09 Junho 2010
O deus cristão se faz homem, morre, ressurge, se levanta humilhando-se, condena e ao mesmo tempo perdoa. Desde as origens, a dinâmica do acordo entre as antíteses é essencial no cristianismo. O saber combinar os opostos não só teológicos, mas também culturais e políticos, ao longo da história, assumiu as dimensões de um sistema na Igreja de Roma, instituição que, por isso, atraiu repetidamente uma série de críticas, mas também não menores manifestações de admiração.
A análise é de Marco Pacioni, doutor em letras pela Universidade de Roma La Sapienza e em filosofia pela Universidade de Roma Tor Vergata e atual coordenador acadêmico do programa de estudos no exterior da Universidade da Georgia em Cortona, na Itália. O artigo foi publicado no jornal Il Manifesto, 04-06-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Entre os admiradores, também o filósofo e jurista alemão Carl Schmitt, do qual foi publicada uma nova edição de "Cattolicesimo romano e forma politica" (editado por Carlo Galli, Ed. Il Mulino, 96 páginas), o ensaio publicado pela primeira vez em 1923, logo depois do famoso e em muitos aspectos inaugural trabalho intitulado "Teologia politica", que apareceu um ano antes.
Embora pertençam ao mesmo período, os dois escritos exibem direções de pensamento surpreendentemente alternativas, compreendendo Schmitt em um momento no qual ele parece ainda não ter decidido qual forma dar a alguns dos conceitos que tornarão famosa a sua reflexão primeiro e a sua militância nazista depois.
Não pode não surpreender, por exemplo, o fato de que, ao delinear o conceito do político no ensaio sobre o "Cattolicesimo romano", Schmitt substitui ao dilema amigo/inimigo a simbiose da "complexio oppositorum". "Eu acredito que a Igreja Católica é um `complexio oppositorum`. Ela consiste em uma superioridade formal específica com relação à matéria da vida humana, que até agora nenhum império conheceu".
A substituição do dilema amigo/inimigo pela "complexio oppositorum" comporta também um ,modo diferente de entender outras ideias de referência no pensamento de Schmitt, entre elas a ideia de "exceção", que, diferentemente do que Schmitt afirma em "Teologia politica", torna-se pouco relevante no momento em que se deve localizar onde reside a soberania. Qual importância tem, de fato, a exceção de um organismo, como o da Igreja, que consegue colocar de acordo, segundo Schmitt, tudo e o contrário de tudo?
Além disso, na forma política do catolicismo, Schmitt localiza uma forte aderência entre exercício da soberania e da legitimidade, isto é, entre o ato de decidir e o estar acostumado a fazer isso. Mas talvez é ainda mais surpreendente o fato de que Schmitt vê a "complexio oppositorum" da forma política própria à Igreja como baseada na "representação". E mesmo que ele se apresse em distinguir esta última da vituperada representação liberal, não se pode não captar uma certa anomalia no modo em que o jurista alemão considera a representação no contexto do seu radical antiparlamentarismo. A "representação" da Igreja Católica é, para Schmitt, uma forma de "vicariedade", como exatamente a do Papa, na qual se pode distinguir, mas jamais separar completamente, a função de quem a exerce: aquela que Max Weber chamaria de legalidade do carisma.
No ensaio pontual que fecha o livro sob o título "A alegria e os inimigos da Igreja Católica", Carlo Galli menciona e em parte explica as profundas diferenças entre esse escrito e aquilo que se lê entre as páginas de "Teologia politica". Às considerações de Galli, pode-se acrescentar que, em "Cattolicesimo romano", o desinteresse de Schmitt por categorias que, em outros textos, constituem a ossatura mais reconhecível da sua doutrina também se deve à tentativa de antecipar, por meio da Igreja Católica, as conclusões que terão lugar na adesão do jurista alemão ao nazismo e na abordagem teórica que lhe conferirá com o seu pensamento. Uma contribuição na qual as relações entre amigo e inimigo, legalidade e legitimidade, jurídico e político, assim como entre Estado, movimento e povo (esse é o título do seu escrito mais abertamente comprometido com o lado nazista) não são mais a exceção, como pelo contrário ocorre continuamente e sempre colocando em risco a estrutura do Estado, na democracia parlamentar.
É como se, na contínua capacidade de absorver a exceção por parte da forma política da Igreja Católica, Schmitt encontrasse uma antecipação, embora insatisfatória, do que se distinguirá mais eficazmente no Führerprinzip totalitário nazista. (Insatisfatória porque o organicismo eclesiástico, como o próprio Schmitt revela, não opera necessariamente para fazer desaparecer o que não cabe na sua hierarquia). O fato de Schmitt prescindir, em "Cattolicesimo romano", das categorias que o tornaram famoso mostra a sua intenção não apenas de pôr essas mesmas categorias na base da sua ideia de Estado, lei e política, mas também e talvez principalmente que a sua tentativa era eliminar a intrínseca conflitualidade dessas categorias, de uma vez por todas.
Do conflito gerado por um princípio dicotômico como o de amigo/inimigo, no fim das contas, principalmente a democracia e o sistema parlamentar se alimentam – baseados não por acaso na divisão dos poderes. O dinamismo das formas políticas liberais não se corrige mais: de fato, elas permitem, dirá Schmitt mais tarde, o paradoxo da "revolução legal".
Que o pressuposto da política é o conflito – a "guerra", diz Schmitt, com mais ênfase, parafraseando Clausewitz – é muito mais verdadeiro para um sistema liberal baseado no confronto dos partidos do que para os sistemas totalitários, voltados, de fato, a eliminar qualquer forma de oposição, de diversidade e, ao mesmo tempo, de qualquer exceção.
Schmitt parece ter visto um pouco dessa amálgama totalitária na forma política do catolicismo. Em seguida, como sabemos, ele irá acreditar que o Estado totalitário poderá ser realizado, sem ulteriores resíduos de conflito e exceção, no nazismo.
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Catolicismo romano e forma política. Um livro de Carl Schmitt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU