15 Dezembro 2020
"O corpo social, do qual somos uma célula, interfere em nós e o que fazemos emana na sociedade. Portanto, a sociedade é fruto da manifestação da relação com as pulsões: agressiva, afetiva e sexual. Faz-se necessário cuidados específicos a cada fase da vida humana. Fortalecer as instituições no sentido de dar as condições necessárias para a humanização", escreve Nilda Maria Ribeiro, psicóloga que trabalha com Biopsicoterapia - ‘Psicoterapia Relacional Existencial Humanista’, desde a década de 90, na clínica e em instituições diversas. Entre as suas publicações, destacamos Comunicação emocional entre pais e filhos (2010), Descobrindo a infância... (2014), A dinâmica e a evolução da vida do casal (2016) e O resgate da condição humana (2019).
Quero contribuir com os debates a respeito das implicações das tecnologias informatizadas e as atuações da psicologia. Para isso, afirmo como princípio dessa dissertação que o objeto de trabalho e estudo da psicologia é a vida, a qual se manifesta pelas pulsões e se constituirá como Eu corporal.
As reflexões são fundamentais para desenvolvermos formas de proteção e resistência, desde as políticas até a técnica, seja na programação e/ou no funcionamento das ferramentas e das plataformas que suportam as redes sociais. Na maioria das vezes, as análises psicológicas utilizam a perspectiva da tecnologia, ou seja, a partir dos dados acumulados de cada pessoa, processos de sujeição para o consumo e outros fatores. Concordamos que o funcionamento das redes e os algoritmos são organizados por especialistas das diversas áreas, inclusive na psicologia e, portanto, nós podemos conhecer e compreender para nos defendermos.
Proponho o foco na dinâmica psíquica do usuário no uso da tecnologia e na atuação em suas redes de relações. Isto, não no sentido particular dos dados pessoais, mas considero que há necessidades do próprio desenvolvimento humano, portanto, comum a todas as pessoas, que são utilizadas para a constituição e funcionamento das redes virtuais.
Tais necessidades nascem das pulsões – afetiva, agressiva e sexual - que se organizam nas relações íntimas e afetivas, as consideramos leis orgânicas da constituição humana. Estas leis aparecem e são contempladas pela sociedade humana de diferentes formas, em diferentes lugares e tempos históricos. Entendendo que há evoluções das relações que as sociedades estabelecem com as pulsões. Que significa que em diferentes civilizações, conforme seu percurso histórico favorecem ou não, a expressão, estruturação e identificação com cada uma das pulsões; isso conforme organiza a vida social para estruturar, direcionar, reprimir ou ignorar a existência dessas energias.
Atualmente podemos compreender que essas necessidades, quando suficientemente atendidas, permitirão a encarnação do Ser, a estruturação psíquica e a constituição de do senso de ser si mesmo (como pessoa, sexuada e social). Na medida em que ocorre a satisfação das necessidades advindas das pulsões, estas serão integradas - mais ou menos conscientes - e quando insatisfeitas a pessoa ficará delas refém.
Coloco como questões centrais para adentrar nessas dinâmicas:
Nessa concepção o ser humano é experiencial, relacional e corporal. Qualquer saída não poderá ignorar essas condições orgânicas, por onde toda experiência busca um sentido. Trago aqui algumas das hipóteses que defendo no livro ‘O resgate da condição humana [1]’.
1. As condições das relações concretas definem a relação com a realidade virtual.
2. As necessidades filiais não atendidas são projetadas na busca da satisfação, inclusive nas relações virtuais.
3. Nas relações virtuais há um encontro imaginário das satisfações pulsionais.
4. As relações virtuais aprofundam as carências afetivas e as dificuldades no cuidado com a própria vida, na medida em que estas são utilizadas para manter reféns dos mecanismos criados para atrair e prender a atenção do usuário.
Deter-me-ei na forma em que as motivações afetivas e simbólicas “fisgam” a pessoa, exatamente onde está refém de uma necessidade afetiva não atendida suficientemente.
O corpo para se tornar plenamente humano depende de ser adotado afetiva e efetivamente, assim o corpo filial é o que apresenta suas necessidades e é atendido na relação com os adultos que o adotaram. Este constrói uma relação afetiva que atenda suas necessidades relacionais como: estar em contato, ser visto, incluído, envolvido, reconhecido, protegido, amparado, com poder de interferir no outro, entre outras.
Nesta condição filial, trazemos algo que não foi plenamente vivido e humanizado, o que nos faz seguir na busca de atender e realizar-se enquanto filho/a para constituir-se pessoa, sexuada e social. Faz-se necessário dar a conhecer na dinâmica pessoal, as psicodinâmicas, através da auto-observação e das informações da psicologia.
É perceptível no desenvolvimento das tecnologias e das redes virtuais a utilização dessa realidade afetiva e simbólica, das necessidades relacionais pertinentes ao próprio processo de maturação do ser humano. Ou seja, a presença da intenção de promover sentimentos e sensações, que parecem satisfazer ao sugerir uma saciedade que não se confirma de fato. Descrevo alguns destas sensações ilusórias [2]:
• Sentir-se numa relação, isto sem precisar comprometer-se com suas dificuldades e vazios;
• Sentir pertencer e participar, o que acalma o temor de ficar de fora e os sentimentos de abandono e exclusão;
• Sentir-se com autoridade e competências, para isso esforça-se para chegar ao que é desafiado compensando impotências do cotidiano, especialmente relacionais;
• Quando não sabe o que fazer com suas emoções, desconfortos e vazios, mantém a atenção fora de si, abstraindo-se das sensações;
• Por desconhecer o cuidado e o conforto, não ter recursos de como atender e cuidar estar conectado permite ignorar o desconforto e sensações corporais;
• Para sentir-se potente, por exemplo, ao passar as fases dos jogos, o que lhe ajuda a suportar a impotência frente à realização de sua vida, em cuidar-se e relacionar;
• Evita a angústia de não saber escolher nem decidir, deixando-se conduzir e orientar as consignas, obedecendo às imposições para chegar ao que se propõe; terá com isso sua vontade mais enfraquecida;
• Sentir-se preenchido, por não deixar tempos vazios e não fazer pausas, sem precisar fazer escolhas;
• Sentir-se ativo e operante na rede compensa as dificuldades de superar a inércia e realizar projetos concretos na realidade cotidiana.
• Ter a sensação de preenchimento, já que a rapidez imposta pela forma organizada nas redes não demanda pensar nem refletir para decidir;
• Evitar a solidão, mantendo-se na ilusão de poder interagir, de ter poder sobre os outros e de participar de uma suposta rede de amigos, através das plataformas e de jogos que o deixa ainda mais inexperiente para comunicar-se nas relações concretas.
Essas dinâmicas das sensações podem ser identificadas no processo de filiação: sentir-se dentro de uma relação, ser incluído, amparado, interferir no outro para ter sua fragilidade cuidada pelo adulto, existir na vida de mais alguém e tantas outras;
Podem ser conhecidas a partir das seguintes perguntas: - o que se evita e o que se busca a cada interação nas redes? - Como essa sensação é ou não é vivenciada no cotidiano? - Consegue identificar qual emoção mobiliza para evitar ou buscar essa experiência (sensação, satisfação) também nas relações pessoais?
Essas e outras questões levarão à observação, desta à constatação da própria relação com o corpo físico, fisiológico, emocional - afetivo, agressivo e sexuado. Direciona a atenção para suas relações.
Passar à construção da relação com sua história pessoal e filial, revela a relação que estabeleceu com suas potencias de vida, no que desistiu ou encontrou vias nas quais não se pode estar por inteiro.
Podem ser cuidadas para fazer o resgate de sua própria condição humana, nos processos de filiação e afirmação pessoal, sexual e social. Através de relações simbólicas resgatar-se naquilo em que permaneceu refém.
Para pensar a prática a partir dessa concepção orgânica do ser humano, proponho ampliar o conhecimento das dinâmicas psíquicas e relacionais, reafirmar as leis que regem a estruturação do aparelho psíquico e seu funcionamento, como observar as práticas pessoais e sociais.
1. Na abordagem pessoal
Construir a consciência das condições humanas, das motivações e o que tange ao usuário, inclusive onde a psicologia pode atuar, neste sentido compreendido levar a atenção para a experiência: perceber, identificar, conhecer-se, desenvolver meios de cuidar para capacitar a pessoa a atender-se até criar opções e, então escolher; assim pensar o caminho para resgatar e desenvolver a liberdade e a responsabilidade que permitirão posições de resistência e de subversão. Ou seja, o enfrentamento ao:
• Promover formação e informação sobre a condição humana, pessoal e social.
• Constituir meios de tornar consciente os registros de “todas as relações já vividas”, naquilo que foi bem, mais ou menos ou não atendidas. Lidar com aspectos objetivos e simbólicos das relações.
• O reconhecimento de vazio da não experimentação relacional corporal, no que é imprescindível ao processo de humanização, em relação às três forças pulsionais: agressividade, afetividade e sexualidade.
• A identificação e compreensão da ‘desistência existencial’ para proteger sua vida em relações adversas à sua realidade humana. Que deixa a pessoa refém por todos os vazios relacionais e experienciais que advém dessa desistência.
• O resgate da relação consigo no sentir, no pensar e no agir, assim como da condição humana pulsional, experiencial e relacional.
Compreendendo que o real adversário e o mais fácil de enfrentarmos, para resistir às manipulações de um interlocutor desconhecido e onipresente, é o próprio desconhecimento de si. Poderemos perceber que o ser capturado, sequestrado, refém das redes virtuais já estava refém de si mesmo, de suas fragilidades psíquicas, vazios relacionais, falta de recursos afetivos, em geral inconscientes.
É possível desenvolver os recursos para se ter opção e construir a possibilidade de escolhas e não render às seduções e promessas apresentadas.
2. Na abordagem social
O corpo social, do qual somos uma célula, interfere em nós e o que fazemos emana na sociedade. Portanto, a sociedade é fruto da manifestação da relação com as pulsões: agressiva, afetiva e sexual. Faz-se necessário cuidados específicos a cada fase da vida humana. Fortalecer as instituições no sentido de dar as condições necessárias para a humanização.
Por exemplo a violência é a expressão da agressividade de forma desestruturada, não organizada nem humanizada. Neste sentido a proposta de identificar, conhecer e cuidar é também para o social; ou seja um processo similar ao pessoal se faz necessário.
No Brasil, especialmente para nós, é preciso o resgate histórico de todas relações e ações de genocídio, tortura, opressão, escravização e os diferentes olhares: dos europeus que vem por objetivos empresariais, os africanos raptados e escravizados e os indígenas violados e massacrados, estes com objetivos de sobrevivência e defesa de sua integridade física e identidade cultural, espiritual. Nós brasileiros, para constituirmos uma nação, precisamos resgatar e renovar esse olhar, fazendo o reconhecimento, reparação e redirecionamento do olhar para este país. O que podemos fazer por meio de dinâmicas de grupo, constelação sistêmica, da mudança na legislação entre outros.
• Recontar e ressignificar a história da constituição pela violência, superar a condição de sobreviventes e da visão empresarial para a condição de pertencentes e filhos da nação.
• Reconstituir as relações que reprimem a agressividade, a sexualidade e a afetividade. Alterar os espaços dados ao corpo, debloquear a criatividade corporal, a comunicação corporal e a relação com o próprio corpo emocional.
• Refletir sobre a sociedade que rege a vida pessoal familiar, pela maneira que se estrutura o tempo e o espaço, organização da vida centrada no trabalho e não no viver.
• Desenvolver formas para favorecer o resgate da condição humana, aprimorar as relações íntimas para se ter pessoas de tal forma humanizadas que façam questão de estabelecer uma nova estrutura e organização social. Que permitam as relações acontecerem como é necessário e ditado pelas leis de funcionamento psíquico humana: diminuir o sofrimento e fortalecer o bem estar, o bem viver e o bem conviver.
• Projetos para aprimorar a maternagem e a paternagem, tornando essas funções mais conhecidas. E garantir, socialmente, condições, lugar e tempo necessários para bem exercê-las.
• Reorganizar a concepção e uso do tempo e do espaço, mecanismos que permitam espaços de relações que humanizam os corpos no trabalho, na política, na educação, na saúde e outros, de forma concreta e cotidiana.
• Realizar projetos e programas de formação sobre a condição orgânica psíquica, na formação do Eu corporal, na comunicação emocional e aspectos simbólicos das relações.
• Realizar oficinas relacionais para explorar e desenvolver as capacidades individuais e grupais. Provocando interações que promovam o conhecimento desses processos.
• Incluir em todo processo as necessidades referentes à humanização, considerar essa condição humana na organização social: legislação, instituições e outros.
Em síntese é viabilizar mecanismos para que a pessoas cheguem a fase adulta. Atualmente, a tendência é manter as pessoas infantilizadas, inconscientes e irresponsáveis por estarem afetivamente mal estruturados. Adultos poderão tornar-se cuidadores, educadores, pais e mães conscientes, afetivos e efetivos, conhecendo a dinâmica interna dessas funções. Abrir caminhos para novas relações, novas pessoas e uma sociedade que inclua todas as formas evolutivas das diferentes civilizações existentes.
[1] Ribeiro, Nilda Maria - O resgate da condição humana. Editoração própria Belo Horizonte, 2019
[2] Ribeiro, Nilda Maria - O resgate da condição humana. Editoração própria Belo Horizonte, 2019
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Interações das dinâmicas psíquicas com as virtuais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU