21 Março 2023
"O contexto atual é o da rarefação das vocações sacerdotais e da tragédia constituída pelos abusos clericais, que voltaram a colocar em evidência a conveniência de manter essa disciplina na Igreja de rito romano. Mas a escolha do celibato por motivos religiosos, embora característica do catolicismo ocidental, tem precedentes - embora muito raros - também no contexto filosófico helenístico e no judaísmo do início de nossa era".
O artigo é de Giovanni Maria Vian, catedrático de Filologia Patrística na Universidade de La Sapienza e ex-diretor do jornal L’Osservatore Romano nos anos 2007-2018, publicado por Domani 19-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entre as afirmações espalhadas na profusão de entrevistas, agora inevitavelmente repetitivas, que o papa concedeu ao longo dos dez anos de seu pontificado, teve ressonância midiática a sua resposta - não exatamente nova - sobre a possibilidade de o celibato sacerdotal ser declarado facultativo. No entanto, sua formulação mais articulada e completa pode ser encontrada no último livro de Francesca Ambrogetti e Sergio Rubín, que Bergoglio conhece há mais de 20 anos.
No livro El pastor, publicado na Argentina pelo decenal, Francisco reitera que o celibato "é uma questão disciplinar, e isso significa que um papa poderia torná-lo opcional". “No que me diz respeito”, afirmou, porém, “respeito a tradição da Igreja do ocidente”. Poderia ocorrer uma mudança? “Em todo o caso, o Papa que me suceder o poderá decidir, se achar conveniente”, e concluiu: “É verdade que se alguém vive mal o celibato, é uma tortura, algo impossível. Mas não é menos verdade que, se alguém o vive com a fecundidade do ministério escolhido, não é apenas fácil, mas belo”.
Não é a primeira vez que Bergoglio revela seu pensamento. Voltando em 2014 da Terra Santa – onde se concentram minorias, aliás cada vez mais exíguas, de cristãos e católicos pertencentes a diferentes tradições rituais – o Papa havia recordado que “no rito oriental há padres casados. Porque o celibato não é um dogma de fé, é uma regra de vida que eu aprecio muito e creio que seja um dom para a igreja. Não sendo um dogma de fé, a porta está sempre aberta”. Uma porta que Francisco, porém, nestes dez anos considerou inconveniente abrir, em continuidade com seus predecessores.
De fato, a questão não é simples. Isso foi demonstrado por uma breve, mas concentrada contribuição sobre o sacerdócio escrita no verão de 2019 por Bento XVI. O texto foi incluído poucos meses depois no livro do cardeal Sarah, uma iniciativa que entrou, claramente instrumentalizada, no debate sobre o celibato. De fato, a questão parecia de alguma forma reaberta após o sínodo sobre a Amazônia sobre a oportunidade de ordenar padres os viri probati, isto é, homens casados cuja fé seja vivenciada nas comunidades a que pertencem. No entanto, as polêmicas foram tão fortes que o papa emérito, amargurado, decidiu a partir de então não publicar mais nada.
Mas Ratzinger voltou ao tema novamente, revisando e ampliando seu texto, de cunho mais teológico do que histórico, e agora publicado em Che cos’è il cristianesimo (O que é cristianismo, em tradução livre, Mondadori). Baseando-se com finura na análise dos textos bíblicos, Bento XVI levanta a hipótese de que para os sacerdotes cristãos, "com base na celebração diária da Eucaristia, e com base no serviço a Deus que ela incluía, surgiu por si só a impossibilidade de um vínculo matrimonial”. E à objeção atual “de que se trataria de um juízo negativo sobre a corporeidade e a sexualidade”, crítica já avançada no século IV, os antigos autores cristãos responderam “com decisão” porque consideravam o casamento “um dom dado por Deus no paraíso”.
Na realidade, a história do celibato é mais complicada e fascinante, e é contada com rara capacidade de síntese e clareza no livro de um jornalista francês. Deve mudar hoje essa disciplina da Igreja no Ocidente, que ao longo de um milênio se tornou "um quase-dogma"? Quem se questiona - no livro O celibato dos padres, lei eclesiástica que definitivamente tem “uma má aparência” – é Jean Mercier, autor também do romance Senhor Bispo, o Pároco fugiu.
O contexto atual é o da rarefação das vocações sacerdotais e da tragédia constituída pelos abusos clericais, que voltaram a colocar em evidência a conveniência de manter essa disciplina na Igreja de rito romano. Mas a escolha do celibato por motivos religiosos, embora característica do catolicismo ocidental, tem precedentes - embora muito raros - também no contexto filosófico helenístico e no judaísmo do início de nossa era.
Jesus certamente era celibatário, apesar das suposições infundadas em contrário popularizadas pelo Código da Vinci, e celibatário era João Batista, o asceta que Lucas no início de seu Evangelho apresenta como parente do próprio Jesus. Mas também eram, segundo antigas tradições, o apóstolo João e certamente Paulo, como se deduz de suas cartas. Uma opção de continência que é ilustrada por uma frase referida no Evangelho segundo Mateus no capítulo XIX, após a discussão sobre a união originária entre o homem e a mulher e sobre o repúdio: “Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos, por causa do reino dos céus. Quem pode receber isto, receba-o."
A passagem, misteriosa mas historicamente atribuível a Jesus, é bem explicada no comentário da Tob, a excelente Traduction œcuménique de la Bible, publicada na França por católicos, ortodoxos e protestantes em 1972 e em uma nova edição atualizada em 2010. Essa afirmação “revela uma nova situação provocada pela chegada do Reino dos Céus. Não se trata de uma crítica ao casamento, mas uma exceção escatológica não obrigatória: alguns homens são tão tomados pelo Reino dos Céus que não se casam”.
Pedro, em quem a igreja de Roma foi fundada, era casado. De fato, Cristo cura sua sogra de uma febre, e o milagre é relatado pelo Evangelho de Marcos logo no início (e pelos paralelos nos de Mateus e Lucas). Nada se sabe sobre a esposa do primeiro dos apóstolos, mas o dado parece certo - confirmado, como para os "outros apóstolos", por uma carta autêntica de Paulo, a primeira aos Coríntios (9, 5) - e está na origem das histórias apócrifas que atribuem uma filha, Petronila ao primeiro dos apóstolos. Uma mulher, portanto, e não um homem, que entre outras coisas, agora no final da antiguidade, por esse motivo exclui qualquer reivindicação dinástica nas sucessões papais.
No cristianismo dos primeiros séculos, registra-se a copresença de escolhas opostas pelo celibato e pelo casamento, com consequentes teorizações e disposições. Em suma, presbíteros e bispos podem ser tanto celibatários como casados, tanto no Oriente quanto no Ocidente, pelo menos até o século VI, com papas casados - antes da ordenação - como Félix III, bisavô de Gregório Magno que o recorda, e Hormisda, pai por sua vez do Papa Silvério, ele também casado: todos venerados como santos pela liturgia romana. Mas sem dúvida há uma crescente tendência a favorecer o celibato, que inclusive permite e assegura a acumulação e conservação de patrimônios eclesiásticos. Em todo caso, está excluída em todos os lugares a possibilidade de um padre ou bispo ordenado poder se casar.
Os acontecimentos históricos são oscilantes e emocionantes, da reforma gregoriana que impôs o celibato na Igreja latina no século XI, até a revolução protestante que o aboliu no início da era moderna. Até a tempestade da Revolução Francesa que o impõe ao clero católico e, em anos recentes, às ordenações clandestinas de homens casados na Tchecoslováquia ocupada pelos soviéticos e ao caso extravagante do bispo africano Emmanuel Milingo.
A teologia e o direito nas diversas confissões cristãs se afinam nas últimas décadas e, mesmo nas reconstruções históricas, são afetados por um debate inflamado pelo impacto da revolução sexual sobre a tradição cristã bem reconstruído por Margherita Pelaja e Lucetta Scaraffia (Due in una carne, Laterza).
Mas quem valoriza fortemente o casamento em comparação com seus predecessores é o próprio João Paulo II que, ao mesmo tempo, relança com força o celibato sacerdotal. Da mesma forma que foi o próprio Bento XVI quem facilitou a entrada na Igreja Católica de muitos padres anglicanos casados. Em um cenário completamente mudado que hoje teriam dificuldades para reconhecer Sofia Loren e Marcello Mastroianni, protagonistas do filme de 1970, A mulher do padre, de um amargo Dino Risi. Aquela hipocrisia católica da época certamente não foi superada, mas hoje a questão é ainda mais radical, porque diz respeito à dificuldade de se manter fiel a toda escolha de vida.
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Sobre o celibato na Igreja Católica nunca se deixa de discutir. Artigo de Giovanni Maria Vian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU