globalização em uma crise violenta. A globalização havia criado interdependência, mas sem que esta estivesse acompanhada de solidariedade”.
Na pergunta expressa do jornal Le Monde, Edgar Morin descreve como imagina o “mundo de amanhã”. E o que mais se destaca em sua perspectiva é a dúvida, o questionamento crítico do que agora pensamos como “o mundo global” e que nos conduz inercialmente a um destino catastrófico. As certezas da poderosa civilização contemporânea parecem desmoronar diante de uma crise previsível, causada por um organismo microscópico:
“Em primeiro lugar, o que restará em nós, cidadãos e o que permanecerá nas autoridades públicas a partir da experiência do confinamento? Apenas uma parte? Tudo será esquecido, minimizado ou folclorizado? [...]”
“A saída do confinamento será o fim da megacrise ou o seu agravamento? Boom ou depressão? Enorme crise econômica? Crise alimentar mundial? Recuperação da globalização ou desdobramento da autonomia nacionalista? […]”
“Após a sacudida, o neoliberalismo retomará suas ordens de compra? As grandes nações procurarão se impor mais do que no passado? Os conflitos armados, mais ou menos atenuados pela crise, se intensificarão? Será promovido um fundo internacional de cooperação? Haverá progresso político, econômico e social, como após a Segunda Guerra Mundial? [...]”
Não é possível saber se, após o confinamento, as condutas e ideias inovadoras continuarão com seu ímpeto, revolucionarão a política e a economia ou a ordem se reestabelecerá depois da sacudida. Podemos ter o grande temor da regressão generalizada que já estava ocorrendo durante os primeiros vinte anos deste século (crise da democracia, triunfo da corrupção e da demagogia, regimes neoautoritários, iniciativas nacionalistas, xenofóbicas e racistas). Todas essas regressões (e, na melhor das hipóteses, a estagnação) são prováveis, desde que não apareça o novo caminho político-ecológico-econômico-social guiado por um humanismo regenerado.
Esse novo caminho multiplicaria as verdadeiras reformas que não se reduzem a reduções orçamentárias, mas que são reformas da civilização, da sociedade, ligadas às reformas da vida”.
Após testemunhar como esse homem vital protagonizou os principais momentos da história francesa nos últimos 80 anos e viu com muita reticência como ganhava terreno a hegemonia do mundo global que agora prevalece, não há dúvida de que a única coisa que uma crise sanitária tão devastadora como a que vivemos pode fazer conosco, habitantes do novo século, é nos fortalecer. E é precisamente por isso, porque nunca prestamos atenção ao seu crescimento desorbitado, que não soubemos prever seu colapso:
“Eu pertencia - conclui Morin em sua entrevista ao Le Monde - àquela minoria que previu a catástrofe em cadeia provocada pelo descontrole da globalização tecnoeconômica, incluindo as degradações da biosfera e da sociedade. Mas nunca previ a catástrofe viral. No entanto, houve um profeta dessa catástrofe: Bill Gates, em uma conferência de abril de 2015, anunciou que o perigo imediato da humanidade não era nuclear, mas sanitário. Ele viu na epidemia de ebola, que por sorte pôde ser dominada rapidamente, o anúncio de um possível vírus cujo alto poder de expansão colocaria o mundo em risco, exibindo as medidas de prevenção necessárias, incluindo equipamento hospitalar adequado. Mas, apesar desse anúncio público, nenhuma precaução foi tomada nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar. Porque o conforto intelectual e o hábito veem com horror as mensagens desagradáveis”.
O otimismo do sociólogo, filósofo e rebelde francês Edgar Morin (Paris, 1921), talvez se deva à sua principal premissa: “Toda crise me estimula e se é enorme, me estimula enormemente”.
Foi comunista, ex-comunista, membro da Resistência Francesa, durante a ocupação nazista, tenente do exército francês após a guerra, cineasta surrealista, fundador e diretor da revista Argumentos, entre muitas outras atividades que exigem a mesma garra de quando, em sua juventude, apaixonou-se pelo ciclismo.
Foi nomeado Doutor Honoris Causa de trinta e quatro universidades (quase o mesmo número de livros que escreveu). No México, um instituto de ensino superior recebe o seu nome. Várias de suas teorias causaram grande controvérsia. Por exemplo, sua ideia de transdisciplinaridade:
“A ciência”, reflete Morin, “é devastada pela hiperespecialização, que é o isolamento do conhecimento especializado e não a sua intercomunicação. A ciência vive da comunicação, qualquer censura a bloqueia. Portanto, deveríamos prestar atenção à grandeza da ciência contemporânea e também às suas fraquezas”, ou sua crítica à biogenética: “A loucura eufórica do transumanismo leva ao paroxismo o mito da necessidade histórica de progresso e dominação pelo homem, não apenas da natureza, mas também de seu destino, prevendo que o homem obterá a imortalidade e controlará tudo através da inteligência artificial”.
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“Vivemos em um mundo incerto e trágico”, afirma Edgar Morin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU