Para especialistas, um sistema de saúde único e universal pode fazer a diferença. Maioria dos países da Europa não contam com um sistema nesse molde
Para muitos especialistas em políticas de saúde pública, o Brasil, mesmo sendo um país em desenvolvimento, tem uma significativa vantagem sobre as grandes nações europeias e os Estados Unidos: o Sistema Único de Saúde - SUS. Isso reitera a afirmativa de muitos técnicos internacionais, que consideram o SUS um modelo por se constituir como um sistema universal de saúde que compreende todo um país. “O SUS é o elemento central no enfrentamento da pandemia entre nós”, destaca o médico sanitarista Reinaldo Guimarães. Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele explica que “o fato de os primeiros casos terem sido diagnosticados em hospitais privados decorre de os primeiros pacientes terem sido pessoas de posses que são clientes desses hospitais e que vieram de países europeus. Conforme a onda epidêmica vai se tornando comunitária, com a circulação do vírus de pessoa a pessoa dentro do país, o papel do SUS vai se tornando evidente e central”.
Guimarães ainda detalha que o SUS vai muito além do atendimento a doentes, pois compreende um sistema que articula a rede básica com unidades de urgência, emergência, terapia intensiva e internação. No caso do coronavírus, pode-se perceber essa articulação pelo fato de que muitas pessoas com casos mais leves da doença estão em isolamento dentro das próprias casas, sendo assistidas por equipes e profissionais como os que atuam em unidades básicas de saúde. O investimento nessas redes pode, segundo o sanitarista, ser chave para que os hospitais e todo o sistema de saúde brasileiro não entrem em colapso. “Há muita ênfase quanto à oferta de leitos de UTI e de equipamentos de alta tecnologia. São importantes, mas uma boa rede básica funcionando poderá, entre outras coisas, racionalizar a utilização dessas ferramentas mais complexas”, aponta.
O médico considera que a eclosão dessa pandemia não pode ser tomada como uma surpresa absoluta, pois “com um espaço de alguns anos entre um e outro episódio, temos tido epidemias virais com acometimento predominantemente respiratório há várias décadas. Principalmente produzidas por variedades de vírus Influenza (gripe), mas também de outros tipos como os Corona”. Mas reconhece que o episódio do coronavírus deve deixar algumas marcas e alertas para o sistema de saúde do mundo todo. “Um grande problema é o enfraquecimento político e financeiro da Organização Mundial da Saúde - OMS, que vem sendo fragilizada há muitos anos, em um processo que atinge toda a arquitetura multilateral das Nações Unidas. Quanto mais se enfraquece a OMS, maior é a imposição de normas e procedimentos oriundos dos países mais ricos do Hemisfério Norte”, aponta. E conclui: “isso não é saudável para um sistema global de cuidado à saúde”.
Reinaldo Guimarães (Foto: Fiocruz)
Reinaldo Felippe Nery Guimarães é médico sanitarista graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia - UFBA. Instituiu a Política Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde, iniciando um processo de autonomia nacional na produção científica e inovação tecnológica. Foi diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde e vice-presidente de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Fundação Osvaldo Cruz - Fiocruz.
IHU On-Line – Como avalia as ações do governo brasileiro para tentar conter o avanço da Covid-19? Quais as potencialidades e as fragilidades das medidas que vêm sendo adotadas pelas autoridades na contenção e no tratamento da doença?
Reinaldo Guimarães – As nossas vantagens dizem respeito a estarmos sendo atingidos após as experiências da China, da Itália, dos Estados Unidos etc. Estamos aproveitando as lições aprendidas nesses países. De modo geral, as equipes profissionais de servidores no Ministério da Saúde e em várias Secretarias nos estados têm tido protagonismo na proposição de medidas, e seus chefes têm, de modo geral, acatado suas sugestões.
Nossa desvantagem é a política de arrocho financeiro-orçamentário instituída pelo governo federal, cuja mais perniciosa expressão é a Emenda Constitucional 95, que provoca a diminuição real dos gastos públicos. Na saúde, isso significou uma frustração financeira de cerca de R$ 20 bilhões desde o início da vigência dessa emenda.
IHU On-Line – Qual a centralidade do Sistema Único de Saúde - SUS nessas ações?
Reinaldo Guimarães – O SUS é o elemento central no enfrentamento da pandemia entre nós. O fato de os primeiros casos terem sido diagnosticados em hospitais privados decorre de os primeiros pacientes terem sido pessoas de posses que são clientes desses hospitais e que vieram de países europeus. Conforme a onda epidêmica vai se tornando comunitária, com a circulação do vírus de pessoa a pessoa dentro do país, o papel do SUS vai se tornando evidente e central.
IHU On-Line – Em que medida esse episódio pode/deve servir para reiterar e evidenciar a importância do SUS e a emergência de robustos investimentos em saúde pública?
Reinaldo Guimarães – Se não houver um aporte suplementar urgente de recursos financeiros para o SUS nos estados e municípios, pode ser reforçada a falsa visão de que o SUS é ineficiente. Caso haja uma correta irrigação de recursos e as equipes técnicas continuarem a dar as cartas, a imagem do SUS pode sair fortalecida desse episódio. Espero que isso aconteça.
IHU On-Line – Quais os maiores riscos caso a doença se alastre por todo o Brasil?
Reinaldo Guimarães – Os impactos da epidemia no Brasil dizem respeito a três dimensões, com prazos distintos. As duas dimensões de curto prazo são, em primeiro lugar, o sofrimento e as mortes de pessoas, mormente idosos e suas famílias. A segunda dimensão que também ocorrerá no curto prazo é o resultado da pressão que o SUS e a saúde suplementar sofrerão com o crescimento exponencial de pessoas que a eles acorrerão. E, principalmente o SUS, que terá a maior parte da demanda. A terceira dimensão diz respeito aos efeitos de médio e longo prazo que incidirão sobre a economia das famílias, das empresas e do país, com a diminuição das atividades econômicas que ocorrerão por um prazo que não sabemos ainda qual será.
IHU On-Line – Autoridades sanitárias têm dito que os maiores riscos são de colapso no sistema de saúde. O senhor concorda com essa perspectiva? O Brasil pode viver uma situação pior que a da Itália?
Reinaldo Guimarães – Não sei se são os maiores riscos, mas certamente são um risco importante. Não creio que haverá colapso, haja vista que o SUS tem se mostrado muito resiliente em todos esses anos de privações financeiras e de frustrações orçamentárias. A intensidade do risco variará com o nível de organização dos sistemas estaduais nessa partida da epidemia. E, no caso, o nível de organização dirá respeito em grande parte à rede de cuidados básicos de saúde.
Nos locais onde houver uma rede básica organizada e funcionante e onde as autoridades de saúde orientarem as pessoas com sintomas a procurarem os postos de saúde (e não os hospitais de pronto-socorro), a coisa funcionará melhor. Onde a rede básica estiver desorganizada e o público mal orientado, poderá haver um aporte de pessoas sintomáticas às emergências hospitalares e aí as coisas irão mal.
Há muita ênfase quanto à oferta de leitos de UTI e de equipamentos de alta tecnologia. São importantes, mas uma boa rede básica funcionando poderá, entre outras coisas, racionalizar a utilização dessas ferramentas mais complexas.
IHU On-Line – O que todo esse episódio da Covid-19 revela sobre os sistemas nacional e global de saúde?
Reinaldo Guimarães – A Covid-19 não está sendo “um raio em céu azul”, isto é, não deve ser considerada um episódio inesperado. Afinal, com um espaço de alguns anos entre um e outro episódio, temos tido epidemias virais com acometimento predominantemente respiratório há várias décadas. Principalmente produzidas por variedades de vírus Influenza (gripe), mas também de outros tipos como os Corona.
Além disso, temos tido, principalmente no Hemisfério Sul, surtos importantes de doenças causadas por vírus transmitidas por artrópodes, como dengue, zika e chicungunha. O porquê desse fato, que ocorre numa etapa histórica em que se acreditava que as doenças transmissíveis haviam ficado para trás na história da humanidade, ainda não foi satisfatoriamente decifrado pela ciência. É possível que tenha algo a ver com as mudanças climáticas e/ou com a mudança da paisagem natural global pela ação humana. Mas, mesmo sem saber o porquê, é imperativo que os sistemas nacionais de saúde estejam preparados para enfrentá-las e tudo indica que não estão.
Outra lição diz respeito à própria existência desses sistemas nacionais e, a esse respeito, está claro que países que possuem sistemas universais públicos de saúde têm melhores condições de enfrentá-los do que aqueles que não têm. Neste episódio da Covid-19, vamos observar o que ocorrerá nos EUA, que não possuem um sistema de saúde desse tipo, muito embora seja um país muito rico e poderoso.
Quanto ao nível global, um grande problema é o enfraquecimento político e financeiro da Organização Mundial da Saúde - OMS, que vem sendo fragilizada há muitos anos, em um processo que atinge toda a arquitetura multilateral das Nações Unidas. Quanto mais se enfraquece a OMS, maior é a imposição de normas e procedimentos oriundos dos países mais ricos do Hemisfério Norte. No meu entendimento, isso não é saudável para um sistema global de cuidado à saúde.