Pandemia e violência doméstica: um beco sem saída se não houver políticas públicas efetivas de proteção às mulheres. Entrevista especial com Fernanda Vasconcellos

De acordo com a pesquisadora, o enfraquecimento das redes de proteção às mulheres torna a situação brasileira, que historicamente é ruim, urgente e dramática

Foto: Pixabay

Por: Ricardo Machado | 18 Janeiro 2021

No Brasil a violência de gênero é uma das indeléveis marcas de como nossa civilização foi construída, também, sobre os alicerces da violência. A crise sanitária global, combinada com políticas públicas conservadoras em relação à proteção das mulheres, produziu novos contornos em relação a esta problemática no Brasil. “A situação brasileira é realmente lastimável no que se refere a estratégias de proteção e enfrentamento da violência contra as mulheres durante a pandemia: apenas foram ampliados serviços online e telefônicos para o atendimento de mulheres em situação de violência. Um reflexo disso, unido à dificuldade de acessar os serviços físicos de atendimento, é o aumento de 3,9% de procura pelos serviços de atendimento das polícias militares, o disque 190”, explica a professora e pesquisadora Fernanda Vasconcellos, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

Esta dificuldade em acessar mecanismos públicos de atendimento às mulheres vítimas de violência não deve ser interpretada como mera ineficiência, mas resultado de uma espécie de abandono do poder público, especialmente o federal, em relação à temática. “Podemos perceber um esvaziamento de políticas públicas transversais já desde 2013/2014. Mas creio que tenhamos chegado a bem perto do fundo do poço nos últimos dois anos, quando, além de não dar atenção à questão da violência contra a mulher, quando faz qualquer movimento acaba por reforçar a produção de discursos sobre papéis e expectativas de gênero e não de garantir direitos de proteção e não violência. Deixou-se de lado qualquer perspectiva que não aquela que reforça a ideia de que ‘meninos vestem azul e meninas vestem rosa’”, adverte a pesquisadora.

 

Não obstante os entraves históricos da sociedade brasileira, o contexto atual em nossa sociedade traz à tona duas questões cujas soluções são, mais do que nunca, inadiáveis. “Creio ser possível afirmar que lidamos com dois problemas urgentes (sendo o segundo um enorme entrave para o real enfrentamento da questão): a pandemia de Covid-19 e o pandemônio que nos (des)governa”, destaca Fernanda.

 

Fernanda Vasconcellos (Foto: Arquivo pessoal)

Fernanda Bestetti de Vasconcellos é professora adjunta do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, possui mestrado em Ciências Sociais pela PUCRS e bacharelado em Ciências Sociais pela UFRGS. É pesquisadora visitante no Departamento de Criminologia da Universidade de Ottawa, no Canadá, e atua como pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal - GPESC e do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos - INCT-INEAC.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Passados mais de nove meses de isolamento social (apesar dos descumprimentos em muitos setores), o que há de dados sobre a violência doméstica contra mulheres?

Fernanda Vasconcellos – Creio que os dados mais fidedignos sobre casos de violência contra a mulher no Brasil durante o período da pandemia da Covid-19 estão reunidos no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que é um material produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública - FBSP anualmente. Na edição publicada no ano passado, foi realizado um grande esforço para que fossem apresentados dados sobre tais violências no primeiro semestre de 2020, e os dados nos apresentam uma realidade bastante perversa. Acredito ser importante citar que os dados apresentados no Anuário sobre os casos de violência contra a mulher são informados pelas secretarias de segurança pública estaduais, logo, dizem respeito somente àquilo que chega ao conhecimento da autoridade policial. Assim, é preciso ter em conta que tratamos aqui de um tipo de violência que muitíssimo provavelmente possua contornos muito mais graves, porque grande parte dos conflitos sequer é oficialmente registrado nos órgãos de segurança pública.

Chama muito a atenção a redução de grande parte dos tipos de violência contra a mulher, na maioria dos estados do país, no primeiro semestre de 2020, justamente quando vivemos o isolamento social. Neste caso, não é sem sentido indagar se, de fato, não ocorreu uma diminuição nos casos de violência. Porém, há um consenso entre pesquisadores sobre as dificuldades vivenciadas pelas mulheres em situação de violência em recorrer ao auxílio da autoridade policial.

Assim, simplesmente olhar os números, sem uma análise mais aprofundada sobre a questão, não nos permite compreender as possíveis dinâmicas de controle, de dificuldade de pedir ajuda, de impossibilidade de acessar as autoridades policiais vivenciadas por estas mulheres, uma vez que, com o isolamento social, passam a manter um contato muito mais intenso e de contenção com o agressor.

 

 

IHU On-Line – A pandemia da Covid-19 no Brasil pode ser compreendida como uma dupla guerra às mulheres, de um lado a luta contra o vírus, de outro a luta pela sobrevivência no convívio com o agressor? Quais são as consequências sociais desta situação?

Fernanda Vasconcellos – Considero complicado falarmos em “guerra”, uma vez que “guerra” é uma situação que pode nos remeter ao que o filósofo italiano Giorgio Agamben conceitua como “estado de exceção”. Não creio que vivamos uma guerra e/ou estado de exceção, mas um momento em que há um acirramento do convívio doméstico, de crescimento de vulnerabilidades econômicas.

Na prática, isso significa, na esmagadora maioria dos domicílios brasileiros, uma sobrecarga de atividades domésticas e de tarefas relacionadas ao cuidado, as quais, habitualmente, são realizadas por mulheres. Grande parte da nossa sociedade está habituada a repassar parte do trabalho de cuidado com filhos às escolas: sem escola, as tarefas de cuidado com as crianças intensificam-se. Para além do cuidado com as crianças, há o cuidado com idosos e com pessoas com necessidades especiais. Acredito que este primeiro ponto afete a maior parte das mulheres brasileiras.

Uma segunda sobrecarga, para algumas mulheres, é aquela relacionada à necessidade de cuidar, atrelada ao aumento expressivo do trabalho doméstico junto com o trabalho realizado remotamente (o famoso “home office”), mas também as dificuldades em conseguir dar conta de todas as tarefas domésticas e de cuidado sem a possibilidade de trabalhar remotamente. Todas estamos sobrecarregadas: seja pelo excesso de tarefas concomitantes, seja pelas vulnerabilidades econômicas advindas de um desemprego relacionado à crise econômica.

 

 

Portanto, não creio que estejamos tratando aqui de uma “guerra” ou de um “estado de exceção”. Ainda que despendam mais tempo neste momento de pandemia, estas tarefas cotidianas sempre existiram e, desde que o Brasil é Brasil, são de atribuição feminina. E isso não é diferente quando falamos sobre a violência contra as mulheres praticada por parceiros, se pensarmos em características históricas da nossa sociedade.

Mesmo que tenhamos vivido mudanças no ordenamento legal (como a Lei Maria da Penha ou a entrada em vigor da qualificadora do feminicídio), padrões machistas violentos fazem parte da nossa cultura também desde que o Brasil é Brasil. Há muito possivelmente um acirramento dessas violências, mas a violência em si não é uma novidade trazida pela pandemia.

Em relação às consequências sociais desta situação que vivemos, podemos lançar hipóteses acerca de traumas de crianças que observam conflitos violentos entre seus pais, por exemplo. Porém, a sociologia nos exige prudência: falar sobre consequências, neste caso, significa observar a sociedade “após a passagem do furacão” para afirmá-las.

 

 

IHU On-Line – Como entender a relação entre violência de gênero (no sentido mais amplo da vida em sociedade) e violência doméstica? Como uma é consequência da outra e quais suas especificidades?

Fernanda Vasconcellos – Podemos pensar a violência de gênero no caso em questão como algo vinculado ao não cumprimento de expectativas de realização de determinadas atividades, de expectativas de determinados tipos de comportamento socialmente considerados adequados. Uma forma (bastante simplificada, uma vez que as dinâmicas costumam ser mais complexas, ainda que apresentem majoritariamente aspectos comuns) de explicar a relação da violência contra as mulheres e as expectativas de gênero nelas colocadas pode ser dada quando nos remetemos ao nascimento de uma menina: a sociedade espera que se comporte como boa mãe, que cuide bem do lar, que seja uma boa esposa, que se vista adequadamente, que não apresente traços de vulgaridade e que tenha sua sexualidade controlada (historicamente, homens casados que possuem amantes não costumam ser socialmente tão culpabilizados como as mulheres com relações extraconjugais, certo?). Pois bem.

Pensemos nessa menina crescida e relacionando-se com um parceiro, criado em uma cultura em que homens são socializados a partir de padrões de gênero bastante distintos. O não cumprimento de alguma destas expectativas relacionadas ao gênero feminino acima descritas, dependendo da situação (uma vez que existem fatores de ordem subjetiva: nem todos os homens são potenciais agressores, creio ser perigoso cairmos neste determinismo), pode sim (e costuma) culminar em algum tipo de agressão, seja ela física, psicológica ou verbal.

E por mais perversa que esta realidade inter-relacional já se demonstre, muitos dos canais de acolhimento e atendimento a estas mulheres em situação de violência costumam reproduzir as mesmas expectativas de gênero que culminam em atos violentos. O caso da blogueira Mariana Ferrer é um exemplo típico de como as instituições do Estado acabam por reiterar estas expectativas de gênero, que não estão presentes somente nas relações domésticas, mas em vários outros contextos da vida social.

 

 

IHU On-Line – O Anuário Brasileiro de Segurança Pública do ano passado indicou aumento na taxa de feminicídio no primeiro semestre de 2020 em relação a 2019. Como o isolamento social da pandemia pode estar associado a esse número?

Fernanda Vasconcellos – Pode estar, sim, relacionado. Porém, esta não é uma questão simples de responder, uma vez que existem muitos fatores relacionados à questão do feminicídio (como qualificadora do homicídio de mulheres, e está relacionado ao mundo do direito penal e ao processamento de homicídios praticados contras mulheres por questão de gênero).

Os dados apresentados pelo Anuário, como anteriormente já citado, são encaminhados ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública pelas secretarias de segurança pública dos estados da federação. São referentes aos registros formais realizados pelas instituições de segurança pública. Acontece que há todo um fluxo de processamento destes casos de homicídios de mulheres qualificados como feminicídios, que, em uma próxima fase do processo (denúncia pelo ministério público, instrução criminal pela vara do júri, e recursos judiciais possíveis) podem perder a qualificadora ou mesmo, em alguns casos em que a mesma não era apresentada, ser incorporada ao processo.

Neste sentido, poderemos dizer que houve, com certeza, o aumento de casos de feminicídios durante a pandemia somente após o processamento judicial de todos estes casos, aguardando as sentenças da última instância (isso, porque aqui estamos lidando com dados sobre a qualificadora feminicídio, produzidos pelas instituições de segurança pública e sistema de justiça criminal, e esta discussão pode ser bastante complexificada na medida em que utilizamos os distintos conceitos de feminicídio a partir de estudos realizados por pesquisadores(as) da área das ciências sociais).

 

 

No caso específico do Rio Grande do Sul, os dados apresentam um decréscimo de 14,5% nos homicídios dolosos contra a mulher e um aumento de quase 25% nos casos de feminicídio. O dado que temos de concreto é o de que, no primeiro semestre de 2020, 151 mulheres foram vítimas de homicídios dolosos no RS; ao passo que no mesmo período do ano anterior, podemos observar um total de 158 vítimas.

Minha hipótese é sim a de que a pandemia tenha provocado um crescimento nos índices de feminicídios, tanto por questões referentes às dificuldades vivenciadas pelas mulheres em situação de violência, como por questões relacionadas à obrigatoriedade (pelo isolamento social) de um convívio muito mais intenso entre vítima e agressor. Não é sem sentido pensar neste convívio maior como fator facilitador de aumento de conflitos domésticos, bem como do aumento progressivo da violência empregada nos mesmos.

 

 

IHU On-Line – O que explica o fato de o Brasil ter uma legislação relativamente avançada sobre a violência doméstica, como, por exemplo, a Lei Maria da Penha, mas ser tão precário na garantia desses direitos?

Fernanda Vasconcellos – A entrada em vigor de uma legislação não é, definitivamente, capaz de sozinha resolver problemas sociais: é utópico acreditar que a criação de novos tipos penais e ampliação de penas de prisão reduzirão a violência. David Garland chama este tipo de atuação de populismo penal e, em pleno acordo com o autor, creio que a elaboração legislativa penal seja incapaz de garantir direitos civis ou sociais.

Por outro lado, é complicado questionar a legitimidade dos caminhos e escolhas que levaram à criação da Lei Maria da Penha. Não há dúvidas de que a mesma deu visibilidade a um problema histórico vivenciado no contexto brasileiro. O problema é que somos um país muito bom em criar leis, mas temos enormes dificuldades de colocá-las em prática de forma igualitária para todos(as) os(as) cidadãos(ãs).

Além disso, a criação de mecanismos para a aplicação legal costuma ser bastante problemática. Se olharmos especificamente para a Lei Maria da Penha, podemos dizer que são as instituições do sistema de justiça criminal que são fortalecidas, ainda que estejam nela previstos recursos para a saúde e educação, por exemplo.

O problema da violência de gênero deve ser discutido na escola, nas instituições de saúde e de assistência social também. Se as expectativas de gênero não forem discutidas, se as relações patriarcais violentas não forem debatidas, seguiremos enxugando gelo: o sistema de justiça criminal seguirá recebendo uma demanda que, por mais que tenha recursos materiais e humanos, jamais será atendida.

No caso da Lei Maria da Penha, seguimos exigindo das instituições do sistema de justiça criminal a distribuição de direitos civis e sociais, algo que o mesmo sequer tem a atribuição. Por trás do fato de uma mulher em situação de violência, que vai a uma instituição policial registrar seu caso, há a negação dos mesmos direitos civis e sociais que o populismo penal nos faz crer que o direito penal nos garantirá.

 

 

IHU On-Line – Como ficou o atendimento na rede de proteção às mulheres durante a pandemia?

Fernanda Vasconcellos – Preocupada com um possível crescimento nos índices mundiais de violência contra a mulher, a Organização das Nações Unidas - ONU lançou um alerta com recomendações para os países enfrentarem o problema. O próprio Anuário do FBSP traz dados sobre tais recomendações, além de demonstrar, através de uma pesquisa realizada pelos órgãos governamentais internacionais e brasileiros, quais destas recomendações foram ou não colocadas em prática.

Dentre as recomendações da Organização das Nações Unidas, podemos observar claramente uma preocupação com o fortalecimento das redes de proteção às mulheres em situação de violência ou grande vulnerabilidade: criação de abrigos temporários, maiores investimentos e participação da sociedade civil, ampliação de canais de serviços de atendimento online para a realização de denúncias. Se observarmos com atenção as indicações realizadas, é possível afirmar que a questão para a qual a ONU demonstra principal atenção e aponta central relevância para o enfrentamento da violência contra as mulheres está ligada aos serviços de abrigamento e atendimento às mulheres como essenciais.

De acordo com os dados apontados pelo FBSP, somente França e Espanha parecem ter atendido às indicações do alerta lançado pela ONU. Em relação ao fortalecimento e ampliação das redes de abrigamento e atendimento às mulheres, somente Espanha, Uruguai e Argentina parecem ter centralizado seus esforços de prevenção e enfrentamento nestas estratégias.

A situação brasileira é realmente lastimável no que se refere a estratégias de proteção e enfrentamento da violência contra as mulheres durante a pandemia: apenas foram ampliados serviços online e telefônicos para o atendimento de mulheres em situação de violência. Um reflexo disso, unido à dificuldade de acessar os serviços físicos de atendimento, é o aumento de 3,9% de procura pelos serviços de atendimento das polícias militares, o disque 190.

Além disso, algumas campanhas foram criadas pela mídia e por órgãos como o Conselho Nacional de Justiça - CNJ, como a Campanha Sinal Vermelho, por exemplo. Mas ainda não existem dados para comprovar a eficácia destas ações.

 

 

IHU On-Line – Quais têm sido as ações produzidas pelo poder público em âmbito regional e nacional no combate à violência doméstica? Depois da pandemia houve alguma ação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para frear a violência doméstica?

Fernanda Vasconcellos – Considerando ações produzidas pelo poder público no âmbito federal, posso responder categoricamente que qualquer ação que seja apresentada como de enfrentamento da violência contra as mulheres e/ou de proteção às mulheres em situação de violência não passa da construção de discursos vazios de práticas. E também posso garantir que isso não ocorreu por falta de amparo de pesquisas realizadas em território nacional ou pela falta de conhecimento: antes mesmo da entrada em vigor da Lei Maria da Penha, muitos estudos sérios sobre a temática foram realizados e, depois dela, mais pesquisas ainda (muitas delas financiadas, inclusive, por órgãos do governo federal).

Podemos perceber um esvaziamento de políticas públicas transversais já desde 2013/2014. Mas creio que tenhamos chegado a bem perto do fundo do poço nos últimos dois anos, quando, além de não dar atenção à questão da violência contra a mulher, quando faz qualquer movimento acaba por reforçar a produção de discursos sobre papéis e expectativas de gênero e não de garantir direitos de proteção e não violência. Minha impressão é que retrocedemos muito em relação às políticas públicas de enfrentamento e proteção, em relação à abertura do debate sobre o tratamento da questão da violência contra a mulher por vias que não só o Direito Penal. Deixou-se de lado qualquer perspectiva que não aquela que reforça a ideia de que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”.

No âmbito estadual, há uma tentativa por parte da Polícia Civil do RS em qualificar o atendimento, em capacitar profissionais responsáveis pela investigação dos casos que chegam ao conhecimento da instituição. Creio que isso ocorra muito pelo esforço da Chefe de Polícia, delegada Nadine Anflor, que foi por muitos anos titular da Delegacia Especializada no Atendimento às Mulheres de Porto Alegre.

 

 

IHU On-Line – Como a senhora interpreta a midiatização de casos de violência contra a mulher, como, por exemplo, o caso da blogueira Mariana Ferrer? Até que ponto essa repercussão ajuda e a partir de que ponto ela produz outros tipos de violência contra a mulher?

Fernanda Vasconcellos – Interpreto a midiatização dos casos de violência contra a mulher como algo muito importante, quando realizado de modo cuidadoso, através da apresentação de fatos. Falo da apresentação de fatos, porque costumam ilustrar realidades vivenciadas por mulheres cujas identidades são apresentadas e algumas das características de suas trajetórias de vida demonstradas ao público.

Quando temos a possibilidade de abrir espaços de debate nos âmbitos privados (em nossas casas, com nossas famílias e amigos) sobre a temática da violência contra a mulher, creio que ganhemos mais chances de ultrapassar algumas das expectativas de gênero (que, como citei anteriormente, estão diretamente relacionadas com as violências sofridas). Do meu ponto de vista, é importante que a mídia dê nomes às violências sofridas e aos contextos em que ocorreram, porque ilustra a realidade de milhares de outras mulheres que vivenciam experiências parecidas e não observam as mesmas como violentas (seja, talvez, por não conhecer seus direitos à proteção e à não violência, seja por terem internalizado as mesmas expectativas de gênero e se culpabilizem por suas experiências) e pode sim estimular uma análise crítica destas realidades.

 

 

Dar visibilidade e nominar as diversas violências cotidianas que nós mulheres infelizmente estamos acostumadas a vivenciar (e muitas vezes naturalizamos, já que são geracionais, fazem parte das nossas histórias) é algo que me parece essencial para encararmos de frente o problema e para que entendamos que os padrões de culpabilização que estamos acostumadas a vivenciar são absurdos e extremamente perversos.

O debate, a análise crítica, a desnaturalização de padrões e expectativas de gênero e culpabilização devem ser pensados como ferramentas essenciais para o enfrentamento das violências de gênero. Sem estas ferramentas não há mudança e o sistema de justiça criminal seguirá fadado a enxugar gelo, uma vez que, sozinho, certamente não resolverá o problema.

 

 

IHU On-Line – Podemos dizer que o Brasil vive, há tempos, uma pandemia de violência contra a mulher?

Fernanda Vasconcellos – Se considerarmos pandemia como a disseminação mundial de uma epidemia (substantivo conceituado no dicionário Houaiss como “doença transitória”), imagino que seja bastante controverso relacionar esta ideia à violência contra a mulher. A não ser que recorrêssemos a um exercício de imaginação e considerássemos como uma epidemia que vem sendo vivida em nosso território desde o Brasil colonial, quando legalmente o patriarca da família possuía poder de mando sobre a vida e morte de todos(as) aqueles(as) que faziam parte do núcleo familiar, assim como de suas propriedades (e aqui me refiro ao poder de vida e morte relacionado aos seus escravos também).

Dentro desta linha de raciocínio, teríamos de admitir que, mesmo com um problema seríssimo, que atinge milhares de mulheres anualmente (e com níveis crescentes), as autoridades nacionais mostram-se tradicional e completamente incapazes de, mesmo com a produção legislativa sendo modificada, enfrentar o problema. E ainda: possivelmente o interesse em encarar de frente o problema não seja historicamente muito substancial... Se vivemos historicamente uma epidemia de violência contra a mulher no Brasil, podemos concluir que “alguns testes” para uma “possível vacina” até começaram a ser realizados a partir de mudanças legais e políticas públicas de enfrentamento e prevenção (desmanteladas nos últimos anos), mas que, sem sombra de dúvidas, a partir do avanço do conservadorismo e desinteresse das autoridades, tais “testes” foram paralisados.

Em se tratando da questão da violência contra a mulher no contexto brasileiro atual, finalizando, creio ser possível afirmar que lidamos com dois problemas urgentes (sendo o segundo um enorme entrave para o real enfrentamento da questão): a pandemia de Covid-19 e o pandemônio que nos (des)governa.

 

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