05 Agosto 2020
O padre Júlio Lancelotti não entenderia sua vida sem a convivência com a população de rua, até o ponto de afirmar que “faltaria na minha identidade uma parte importante”. Mesmo estando dentro do grupo de risco, ele tem 71 anos, a pandemia não o impediu de se fazer presente no meio de uma população que tem aumentado exponencialmente nos últimos meses no Brasil. Antes da pandemia já tinha se incrementado em um 50 por cento.
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
Padre Júlio Lancelotti. (Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo)
No Brasil está presente “toda uma política que a gente chamaria de necrófila”, segundo o padre Lancelotti, algo denunciado pelos bispos na Carta ao Povo de Deus e apoiado por mais de 1.500 padres em uma carta que ele diz ter assinado, diante da “calamidade que nós estamos vivendo, como diz a carta, de uma economia que mata”. Diante disso, a Igreja deve mostrar “a proximidade com os que estão sofrendo, a superação de todo tipo de discriminação e preconceito, a convivência com o povo mais simples, mais pobre, a gratuidade, e o princípio misericórdia, defendido e explicitado por Jon Sobrino”.
Hoje no Brasil, “se usa da religião para dominar o povo, se usa de um discurso religioso para justificar a opressão”, enfatiza o padre Júlio Lancelotti, que vê fundamental a presença da Igreja no meio aos coletivos mais marginalizados da sociedade. Diante da situação da Amazônia, cada dia mais ameaçada, ele afirma que “o Brasil não tem futuro, nem a América Latina, nem o mundo, sem os povos da Amazônia. E a Igreja, ela também não tem futuro se ela não for servidora dos povos da Amazônia”.
Falando sobre a formação dos seminaristas, o padre Lancelotti insiste em que “não podemos continuar uma formação do clero desvinculada da vida do povo, desvinculada da missão da Igreja, desvinculada do Evangelho”. De cara ao futuro, o caminho está na Evangelii Gaudium, também no Concílio Vaticano II e nos documentos da Igreja latino-americana.
Como o senhor definiria o momento atual que o Brasil está vivendo?
Nós vivemos uma emergência sanitária sem precedentes, vivemos uma situação social bastante grave, uma situação econômica, política, também bastante grave. Nós estamos num momento que, além da emergência sanitária, o Brasil está muito doente. Nós estamos vivendo o aumento vertiginoso do desemprego, o aumento da população de rua, e toda uma política que a gente chamaria de necrófila.
Recentemente, 152 bispos brasileiros escreveram uma Carta ao Povo de Deus, que depois parece ter sido assinada por mais bispos, e foi apoiada por mais de 1.500 padres, congregações religiosas, leigos e leigas. O que essa carta representa diante da atual conjuntura?
Eu assinei também a carta de apoio dos padres, e acredito que essa carta significa um posicionamento de parte do episcopado, um posicionamento de parte da Igreja frente a essa calamidade que nós estamos vivendo, como diz a carta, de uma economia que mata.
Depois de tanto tempo trabalhando com a população de rua, o que ela representa na sua vida como padre?
Eles são filhos, irmãos, mestres, amigos, pessoas que fazem parte da minha vida, assim como os paroquianos da paróquia em que eu estou, as pessoas com quem eu convivo, eles também fazem parte da minha convivência. Eu não me entenderia sem a convivência com a população de rua, faltaria na minha identidade uma parte importante. Eles fazem parte da minha identidade, do meu caminho, do meu ministério.
Esta pandemia que estamos vivendo, o que tem representado na vida da população de rua, especialmente em São Paulo, onde o senhor está trabalhando e morando?
Há um aumento muito grande, a população de rua antes da pandemia já tinha aumentado 50 por cento em São Paulo. Aumenta em todas as cidades brasileiras, e com a pandemia, a vida deles ficou ainda muito mais difícil, porque não encontram trabalho, há um número muito grande de jovens, há um número de pessoas que estão andando, transitando pelo Brasil à procura de respostas. A população de rua é duramente atingida, teve muita dificuldade de acessar o auxílio emergencial, muitos não conseguiram.
É um grupo com muitos problemas e que representa vários segmentos da população brasileira, tem muitas pessoas que já passaram pelo sistema penitenciário, muitas pessoas que vêm de outros estados, muitas pessoas que vêm da terra, que estão desempregadas, negras, aumenta o número de mulheres. Eles são um sinal, um sintoma da necrofilia que vai matando nosso povo.
O Papa Francisco começou seu pontificado dizendo que ele gostaria de uma Igreja pobre para os pobres, instituiu o Dia Mundial dos Pobres, foi criando programas de atenção para com os pobres e a população de rua de Roma. Mesmo assim, essa postura parece ter resistências dentro da Igreja, inclusive dentro da hierarquia. Quais são as causas dessas resistências?
Uma das causas pode ser a nostalgia da Cristandade, o apego ao poder. Eu acredito também numa surdez diante dos apelos do Evangelho, porque o que o Papa Francisco pede, não é uma novidade. O que o Papa Francisco pede, uma Igreja pobre para os pobres, já foi pedido por São João XXIII, no Concílio Vaticano II, e já foi pedido pelos padres da Igreja, como São João Crisóstomo, Eusébio de Cesareia, os padres da Igreja pedem uma Igreja pobre para os pobres. São Francisco de Assis pede e vive assim.
É sempre um esforço grande para voltar às comunidades primitivas, às comunidades de Jesus de Nazaré no mundo de hoje, uma Igreja voltada para os pobres. Como lembra, e é importante isso para aqueles que ficam com nostalgia da Cristandade, o próprio Papa Bento XVI, na abertura da Conferência do Episcopado em Aparecida, diz que a opção pelos pobres é intrinsecamente ligada à cristologia católica. Então, não tem como entender o catolicismo, o cristianismo, sem a opção pelos pobres.
Estamos na semana em que a Igreja celebra a festa de São João Maria Vianney, padroeiro do clero e visto pela Igreja como caminho de santidade para os ministros ordenados. Na sua opinião, o que faz hoje um ministro ordenado estar no caminho da santidade?
Esse conceito de santidade foi muitas vezes distorcido. Olhando mesmo para São João Maria Vianney, ele viveu pobremente, num lugar muito pobre e ligado às pessoas muito pobres. Ele foi muito rejeitado pelo clero, pela Igreja hierárquica de seu tempo, ele não era uma pessoa que fazia sucesso no meio do clero, nem era bem visto. Por isso, justamente, que ele foi para Ars, que era uma cidade que não tinha significação nenhuma.
Ele é uma pessoa extremamente simples, extremamente pobre, extremamente voltada para o povo. As pessoas esquecem de São João Maria Vianney junto aos pobres e da própria vida que ele levou. O que leva à santidade é o seguimento de Jesus.
A gente poderia dizer que o senhor é alguém que tem encarnado aquilo que o Papa Francisco chama de Igreja em saída, presente nas periferias geográficas e existenciais. Quais são os passos que a Igreja deveria dar para assumir essa proposta do Papa Francisco?
Eu acredito que a proximidade com os que estão sofrendo, a superação de todo tipo de discriminação e preconceito, a convivência com o povo mais simples, mais pobre, a gratuidade, e o principio misericórdia, defendido e explicitado por Jon Sobrino. O princípio misericórdia, não é a misericórdia simplesmente, é o princípio misericórdia de Jon Sobrino. A luta do povo, estarmos juntos e aliados da luta dos povos indígenas, dos quilombolas, das comunidades ancestrais, da cultura popular, dos grupos que são marginalizados e sofrem preconceito, como o grupo LGBTI+, as pessoas deficientes, as pessoas idosas, os doentes.
Irmos, estarmos com eles, irmos ao encontro deles, descentralizar do clericalismo, estarmos próximos dessas pessoas, formando com eles comunidades, formando com eles, em torno da Palavra, uma comunidade que celebra a Eucaristia, não a partir de um clericalismo, mas a partir de uma humanização da vida. A grande questão que se coloca para nós, hoje, é a humanização da vida, a conversa com outros grupos religiosos, e também eu tenho muito ressaltado isso, os grupos que não são religiosos, os que não têm religião, porque a solidariedade não é uma dimensão religiosa, ela é uma dimensão humana.
Nós não podemos privatizar a solidariedade como uma dimensão das religiões, porque hoje, explicitamente no Brasil, se usa da religião para dominar o povo, se usa de um discurso religioso para justificar a opressão. Nós precisamos priorizar a humanização da vida, na defesa das mulheres, na defesa dos que são marginalizados e discriminados, como a comunidade LGBTI+, os povos indígenas, os grupos negros. Esses grupos, se não somos reconhecidos por eles e caminhamos com eles, não somos uma Igreja em saída.
O senhor aborda em sua reflexão algumas questões muito presentes no processo do Sínodo para a Amazônia, momento em que a Igreja estabeleceu uma aliança formal na defesa da Amazônia e dos povos da Amazônia. O cardeal Cláudio Hummes fala que o clamor dos pobres e o clamor da terra é o mesmo. Para alguém que mora fora da Amazônia, o que significa ou pode significar de cara ao futuro, o processo vivido no Sínodo para a Amazônia?
Nós temos que ter essas causas na nossa mente, nós não podemos nos pensar sem pensar a Amazônia, o Brasil não tem identidade sem os povos da Amazônia, a história do Brasil é incompreensível sem os povos da Amazônia, e o Brasil não tem futuro, nem a América Latina, nem o mundo, sem os povos da Amazônia. E a Igreja, ela também não tem futuro se ela não for servidora dos povos da Amazônia. Eu acredito que a exortação pós-sinodal Querida Amazônia é importantíssima para que seja incorporada. Nós não vivemos na Amazônia, mas nós vivemos com a Amazônia e vivemos pela Amazônia. Eu não estou geograficamente lá, mas a Amazônia está comigo.
Um dos debates mais presentes na Igreja é a formação dos futuros presbíteros, onde nem sempre está presente a dimensão de uma Igreja encarnada no meio dos mais pobres. Quais são as repercussões que isso está tendo e pode ter no futuro da Igreja?
Seria catastrófico, seria uma Igreja alienada, divorciada da luta e da vida do povo. Acredito que isso é muito grave, porque leva a uma distorção, que chega a perturbar a saúde mental das pessoas. O fanatismo é um distúrbio, esse fanatismo que está presente no neopentecostalismo, também dentro da Igreja católica, ele chega ser patológico, ele não é sadio. Ele não traz humanização, ele é moralista, individualista, é impositivo. Ele tem laços muito fortes que justificam o fascismo, justificam a discriminação, o preconceito.
Todos esses pontos, eles são extremamente patológicos, eles mostram uma pessoa que não tem harmonia, nem com a vida, nem com o mundo, nem consigo mesmo. Eu acredito que não podemos continuar uma formação do clero desvinculada da vida do povo, desvinculada da missão da Igreja, desvinculada do Evangelho. Nós há poucos dias celebramos o aniversário da publicação da Ecclesiam Suam, do Santo Papa Paulo VI, então nós temos que defender aquilo que o próprio Paulo VI defendia, a enculturação da fé. O que nós estamos vendo é tirar a fé, querer tirar a vida cristã da sua raiz, da sua terra, e isso mata. Uma religião sem raiz na cultura, na vida, no continente que está, na situação que está, ela se torna tremendamente alienada, elitista e justificadora da opressão.
A pandemia tem apresentado grandes desafios para a sociedade e para a Igreja. Pensando no futuro, quais deveriam ser as novas atitudes a serem assumidas?
A Evangelii Gaudium nos aponta esses caminhos, o próprio Concílio Vaticano II, Medellín, Puebla, mesmo Aparecida, Santo Domingo, todas essas conferências latino-americanas, especialmente Medellín e Puebla. Não podemos esquecer todo o caminho que fizemos, e não podemos esquecer o Magistério da Igreja. Se prega tanta fidelidade ao Magistério da Igreja e não se vive o que o Papa Francisco colocou na Evangelii Gaudium, que é o seu programa de pontificado, que é o seu programa de Alegria do Evangelho vivida com o povo. Não há outra saída que não seja essa.
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“A população de rua é um sintoma da necrofilia que vai matando nosso povo”. Entrevista com o Padre Júlio Lancelotti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU