03 Agosto 2021
"O caso é o do alerta sobre a natureza autoritária, discriminatória e liberticida da obrigação do green pass, que apareceu assinado por Giorgio Agamben e Massimo Cacciari em 26 de julho no site do Instituto Italiano de Estudos Filosóficos: mas que aqui é apenas um pretexto para uma reflexão possível sobre uma raiz da angústia moral, civil e política em que estamos imersos - e talvez não só na Itália: que a sofística, e não é de hoje, tenha se apropriado abusivamente do nome de 'filosofia' - e desde então, tenha tido um sucesso popular nunca conhecido nos milênios".
O artigo é de Roberta de Monticelli, filósofa italiana, publicado por Domani, 31-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Hoje nos falta respiro. Talvez não o percebamos, mas não é a pandemia que nos oprime: é a falta de perspectivas ideais e de futuro, é a angústia em que vivemos dia a dia, em que, sobretudo, hoje a política vive e obriga a nós todos a viver, pelo menos para a parte cívica das nossas almas, senão por verdadeiro sofrimento social, com a sua visão “mais curta que um palmo”.
A escola que vai reabrir daqui a um mês e ainda não se sabe como, as variantes do vírus que correm desimpedidas e não há ninguém entre os tomadores de decisão públicos que esteja reorganizando o rastreamento, a tremenda confusão que parece existir na discussão sobre as vacinas, onde o sério problema da vacinação dos adolescentes (falando em vista curta: podemos decidir com base no nosso hoje impor um risco sobre o amanhã deles?) se confunde com aquele não sério de saber se a obrigatoriedade do green pass para o acesso a lugares com muitas pessoas seja ou não o prenúncio de uma virada autoritária.
E há quem na maioria do governo fomente as ruas dos no pass e no-vax que, como já ressaltou Maurizio Ferraris com seu habitual lampejo de humor gélido (Il Foglio, 29 de julho), que também são os no tax, e desta vez a sua é realmente uma verdade lampejante. Mas se então também os filósofos se colocam no meio, para reduzir a visibilidade e nos tirar o respiro, atraindo ondas de imbecilidade nas redes sociais (diria Ferraris), eis então que, como falariam as nossas avós, não há mais religião. Ou seja, no caso específico, realmente não há mais senso crítico.
O caso é o do alerta sobre a natureza autoritária, discriminatória e liberticida da obrigação do green pass, que apareceu assinado por Giorgio Agamben e Massimo Cacciari em 26 de julho no site do Instituto Italiano de Estudos Filosóficos: mas que aqui é apenas um pretexto para uma reflexão possível sobre uma raiz da angústia moral, civil e política em que estamos imersos - e talvez não só na Itália: que a sofística, e não é de hoje, tenha se apropriado abusivamente do nome de "filosofia" - e desde então, tenha tido um sucesso popular nunca conhecido nos milênios.
Cacciari já respondeu à perplexidade com um artigo no La Stampa (28 de julho) em que traduz a acusação em perguntas: e as perguntas não são apenas sempre legítimas, são aquilo em que idealmente se baseiam as democracias. Exceto algumas dúvidas sobre os números que nos oferece sem comparação com outros números, por exemplo, a percentagem de mortes entre os não vacinados e a distribuição de vacinados e não vacinados na população. Porque isso nos induz a pensar que, se quase metade dos mortos haviam sido vacinados, não adianta se vacinar. E exceto uma dúvida ainda mais aguda sobre a deriva "para uma sociedade do vigiar e punir" que ameaçaria um país em que está prestes a ser aprovada uma reforma da justiça que, segundo muitos magistrados e estudiosos famosos, levaria ao cancelamento de processo, pena e crime para um número impressionante de condenados apenas em primeiro grau.
Quanto a Agamben, Raffaele Alberto Ventura fez um retrato brilhante dele em Domani (29 de julho), ainda que em minha ingenuidade tenha dificuldade de compreender, senão em tom irônico, como sua fama mundial pôde também torná-lo ‘uma das experiências intelectuais mais exaltantes da contemporaneidade". E chego à minha tese, que a popularidade mundial de Giorgio Agamben exemplifica bem - mas que também se baseia na evidência de meio século de domínio incontestado, na Europa continental, aquela koinè de pensamento, chamada "crítica da modernidade", na qual se destacam os mestres dos nossos autores. Uma koiné unificada pela zombaria tanto da razão lógica como da prática, isto é, dos valores epistêmicos, morais e políticos que inspiraram os dois lados iluministas da modernidade: a ciência e a democracia.
Na verdade foram os franceses, na época de Alexandre Kojève (que, dizem, saudava o espírito do mundo a cavalo na figura de Stalin, como Hegel fizera com Napoleão), de Jean Beaufret, de Jean-Paul Sartre, que disseminaram Heidegger, após sua Carta sobre o humanismo: uma explosão de vaticínios sobre o destino do Ocidente, que desenraiza e reifica, e sobre seus poderes demoníacos, a razão calculadora, técnica e a maquinação (Machenschaft), das quais, entre outras coisas, nos Cadernos Pretos os representantes são os judeus, esses desenraizados e desenraizadores.
Afinal, para os herdeiros de Marx, foi precisamente o Iluminismo que "conduz aos campos de extermínio" (Adorno-Horkheimer, Dialética do Iluminismo). Não são uma invenção de Diego Fusaro, os cadernos “rossobruni” (vermelho-preto: neologismo de uma tendência que mistura pautas esquerdistas e nacionalistas, NT) que tantos fãs jogam nas redes sociais, onde o seu inventor acaba - dizem-me – de anunciar a fundação de uma universidade dedicada ao pensamento de Michel Foucault. Que é, junto com o constitucionalista de Hitler, Carl Schmitt, o principal mestre de Giorgio Agamben.
Que obteve, já a partir de Homo Sacer – O Poder Soberano e Vida Nua (1995) – a fusão de um decisionismo extremo de tipo schmittiano com uma acentuação de indeterminação, inteiramente foucaultiana, do "poder": que não se identifica apenas com aquele político, nem com outros, legítimos ou ilegítimos, mas com algo difuso e elusivo, que se manifesta no exercício de qualquer prática, por exemplo, o conhecimento das várias profissões, e tem como domínio de exercício a “vida nua”.
Uma manifestação paradigmática desse "poder sobre a vida nua" são para Agamben os campos de extermínio nazistas, cuja biopolítica, de fato, não apenas guerras, massacres, migrações e outros eventos geopolíticos contemporâneos, independentemente de suas causas imediatas, seriam outras manifestações: mas o seria qualquer sociedade democrática cujas instituições, por exemplo, regulem a prática da medicina, dado que "a integração entre a medicina e a política (...) é uma das características essenciais da biopolítica moderna", e o momento em que essa integração "começa a assumir a sua forma completa" é "o Reich nacional-socialista".
Assim, aqui a inferência não é da modernidade para o nazismo, mas do nazismo para a contemporaneidade, aliás, especificamente aquela das sociedades com constituições democráticas, especialmente se têm os direitos humanos constitucionalizados: que forma mais evidente de poder sobre a vida nua do que proteger o direito à vida, à saúde, ou à procriação assistida.
Principalmente porque "soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção" e, conclui Agamben, o estado de exceção é a normalidade própria da soberania, portanto, quando você espera a sua vez para se consultar no Sistema de Saúde (ASL), também deve levar em consideração que de outro pode estar um médico com uma dose de Morphium-Escopolamina para injetar em você com a desculpa da vacina, e por trás do sorriso da enfermeira brilha o esgar do Doutor Mengele.
Queria fornecer ao leitor um critério ágil da diferença entre filosofia e sofística, mas depois deste resumo, me parece um tanto pedante. De qualquer forma, aqui está, pelo que vale. A diferença é aquela entre quem aceita e quem não aceita o dom dos vínculos dados ao seu pensamento e à sua vontade. Vínculos ao arbítrio da nossa liberdade (falando de leis liberticidas!). Vínculos reconhecíveis à nossa razão: o exercício extenuante desse reconhecimento, progressivo e nunca exaustivo, crítico e autocrítico, e acima de tudo ávido por evidências e razões, acessíveis a todos e a cada um, pelo que se presume como verdade, é filosofia, como Sócrates a inventou.
Os vínculos são os da lógica e da ética: aliás, é a descoberta do vínculo indissociável da lógica e da ética que marca o nascimento do pensamento filosófico, com o empenho de buscar razões para os próprios juízos. Ser livres e autônomos também significa isso: certamente podemos infringir as leis que nos propomos, mas é melhor verificar se o que prescrevem está certo. Se é verdade ou não que o seja.
Se o único argumento contra a sofística fosse o que Donatella Di Cesare opõe a Agamben e Cacciari - "a ideia de que somos livres e autônomos é ingênua" e esconde instintos identitários (L'Espresso, 27 de julho) - aí está, a batalha do filósofo contra o sofista, estaria realmente perdida.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A pandemia tirou nosso respiro. E nem mesmo os filósofos ajudam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU