16 Março 2021
A pandemia de coronavírus significou mudanças radicais em nossas vidas, e algumas delas vieram para ficar. O psicanalista e psicólogo especialista em psicologia clínica José Ramón Ubieto analisa, no ensaio El Mundo Pos-Covid: entre la presencia y lo virtual, os principais traços do mundo para o qual transitamos, enfatizando a consolidação da imagem e o virtual em todos os âmbitos de nossas vidas: trabalho, lazer, educação, saúde e sexualidade.
A entrevista é de Juan Manuel García, publicada por La Vanguardia, 15-03-2021. A tradução é do Cepat.
Como reiniciaremos nossas vidas, após a pandemia?
Esta crise sanitária representa a oportunidade perfeita para acelerar uma transformação digital que já se previa. Em um ano, transcorreu uma série de avanços que, em circunstâncias normais, levariam uma década para se afirmar. O lema da última edição do Fórum Econômico Mundial de Davos, realizado no último mês de janeiro, foi justamente O Grande Reinício. E as chaves deste reset do sistema são claras: automação, informatização e robotização geral.
Então, a nova normalidade consistirá em interagir com máquinas?
O que nos propõe é muito mais uma nova normovirtualidade, que se liga a uma lógica própria, a algorítmica, que se baseia em uma medição exaustiva de tudo o que fazemos. Viemos de um modo de funcionamento onde a presença ainda era a norma. Mas, durante este ano, observamos que tudo é suscetível a se tornar virtual. E estas experiências de realidade virtual se revelaram muito benéficas em alguns aspectos. O confinamento teve efeitos terapêuticos para muitas pessoas, que encontraram certo conforto na tessitura de evitar as relações face a face com outras. E, é claro, para muitas empresas o benefício econômico do virtual é evidente.
Que benefícios pode haver nesta renúncia voluntária às relações presenciais?
A chave está em acolher esta novidade virtual sem renunciar a nossos princípios, aquilo que nos faz singulares e não está limitado pelos algoritmos que decidem o que nos convém. Em alguns aspectos da vida é muito útil se deixar governar pelos algoritmos, como no âmbito do consumo ou da saúde eletrônica. Mas também pode complicar muito a sua vida. A questão é até que ponto estaremos dispostos a nos confiar voluntariamente e renunciar as interações corpo a corpo. E esta é uma escolha pessoal, mas também coletiva.
Em seu ensaio, prediz que no futuro as telas estarão mais presentes na vida dos pobres e a interação humana será coisa de ricos...
Já há indícios neste sentido. O digital está se tornando um substituto do low cost em âmbitos como a saúde e a educação. Nos Estados Unidos, há empresas que implementam, através de tablets com câmeras modificadas, um sistema de avatares de animais que interagem com pessoas idosas que vivem sozinhas, muitas delas com baixos ingressos. É um substituto ao serviço de atendimento domiciliar. E o governador de Nova York, Andrew M. Cuomo, em um evento organizado pela Fundação de Bill e Melinda Gates, em maio do ano passado, questionou o motivo de ainda existir edifícios escolares, sendo possível generalizar a educação online.
Alguns já falam em “educação off-line”, em vez de educação tradicional. Os gerentes destes setores estão abraçando estas fórmulas porque são mais rentáveis. Argumentam que a presença não é necessária. E se a isto somarmos o medo ao contato que surgirá da pandemia, temos um coquetel explosivo. Podemos nos deparar com que a oferta pública de saúde ou educação recorra cada vez com maior frequência ao virtual para baratear custos e que a presença seja um luxo só ao alcance de uns poucos que possam pagá-la.
E neste futuro pós-covid, marcado pelos algoritmos, como iremos retomar nossos laços sociais e os outros fatores “reais” de nossas vidas: os medos, as angústias, o luto, etc.?
Convém recuperar tudo aquilo que nos faz singulares em relação às máquinas. Em primeiro lugar, a conversa face a face como geradora do vínculo social. Não uma conversa online – muitas vezes, no anonimato – que nos permite escapar de nossa responsabilidade sobre o que dizemos. Como corpos falantes, nós, seres humanos, precisamos de algo mais do que palavras e imagens retransmitidas para nos comunicar. Na conversa real e física, existe lugar para tudo aquilo que é inútil e improdutivo, cuja única razão de ser é a busca de apoio do outro para superar as situações de incerteza.
Mas qual é a serventia deste tipo de conversa fútil?
Muitas vezes, tudo aquilo que resulta improdutivo na perspectiva econômica é o mais produtivo do ponto de vista humano. O mundo digital, ou a sociedade algorítmica do império GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft), se rege pela lógica capitalista do TODO. Você tem que estar conectado o tempo todo. Em um chat do WhatsApp, recomendam um link das redes sociais, que por sua vez leva a uma página de informação, onde surge um anúncio que dirige a uma página web para compra de produtos. E é assim o tempo todo. Não há lugar para o vazio, para o não fazer nada. Buscam que não haja intervalos na navegação pela internet, porque no momento em que você se desconecta, deixa de produzir dados. Ao contrário, a interação presencial está aberta a qualquer antídoto contra a rigidez da conversa monitorada.
Quais são esses antídotos?
Coisas simples. A surpresa. O humor. A conversa fiada. Há muitos estudos que demonstram que o burnout no trabalho, essa síndrome do empregado exaurido pelo desgaste profissional ou por um estado de esgotamento mental, emocional e inclusive físico, afeta muito mais aqueles que teletrabalham. Algo semelhante acontece com outros problemas de saúde como a obesidade.
Aqueles que trabalham de forma presencial têm a possibilidade de fazer pausas e estabelecer conversas corpo a corpo com os companheiros para coisas tão banais como criticar o chefe, fazer uma brincadeira sobre a carga de trabalho, ter uma conversa absurda sobre aspectos cotidianos. Tudo isso que nos parece insubstancial ou inconsequente, na realidade, ajuda a nos sentirmos acompanhados e a superar nossas angústias.
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“No mundo pós-covid, o contato presencial será um luxo só ao alcance de ricos”. Entrevista com José Ramón Ubieto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU