"A tradicional desconfiança social da mulher que sofre violência propicia o contexto que permite a formação de estereótipos discriminatórios. No caso da violência sexual, é frequente, por exemplo, questionar o comportamento da vítima, não só no momento da agressão; indagar sobre a roupa que ela vestia e o lugar que frequentava; afirmar que a denúncia tem motivações ocultas, como econômica, vingança etc", escreve Emanuela Cardoso Onofre de Alencar, doutoranda na Facultad de Derecho da Universidad de Barcelona – UB, professora no Instituto Universitario de Estudios de la Mujer, da Universidad Autónoma de Madrid – IUEM-UAM e pesquisadora, em artigo publicado por Justificando, 11-11-2020.
Quando o sistema de justiça não atua com a diligência devida na realização de seus procedimentos, tanto na etapa de investigação policial quanto nos posteriores atos judiciais, e permite que sejam usados estereótipos discriminatórios, dificulta o acesso à justiça e discrimina. Este problema é especialmente preocupante nos casos de violência contra as mulheres por razões de gênero, pela mensagem que envia às vítimas e à sociedade de uma forma geral.
Um caso recente que provocou bastante discussão mostra uma vez mais a necessidade de olhar com lupa a justiça brasileira por discriminar no acesso à justiça as mulheres que sofrem violência por razões de gênero.
Em dezembro de 2018, uma jovem catarinense denunciou à polícia haver sofrido violência sexual em um clube de praia de Florianópolis. Ante o avanço lento das investigações, em maio de 2019 tornou seu caso público nas redes sociais, como uma forma de pressionar e evitar que o seu se tornasse um caso a mais sem investigar ou com uma investigação deficiente, fadado a aumentar uma lista de denúncias arquivadas. Trata-se de Mariana Ferrer. A partir desse momento, as investigações sobre o caso avançaram, e a polícia identificou como principal suspeito o empresário paulista André de Camargo Aranha. O andamento deste caso, em suas diferentes etapas, não está isento de controvérsias.
Na audiência de instrução realizada por videoconferência, o advogado de defesa Claudio Gastão da Rosa Filho acusou Mariana, dentre outras coisas, de tentar lucrar-se com o caso em Instagram. Como se fosse fácil para uma mulher expor socialmente sua experiência de agressão sexual, especialmente em uma sociedade machista como a brasileira, onde o mais provável é que seu comportamento e seu relato sejam questionados. O estereotipo da mulher que mente sobre o estupro para obter benefícios econômicos é parte do imaginário sobre casos de violência sexual. E, com frequência, como no caso de Mariana, é parte da estratégia de defesa do acusado. Vale destacar que neste caso, quando ela denunciou a agressão à polícia, não sabia quem era o agressor. Foi a polícia quem identificou, meses depois, como principal suspeito Camargo Aranha. Isso sugere a fragilidade da acusação do advogado, e que a estratégia é questionar a credibilidade da vítima, usando um estereótipo discriminatório.
O advogado, além de sugerir as motivações econômicas da vítima, usou também fotos de seu trabalho como modelo para pôr em dúvida seu relato de agressão – insinuando que o ato sexual foi consentido – e atacar sua credibilidade. Que as fotos mostradas na audiência nada tenham a ver com os fatos objeto do processo, parece não importar ao advogado. Ao estereotipo da mulher mentirosa que quer obter benefícios econômicos, soma-se, uma vez mais, a tática frequente da defesa em casos de violência sexual: questionar a credibilidade da vítima para desacreditar seu relato.
Tão grave quanto o uso de estereótipos de gênero discriminatórios na audiência foi a passividade dos representantes do Estado – o juiz e o promotor de justiça, e também o defensor da vítima -: permitiram que o advogado, de forma agressiva e nada ética, usasse em um órgão do sistema de justiça estereótipos discriminatórios, naturalizando assim uma percepção negativa e discriminatória de uma mulher que sofre violência sexual, e permitindo que esse tipo de percepção possa influir em seu juízo.
No caso da Mariana Ferrer, não só é problemático esse incidente na audiência. Outros fatos são pelo menos chamativos. 1) Houve a troca do delegado que iniciou as investigações – e a posterior recomendação do primeiro promotor de justiça de investigar sua atuação. As investigações só avançaram a partir de maio de 2019. 2) As imagens do sistema de vídeo-segurança do clube catarinense onde o suposto delito aconteceu – apesar de serem 37 câmeras – haviam desaparecido quando finalmente foram solicitadas pela polícia. 3) Houve a troca do promotor de justiça em uma etapa posterior ao oferecimento da denúncia. O segundo promotor apresentou alegações finais com uma interpretação distinta da elaborada na denúncia, e pediu a absolvição do acusado. 4) O acusado pelo estupro, quem ocupa uma posição socioeconômica alta e, em depoimento, reconheceu ser amigo do responsável legal do clube catarinense, mudou sua versão dos fatos: de afirmar incialmente que não havia tido nenhum contato físico com Mariana, disse depois, quando um exame pericial reconheceu que o material genético encontrado na roupa da vítima correspondia com o seu, que havia tido de forma consentida contato sexual com ela. [1]
Não quero aqui centrar-me no caso da Mariana; destacar os aspectos acima é suficiente. Parto dele para oferecer aos leitores algumas reflexões sobre o problema de usar estereótipos de gênero discriminatórios no sistema de justiça, especialmente nos casos de violência contra as mulheres por razoes de gênero.
A tradicional desconfiança social da mulher que sofre violência propicia o contexto que permite a formação de estereótipos discriminatórios. No caso da violência sexual, é frequente, por exemplo, questionar o comportamento da vítima, não só no momento da agressão; indagar sobre a roupa que ela vestia e o lugar que frequentava; afirmar que a denúncia tem motivações ocultas, como econômica, vingança etc. Essas percepções provocam dúvidas sobre a credibilidade da vítima e a veracidade de seu relato, e fortalecem a ideia de que ela pode estar mentindo. E se ela mente e/ou oculta suas motivações, o escrutínio da investigação recai sobre ela, o que pode influir na atitude indiferente e pouco diligente de quem tem o dever de investigar e de julgar.
Acadêmicos [2] e órgãos internacionais de proteção de direitos humanos têm feito esforços relevantes para mostrar como o uso de estereótipos discriminatórios, somado à falta de diligencia devida na investigação e no processo de casos de violência contra as mulheres, discriminam as vítimas no acesso à justiça e vulneram direitos.
Há anos o Comitê sobre a eliminação da discriminação contra a mulher (Comitê da CEDAW) chama a atenção sobre como certos estereótipos dificultam a promoção da igualdade entre homens e mulheres, limitam ou vulneram o exercício de direitos e geram discriminações. Em suas recomendações gerais mais recentes, e também em algumas decisões de casos individuais, destaca os efeitos discriminatórios do uso de certos estereótipos no sistema de justiça.
Na Recomendação Geral n. 33/2015 (parágrafo 26), o Comitê da CEDAW reconhece que os estereótipos discriminatórios representam um obstáculo no acesso à justiça. Adverte que a estereotipia distorce a compreensão dos fatos e influi na interpretação e na aplicação das normas, contribuindo para decisões baseadas em estereótipos, não nos fatos relevantes do caso nem na interpretação imparcial das normas. Destaca que é frequente o uso de estereótipos sobre o comportamento das mulheres, o que prejudica aquelas que não encaixam na imagem de “vítima ideal”. Como resultado, os estereótipos afetam a credibilidade das mulheres.
Na Recomendação Geral n. 35/2017 (parágrafo 26,c), recorda que os órgãos judiciais têm o dever de garantir que todos os procedimentos judiciais relativos à denuncia de violência contra as mulheres sejam imparciais, justos e que não estejam influenciados por estereótipos discriminatórios nem por uma interpretação discriminatória das normas jurídicas. “A aplicação de noções preconcebidas y estereótipos do que configura a violência por razoes de gênero contra a mulher, de quais deveriam ser a resposta da mulher a essa violência e do critério de valoração da prova necessário para fundamentar sua existência podem afetar os direitos da mulher à igualdade ante a lei e a um juízo imparcial e um recurso efetivo […]”.
Em sintonia com essa posição, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos também tem dado visibilidade aos efeitos discriminatórios de certos estereótipos no sistema de justiça. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos elaborou relatórios sobre a discriminação no acesso à justiça, nos quais indica como a estereotipia influi na falta de diligencia devida na investigação dos casos, especialmente de violência contra as mulheres por razoes de gênero, vulnera direitos humanos e gera discriminações [3]. De uma maneira similar se posiciona a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CoIDH) em diversas decisões.
Em diferentes oportunidades, o Comitê da CEDAW e a CoIDH advertem que, em alguns Estados, ainda que a legislação seja adequada para combater atos de violência contra as mulheres, a interpretação e aplicação das normas podem ser demasiado restritivas e estar influenciada por estereótipos.
Alguns pontos são objeto atenção nas decisões desses órgãos. Consideram que quando policiais, promotores de justiça, juízes ou outros membros do sistema de justiça expressam – ou permitem a expressão de – estereótipos discriminatórios, é frequente: a) as atitudes e as condutas negligentes ou discriminatórias com relação à vítima ou seus familiares no momento da denúncia; b) a falta de rapidez e diligência no recebimento da denúncia, uma etapa fundamental para o desenvolvimento da investigação; c) a demora e as irregularidades na investigação dos casos; d) a desqualificação da vítima durante a investigação ou o processo; e) a passividade para emitir medidas de proteção da vítima; f) a eleição seletiva das provas e sua valoração limitada, ou a exigência de provas com estândares altos; g) a dilação injustificada do processo; h) as decisões que racionalizam os estereótipos para justificar atos de violência. [4]
O trabalho do Comitê da CEDAW e da CoIDH tem dado visibilidade a um círculo vicioso de violência contra as mulheres que dificulta o combate desse problema. Ambas mostram que os vínculos entre a discriminação e a violência por razoes de gênero, somadas à ação ineficaz do Estado na investigação e no processo dos casos, produzem a impunidade dos agressores, racionalizam e justificam a violência contra as mulheres, e expressam à vítima e à sociedade tolerância e aceitação social do fenômeno, o que perpetua a violência e gera desconfiança no sistema de justiça. Nessa dinâmica, os estereótipos discriminatórios cumprem um papel importante. A falta de diligência do Estado e o uso de estereótipos comprometem o conhecimento da verdade e configuram uma forma de discriminação no acesso à justiça.
Como afirma de maneira reiterada a CoIDH, é fundamental reconhecer, visibilizar e rejeitar o uso de estereótipos de gênero discriminatório. Só assim é possível tentar modificar as condições socioeconômicas que permitem e perpetuam a subordinação social das mulheres e a discriminação no acesso à justiça daquelas que sofrem violência.
[1] Cfr. Portal ND+, “Contradições e sumiço de imagens: as investigações no caso Mariana Ferrer”, 26 de julho de 2019, disponível aqui. (visto 04.11.2020); Portal ND+, “Caso Mariana Ferrer: empresário do ramo esportivo é indiciado por estupro de vulnerável”, 26 de julho de 2019, disponível aqui. (visto 04.11.2020); Portal ND+, “Caso Mariana Ferrer: conheça os detalhes do processo que absolveu o empresário”, 12 de setembro de 2020; disponível aqui. (visto 04.11.2020).
[2] Ver, p. ex., COOK, Rebecca; CUSACK, Simone. Gender Stereotyping. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 2010; TIMMER, Alexandra. “Toward an Anti-Stereotyping Approach for the European Court of Human Rights”, Human Rights Law Review, v. 11, n. 4, 2011; ALENCAR, Emanuela Cardoso O. de. “Violencia por razón de género en la pareja y estereotipos en el sistema de justicia: lecciones del Comité de la CEDAW”, Femeris, vol. 4, n.3, 2019.
[3] Ver, p. ex., Acceso a la justicia para las mujeres víctimas de la violencia en las Américas, OEA/Ser./L/V/II, Doc. 68, 20 ene. 2007, disponivel aqui. (acesso 07.11.2020); Acceso a la justicia para las mujeres víctimas de la violencia sexual en Mesoamérica, OEA/Ser./L/V/II, Doc. 63, 9 dic. 2011, disponivel aqui. (acesso 07.11.2020)
[4] Ver, p. ex., no Comité da DECAW: caso Anna Belousova vs. Kazajstán (CEDAW/C/61/D/45/2012, decidido 13.07.2015); caso J.I. vs. Finlandia (CEDAW/C/69/D/103/2016, decidido 05.03.2018); caso V.K. vs. Bulgaria (CEDAW/C/49/D/20/2008, decidido 15.10.2008); caso L.R. vs. República de Moldava (CEDAW/C/66/D/5872013, decidido 28.02.2017); caso Ángela González Carreño vs. España (CEDAW/C/58/D/47/2012, decidido 16.07.2014); caso O.G. vs. Federación de Rusia (CEDAW/C/68/D/91/2015, decidido 06.11.2015), párr. 7.3; caso S.T. vs. Federación de Rusia (CEDAW/C/72/D/65/2014, decidido 25.02.2019); caso X. vs. Timor Leste (CEDAW/C/69/D/88/2015, decidido 26.02.2018); caso Karen Tayag Vertido vs. Filipinas (CEDAW/C/46/D/18/2008, decidido 16.07.2010); caso R.P.B. vs. Filipinas (CEDAW/C/57/D/34/2011, decidido 21/02/2014). Na CoIDH ver, p. ex.: caso González y otras (“campo algodonero”) vs. México (Excepción preliminar, fondo, reparaciones y costas), sentencia 16.11.2009; caso Veliz Franco y otros vs. Guatemala (Excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas), sentencia 19.05.2014; caso Espinoza González vs. Perú (Excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas), sentencia 20.11.2014; caso Velásquez Paiz y otros vs. Guatemala (Excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas), sentencia 19.11.2015; caso Gutiérrez Hernández y otros vs. Guatemala (Excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas), sentencia 24.08.2017; caso V.R.P., V.P.C. y otros vs. Nicaragua (Excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas), sentencia 8.03.2018; caso López Soto y otros vs. Venezuela (Fondo, reparaciones y costas), sentencia 26.09. 2018; caso Mujeres víctimas de tortura sexual en Atenco vs. México (Excepción preliminar, fondo, reparaciones y costas), sentencia 28.11.2018.