11 Janeiro 2022
Diante da dura realidade que assola os brasileiros, o líder indígena recomenda: “Temos de ter coragem de viver radicalmente, ser radicalmente vivos”.
A reportagem foi publicada por Rede Brasil Atual, 09-01-2022.
Uma das principais lideranças do movimento indígena brasileiro, Ailton Krenak faz parte do povo mais sofrido e perseguido especialmente pela gestão do presidente Jair Bolsonaro. Em entrevista ao programa Bom para Todos da TVT, o ambientalista, filósofo, poeta e escritor disse, diante do ano novo, considerar inusitado fazer previsão em qualquer tempo. “Para 2022 queríamos que fosse um ano decisivo para a gente virar a história recente do Brasil que está em marcha ré”, afirmou. “Estamos vivendo uma experiência de desmantelamento das estruturas da vida social brasileira que começa de dentro do próprio aparato do Estado”, diz. Portanto, ele prossegue, isso deveria “nos ajudar a criar política de cooperação, solidariedade entre as comunidades distintas que nos constituímos”.
A esperança na virada, no entanto, vem acompanhada de um importante alerta diante da pandemia de covid-19 e da gripe que assola todo o Brasil. “Lembrar que a virulência dessa onda que está nos alcançando agora ocupa os profissionais de saúde, os leitos nos hospitais e impede atendimentos ordinários que deveriam estar sendo proporcionados”, disse, falando sobre as milhares de pessoas flageladas pelas enchentes no Brasil inteiro e que ainda poderão ser atingidas. “Enchentes que foram negligenciadas por um sujeito que voou de helicóptero sobre as áreas alagadas e depois foi andar de jet-ski em Santa Catarina”, lembrou, criticando o presidente Jair Bolsonaro.
O filósofo criticou a argumentação dos que reclamam da suspensão do Carnaval alegando razões econômicas. “Esse argumento, que parece ligado com a vida, é fajuto. Porque 600 mil pessoas morreram com a pandemia e ninguém está fazendo contabilidade disso. É um discurso hipócrita.”
Para Ailton Krenak, é preciso repor o sentido sobre o que importa na verdade quando se fala em recuperar o Brasil, reconstruir coisas. “Nós vamos querer reconstruir o quê? Parece que a gente tinha alguma coisa e perdeu. A própria ideia de que a gente tinha alguma coisa a recuperar precisa ser questionada.”
E cita o “novo normal” tão falado para o pós-pandemia. “O normal que tinha estava bom?”, questiona. “Temos de enfrentar essa realidade que é totalmente estranha, que está diante de nós. Não existe esse papo de normal.”
O escritor indígena recomenda coragem de construir, a partir de agora, o que se pode compartilhar uns com os outros como realidade. “Não ficar com essa maluquice de querer produzir novo normal, é bobagem. Novo normal é um discurso muito próximo do negacionismo porque ele nega o instante que estamos vivendo e aspira a um outro lugar que não é esse que temos agora (…) Com enchente, com influenza, tsunami, com o que for: vamos lidar com a realidade. A realidade não é favorável. Então, a gente tem de ter coragem de viver radicalmente, de ser radicalmente vivo. De não ficar aceitando a chantagem de um amanhã fajuto que estão nos prometendo.”
Krenak falou também sobre a maneira como o tempo se derrama sobre as pessoas. “O tempo líquido, em que as pessoas têm pouca capacidade de discernimento, de individualidade, de pensar a partir de si”, explicou. “Está todo mundo o tempo inteiro sendo acionado por necessidades. Algumas dessas necessidades são reais, ligadas com a sobrevivência, sobre a segurança do coletivo ao qual a pessoa pertence. Mas as outras demandas são produzidas por uma ideia de mercadoria, de consumo. E por uma ideia de carência mesmo que essa humanidade um pouco perdida de si, perde também o discernimento sobre o que importa, o que eu preciso.”
O líder indígena faz uma comparação. “Os povos não ocidentais ainda guardam uma percepção sobre o tempo como uma espiral. Algo que está sempre em movimento, se deslocando de um lugar de estabilidade e nos pondo em outro momento.”
A ideia de que temos segurança, estabilidade, seja política, ambiental, esse conforto é uma fixação das pessoas, segundo o líder indígena. “O capitalismo promove esse tipo de ideologia, promete esse tipo de recompensa. Você participa dessa dança macabra do capitalismo e recebe esse tipo de recompensa: restabelecer o que perdeu ontem, ter de novo.”
O filósofo e escritor critica ainda as ideias de modelo que comparam o Brasil, um país da América do Sul a outras realidades. “Num contexto em que temos de ter consciência do que nós somos aqui. Senão a gente fica pirando, achando que estamos em outro lugar do mundo, em Nova York, comparando o que eles têm, o que não temos. Toda essa ideia colonizada de mundo que acha que tem um modelo de gente para viver no mundo. Ou que tem um estilo de vida que é bom e outro que é ruim. Acho que a principal produção desse tipo de pensamento é mobilizada pelo colonialismo.”
Para ele, o racismo estrutural é um aprofundamento dessa crítica. “Alguma coisa que atravessa vários corpos ao mesmo tempo. Alguém que sofre preconceito porque é preto, é pobre, é gay, nordestino, comunista. Ou qualquer outra besteira que é atribuída a um sujeito, para que ele sofra algum tipo de dano”, explica. “Quando estamos nesse amplo contexto de valores, de julgamentos, de comparação, de estabelecer modelos de vida, estamos sujeitos a nos confundir acerca do que nós queremos para nós mesmos”, alerta, falando sobre sua preocupação com os fascistas no Brasil. “Temos de tomar cuidado para que esses fascistas não provocarem uma guerra civil no Brasil.”
Ailton Krenak falou ainda sobre cidades e florestas, o excesso de gente em áreas urbanas, a zona de conforto. “Tem milhões de pessoas que se mantêm em prisão domiciliar voluntariamente”, compara, diante da vida que se resume entre casa e trabalho. “Experimenta sair de onde você está, se afaste uns 2 mil quilômetros para ver se quer voltar”, provocou. “Somos capazes de nos infligir muito dano achando que é confortável.”
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Para Ailton Krenak, falar em ‘novo normal’ é um discurso próximo do negacionismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU