Por: Patricia Facchin | 01 Dezembro 2018
Qual é o saldo das políticas públicas na trajetória macroeconômica brasileira entre 2003 e 2017? Ao responder a essa questão, a economista Lena Lavinas é categórica ao afirmar que elas não foram suficientes para atender às demandas das famílias por mais bem-estar e segurança socioeconômica. As chamadas “classes médias” que estavam em ascensão, pondera, “permaneceram vulneráveis”, porque “quanto mais ganhavam, mais dispendiam, pois apesar de a oferta de emprego estar em alta, não houve provisão pública em educação e saúde que lhes desse um certo fôlego. As classes médias têm gastos crescentes para se manterem como classe média, manterem seu status. São despesas com pagamento de escola e universidade para os filhos, aluguel, despesas de saúde que, no Brasil, são majoritariamente out of pocket (ou seja, independem de adesão a plano de saúde)”.
Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU participando do “II Ciclo de Palestras Trajetória da Política Econômica Brasileira 2003-2017. Crescimento, crise e novas possibilidades”, Lena Lavinas explica a crise mundial do Estado de bem-estar social e critica o papel da financeirização na formulação e desenho das políticas sociais. “As políticas sociais de combate à pobreza e o microcrédito são os maiores mecanismos de financeirização da pobreza no mundo”, adverte. “Para termos uma ideia, existem hoje sete bilhões e meio de pessoas no mundo. Dois bilhões e meio de pessoas recebem um benefício de combate à pobreza tipo Bolsa Família, de forma regular”, exemplifica. Segundo ela, a função do benefício assistencial é garantir novos vínculos com o setor financeiro, desenvolvidos a partir de estratégias agressivas de inclusão financeira. “Como o benefício é de valor pequeno, ao precisar de mais dinheiro para viver, o tal beneficiário do programa assistencial vai ao banco e toma um empréstimo. Em contrapartida, o banco passa a retirar automaticamente do benefício pago pelo Estado, antes mesmo que ele caia na conta do beneficiário, o valor que corresponde ao reembolso mensal da dívida. A relação é direta entre banco e Estado, o que reduz ou mesmo elimina riscos para o setor financeiro”, relata.
Somente no caso brasileiro, informa, quase um milhão e meio de famílias que recebem o benefício do Programa Bolsa Família estão inadimplentes com empréstimos que tomaram. “Isso acontece porque, primeiro, o benefício é baixíssimo, e ninguém pode viver com um benefício médio de 187 reais mensais; segundo, porque as pessoas não têm serviços públicos de qualidade que lhes permitam não precisar comprar um remédio, um caderno, óculos, ou o que for necessário. Para quem é pobre, qualquer despesa além das incontornáveis, que já não são suficientes, é muito grande”, menciona.
Nesse contexto, a economista também questiona o efeito de políticas como a renda básica universal, que é defendida por diferentes setores da sociedade. “De que serve uma renda básica universal para todos se não houver provisão pública de saúde, educação, segurança?” Lena lembra ainda que “os mais recentes defensores” da renda básica de cidadania no mundo são “o setor financeiro, o Goldman Sachs, a Standard & Poor's” e os “cofundadores do Facebook, [Mark] Zuckerberg e Chris Hughes”.
Embora a proposta de uma renda básica universal seja uma “utopia que não podemos abandonar”, pontua, “não adianta dar renda básica para todo mundo, 500 dólares por mês, para que cada um pague seu plano de saúde, a escola etc., porque não vai dar para cobrir necessidades crescentes. O custo de vida é, por suposto, muito superior ao de uma renda básica”. Nesse contexto, defende, a garantia de um Estado de bem-estar social eficiente depende de “elevar fortemente a produtividade do trabalho. Elevando a produtividade do trabalho, as pessoas poderão pagar mais impostos, a economia crescerá e será possível financiar o que precisamos. Então, temos que repensar como fazer isso. Sem abandonar, contudo, o compromisso de assegurar a todos uma provisão pública universal daquilo que nos é essencial”.
Lena Lavinas (Foto: Ricardo Machado | IHU)
Lena Lavinas é graduada em Economia pelo Institut d’Etudes pour le Développement Economique, Université Paris-I, França. É mestra e doutora em Estudos sobre a América Latina pelo Institut de Hautes Etudes d’Amérique Latine, Université Paris-III, França. Nos últimos anos foi visiting researcher and visiting scholar em várias universidades nos Estados Unidos, Alemanha e França. No Brasil, é professora titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Entre suas pesquisas mais recentes, destacam-se o livro The Takeover of Social Policy by Financialization. The Brazilian paradox (New York: Palgrave Macmillan, 2017) e os artigos “Brasil Anos 2000: a política social sob regência da financeirização” (Novos Estudos, vol. 37-2, 191-211, Mai-Ago 2018, São Paulo: CEBRAP), publicado em coautoria com Denise Gentil, e “Transformações dos sistemas de saúde na era da financeirização. Lições da França e do Brasil” (In Ciência & Saúde Coletiva 23(7): 2147-2158, 2018), publicado com Ana Carolina Cordilha.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual sua avaliação do resultado das eleições presidenciais?
Lena Lavinas – Tivemos eleições absolutamente singulares desde o início do nosso processo de redemocratização. Pela primeira vez, vemos os partidos tradicionais, que participaram do grande acordão que foi feito na transição da ditadura para a democracia, saírem completamente chamuscados dessa eleição. Isso é uma novidade e é a expressão de um desgaste profundo, definitivo e irreversível do que foram esses 30 anos de transição. Estamos entrando em uma nova fase que, espera-se, seja finalmente de consolidação da democracia brasileira. Mas os resultados dessa eleição também anunciam riscos iminentes para essa nova fase de consolidação democrática.
Embora o pleito tenha funcionado muito bem, com resultados rapidamente divulgados e a certeza de que não houve fraude, os resultados em si apontam para uma mudança do ponto de vista da correlação de forças, com forças conservadoras ganhando peso, as quais têm, reiteradamente, insistido e apontado não terem compromisso com as regras democráticas. Forças que vêm também, reiteradamente, reproduzindo formas ameaçadoras de funcionar, colocando em xeque a Constituição, a Carteira de Trabalho, todas as leis trabalhistas, sendo representadas por pessoas que têm sinalizado que talvez a arma seja para elas a melhor forma de resolver os muitos conflitos que nos cercam.
Portanto, a polarização política que temos hoje é patente e rompe com um perfil de acomodação de interesses que prevaleceu em boa parte dos anos de governo do PT. De um lado, estavam forças democráticas representadas por [Fernando] Haddad, que sempre se ativeram aos princípios da democracia brasileira, ao respeito à Carta Magna, às regras do jogo eleitoral e às instituições. E, por outro lado, tivemos os que ganharam as eleições, mas que sinalizam que tudo isso pode se tornar letra morta, caso seja de seu interesse.
IHU On-Line – Qual é o significado dessa derrota para os partidos tradicionais?
Lena Lavinas – O sinal da sociedade é o seguinte: “não queremos mais do mesmo”. Por incrível que pareça, existe uma reação em grandíssima escala. A sociedade diz que tudo que está aí pode ser jogado fora e clama por algo novo, mesmo que o risco seja alto, mesmo que seja desconhecido. Vejamos o caso do PSL: trata-se de um partido que nas eleições de 2010 e 2014 tinha apenas um deputado federal eleito, e agora já tem 52. Isso mostra que o partido de Bolsonaro sinaliza uma nova estratégia de representação política, reunindo interesses que não conseguiam se constituir nos partidos existentes.
Com isso, vemos, por exemplo, um partido como o PSDB, que deveria ser o representante da social-democracia brasileira, completamente esfacelado. O partido passou recentemente por uma reflexão interna por parte dos seus membros. O senador Tasso Jereissati afirmou ser preciso fazer uma autocrítica do passado recente, mas essa autocrítica foi rechaçada internamente. Qual é a consequência? A sociedade rechaçou também esse partido que não foi capaz de se renovar ao assumir seus erros. O MDB também encolheu bastante e grandes lideranças do MDB e do PT não conseguiram se reeleger em nível nacional.
De um lado, temos a rejeição da velha política, da política oligárquica, que se reproduz em todos os lugares — isso também foi rechaçado pela população. [Romero] Jucá e Eunício de Oliveira, da cúpula do Senado, não se reelegeram, tampouco outros personagens da tradicional política brasileira. Aqueles que foram retirados à força do cenário político por envolvimento com ilícitos tentaram emplacar seus filhos como legítimos representantes, mas não conseguiram ir adiante. Há uma contestação da estratégia das “dinastias” familiares aplicada por Eduardo Cunha, Sérgio Cabral e [Jorge] Picciani no Rio de Janeiro, por exemplo. Esse processo de grande radicalização trouxe, portanto, alguns aspectos positivos, como ter varrido as velhas forças políticas de um centrão desgastado, descomprometido e corrupto.
Porém, mesmo forças novas e promissoras como a Marina [Silva], diante dos impasses da Rede em ter um posicionamento mais claro, consistente e estratégico, acabaram por desperdiçar seu enorme capital político. Nessas eleições, Marina chegava portadora de 20 milhões de votos que se pensava cativos, e acabou atrás do cabo Daciolo. É absolutamente dramático, um país como o Brasil, que passou por um processo de reprimarização da sua economia, onde a indústria extrativista é poderosa e os interesses do agronegócio têm um impacto extremamente negativo no meio ambiente e na defesa dos direitos das populações originárias, não ter um partido que possa representar o futuro, pautando as questões ambientais, de defesa do planeta e das condições de reprodução da natureza. Essa orfandade nos custará caro e pode hipotecar nosso futuro, considerando-se a iminência do desastre que se avizinha por força do aquecimento global. Se o Brasil não fizer sua parte, as consequências podem ser ainda mais adversas e de difícil recuperação.
Marina é uma pessoa digna, tinha propostas interessantes, resgatou a dimensão ética na política, mas isso não foi suficiente. A ética em si, sozinha, sem um programa, sem a capacidade de negociar e fazer alianças, sem inovar, sem convencer, não é suficiente, e a população entendeu isso.
Temos muitos aprendizados a tirar dessa eleição, embora seja uma eleição cujos resultados mostraram-se inquietantes. Primeiro, porque surge esse discurso do não respeito à regra democrática, presente na disputa presidencial e também em nível estadual. O Rio de Janeiro, por exemplo, é um estado onde o deputado federal e o deputado estadual que tiveram o maior número de votos e os dois senadores eleitos são ligados ao partido de Bolsonaro. O estado do Rio de Janeiro, que sempre foi um estado de vanguarda, onde a cultura é muito presente, inclusive como atividade econômica de peso, acabou o primeiro turno com dois senadores ligados ao que há de mais reacionário e de mais atrasado na política. É uma mudança radical. Também o novo governador integra esse alinhamento ao chamado bolsonarismo. Então, vemos o espraiamento dessas forças conservadoras que estão declaradamente ligadas ao lobby da bala, ao lobby do agribusiness [agronegócio] e ao lobby dos evangélicos. Eles conseguiram definir estratégias na “moita”, foram muito eficazes e estão saindo muito fortalecidos dessas eleições, embora sua base social seja difusa. Nem todos que elegeram Bolsonaro e membros do PSL são adeptos da nova “doutrina” bolsonarista!
Há três ou quatro anos jamais falaríamos de uma extrema direita em movimento no Brasil, porque ela não existia organicamente. Hoje ela ganha contornos muito definidos nas posições de um candidato como Jair Bolsonaro e de todos aqueles que o apoiam e compõem o seu partido. Mas se expressa também em uma reorganização política dentro do Congresso, dentro da República e isso é extremamente preocupante, porque estamos elegendo forças retrógradas e, ao mesmo tempo, defensoras de um projeto ultraliberal. Os ultraliberais querem acabar com o Estado, tirar o Estado de tudo. Condenam valores social-democratas, como disse o consultor econômico de Jair Bolsonaro, o Sr. Paulo Guedes. Pretendem aplicar no Brasil um ideário neoliberal que não funcionou no Chile. Lá fecharam por completo a previdência pública e, dez anos depois, até o Banco Mundial reconheceu que aquele experimento não tinha dado certo. Tiveram de retornar ao seguro social público. Privatizaram o ensino e tiveram de recuar mais tarde.
Se, no Brasil, tais forças conservadoras conseguem se eleger pelo voto direto, imagine a legitimidade que não vão carregar para proceder às mudanças que quiserem. Teremos um horizonte sombrio pela frente, que pode desarticular os princípios ordenadores dos direitos individuais e coletivos.
IHU On-Line – Já é possível especular como as políticas sociais possivelmente serão tratadas daqui para frente? A lógica da financeirização das políticas públicas, a qual a senhora criticou durante os governos petistas, tende a permanecer?
Lena Lavinas – A proposta de governo de Bolsonaro não foi, durante as eleições, uma proposta de governo. Não por acaso, eles puderam desdenhar debates, pois de fato nada tinham de consistente para apresentar. Eu, por acaso, li o programa dele: nada mais que um Power Point. O programa de Ciro [Gomes] era um programa muito bem estruturado, juntamente com o do PSOL. Depois tinha o programa do Partido dos Trabalhadores. Os três eram programas com ideias, diagnósticos e propostas.
No entanto, o programa de Bolsonaro não tinha nada disso: trazia grandes frases de efeito, dados que não são consistentes com a realidade, ou seja, o plano apresentava um pano de fundo, bastante impreciso. Então, é muito grave imaginarmos que um candidato que falava apenas de valores morais, que se elevava como justiceiro contra a corrupção, não tem nenhum substrato — inclusive é uma pessoa que tem muita dificuldade de expressar ideias e caminhos — e que está muito mal assessorado. O assessor principal dele é completamente inexperiente e a inexperiência está expressa na ausência de um programa detalhado que consiga enfrentar os grandes desafios que o Brasil tem pela frente depois de quase três anos de recessão. Eles não tinham um programa de governo, e estão formando um governo para depois estabelecer as metas. Sabemos que vão desestruturar ainda mais o mercado de trabalho, vão tentar privatizar tudo o que for possível. A ideia é vender grande parte das empresas estatais para fazer caixa — o que Temer, aliás, já começou a fazer.
De outro lado, o PT negligenciou, excessivamente, as classes médias. Elas ampliaram-se, sobretudo graças à expansão de empregos na faixa de até dois salários mínimos. Mas permaneceram vulneráveis, porque sem condições de atender a todas as suas necessidades. Quanto mais ganhavam, mais dispendiam, pois, apesar de a oferta de emprego estar em alta, não houve provisão pública em educação e saúde que lhes desse um certo fôlego. As classes médias têm gastos crescentes para se manterem como classe média, manterem seu status. São despesas com pagamento de escola e universidade para os filhos, aluguel, despesas de saúde que, no Brasil, são majoritariamente out of pocket (ou seja, independem de adesão a plano de saúde).
O Brasil não tem uma oferta de moradia satisfatória e condizente com o poder aquisitivo da população — nós não temos uma política habitacional consequente há 70 anos. Não é só para os pobres que temos de ampliar a oferta de moradia popular, mas para o conjunto da população. Até porque, dado o panorama de degradação urbana das nossas cidades e suas consequências do ponto de vista da segurança pública, a política de moradia tem de ser prioritária. Não tem sido.
IHU On-Line – Nos últimos anos se discute no país qual é a possibilidade de o Estado garantir os direitos sociais determinados pela Constituição, por conta do custo econômico. Alguns avaliam que a Constituição de 88 prometeu demais em relação ao que o Estado tem condições de fazer. Outros insistem que a função do Estado é garantir tais direitos aos cidadãos. Como a senhora vê esse tipo de discussão e, em particular, essas conclusões?
Lena Lavinas – É hora de mexer na Constituição? Não. Há alguns reparos a fazer na Constituição? Talvez, mas este não é o momento político. A Carta Magna vem sendo questionada na medida em que as políticas públicas assentadas na austeridade fiscal, na prática, desautorizam-na. Não se trata de mexer em algo, alegando que não funciona. Existem problemas para que ela seja implementada, mas isso não quer dizer que ela é ruim, deficiente. Há um sistema de saúde público cuja acessibilidade tem que ser universal — é assim na França, na Inglaterra e na Alemanha. Existem distintas modalidades de fazer isso. Não é um modelo fracassado, longe disso. Temos que ver como garantir o financiamento da saúde, até porque temos receitas exclusivas para isso. O modelo de acesso público, universal e gratuito continua sendo não apenas necessário, mas possível.
O grande problema da dívida pública é a questão dos juros, que foram e que ainda são juros extremamente elevados, considerando que tivemos uma taxa de inflação muito baixa no ano passado. Vemos que o spread continua muito alto também para qualquer empresário que queira tomar crédito no banco para investir. Ao mesmo tempo, temos um atraso relativo acumulado pelo setor industrial brasileiro, que tem poucas frentes de inovação. Parte das empresas privadas nacionais se financializaram (passaram a deslocar recursos do investimento produtivo para inversões no mercado de capitais, compra de títulos da dívida pública, e aplicações financeiras de curto e médio prazo). Além disso, a produtividade do trabalho cresceu muito pouco — cerca de 1% ao ano nas últimas duas décadas. Portanto, temos problemas estruturais que têm de ser enfrentados com rigor e políticas consequentes.
Se quisermos falar de recuperação da economia, de modo que possamos ter alguns setores na indústria de ponta que venham a competir lá fora, é preciso resolver o problema da qualidade da nossa mão de obra, ainda muito ruim. Acabamos de descobrir o resultado do exame do Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB. O que ele mostra? Que em matemática e em português as médias de desempenho dos alunos nos testes variam entre 2,5 e 2,8, ou seja, estão abaixo de três, que é considerado patamar “insuficiente”. Como vamos pensar o futuro do Brasil se até hoje o Ensino Médio não é obrigatório e, além disso, é deficiente? São falhas muito graves. Não adianta colocar todo mundo na universidade se não der a essas pessoas instrumentos, meios e garantias de que elas estão aprendendo, e que tal aprendizado lhes oferece autonomia. Por que as pessoas têm nota ruim em português? Por que não conseguem entender um texto. Por que os surveys indicam que há milhões de adultos que declaram não ler um livro sequer em um ano no Brasil? Eles não leem não é porque não gostam, mas porque não entendem. Por isso não conseguem ler. É gravíssimo.
Para resolver essas questões fundamentais será preciso gastar dinheiro, investir, e para isso temos que crescer e mudar, antes de mais nada, a nossa estrutura tributária. Nós não conseguimos — nem tentamos — fazer nenhuma reforma tributária nesse período de redemocratização. Quando Lula chegou à presidência, criou uma faixa intermediária do Imposto de Renda, mas foi a única coisa que fez. O que caracterizou os governos do PT foram os bilhões de desoneração que concederam. Quando se tem, em cinco anos, um trilhão e 400 bilhões de reais de desonerações, algo está errado. Essas desonerações foram feitas sem que houvesse contrapartida por parte dos empresários em gerar emprego, em manter o nível de emprego, em investir, em elevar as exportações. Ao final se alimentou o discurso de que o Estado gasta mal com políticas sociais. Ora, as políticas sociais perderam receitas em razão de uma política irresponsável de desonerações fiscais. O problema não foi o Estado, mas o mercado, o setor privado.
Há duas reformas importantes a fazer: a reforma política e a reforma tributária. É preciso chegar a um acordo sobre o ICMS que incide sobre o consumo — 52% da carga tributária é sobre consumo. As pessoas que recebem 200 reais por mês com o Bolsa Família também pagam 52% de imposto sobre o consumo. Com isso, a renda disponível entregue a essas pessoas já pobres é bem menor. Ou seja, elas recebem metade daquilo que imaginamos que o Estado esteja dando a elas. Temos que esclarecer e mudar tudo isso. A questão fundamental neste momento é pensar o ICMS, o IVA (imposto sobre valor agregado), e fazer uma reforma importantíssima do ponto de vista do Imposto de Renda, da tributação sobre dividendos e da área financeira, que é pouquíssimo tributada no Brasil.
A reforma política, prometida desde as jornadas de Junho de 2013, acabou sendo jogada para escanteio. E agora, dada a composição ainda mais fragmentada do novo Congresso, com 30 partidos, e cada um deles com um número menor de eleitos, parece pouco provável. A cláusula de barreira deve corrigir esse excesso, mas ao final pouco vai mudar em relação ao presidencialismo de coalização que marcou a Nova República. Dizem que ela chegou ao seu término com essas eleições, mas talvez algumas de suas características essenciais ainda permaneçam por aí a nos assombrar.
Com relação às outras questões, o que estaria pendente é a reforma da Previdência. Fiquei positivamente surpresa outro dia ao ouvir [Geraldo] Alckmin dizer que não iria desvincular o piso previdenciário do salário mínimo e que continuaria assegurando aumento real de salário mínimo, se eleito presidente. O salário mínimo, que é relativamente baixo em termos de poder aquisitivo se comparado com os demais países da América Latina, ainda não chegou, em termos reais, ao valor que tinha no início de 1964, onde seria algo equivalente a 1.400 reais. Nós ainda estamos em uma fase de recuperação do mínimo, recuperação essa que foi lenta e começou lá atrás em 1994. Não se trata, portanto, de abolir o salário mínimo. Nos países em que ele foi abolido, já foi reintroduzido, como na Alemanha, porque isso gerou muita distorção em termos de mercado de trabalho, assim como gerou muita desigualdade. Pode-se começar, num primeiro momento, a dispor de recursos fiscais com políticas de retomada de crescimento, com grandes investimentos por parte do Estado e também com uma reforma tributária de peso, redefinindo por completo essa lógica que se tem, que é muito extravasada, de desonerações. Inclusive, há que rever os créditos tributários concedidos no IRPF, que se concentram majoritariamente nas mais altas rendas, reconcentrando renda e riqueza.
É verdade que o processo de financeirização das economias limitou muito a atuação do Estado. Costuma-se dizer que precisamos de um Estado Mínimo. Resta saber para quem. Talvez para atender às demandas da população, que são preceitos constitucionais no campo da cidadania. Quem define as regras do jogo para a acumulação no setor financeiro, para o processo de financeirização, para que o setor financeiro tenha os retornos mais importantes, uma lucratividade mais interessante, que retira o investimento da esfera produtiva, é justamente o Estado. É o Estado quem faz a legislação, as leis, as regras, a normatização, e, portanto, o Estado tem contribuído para isso. O Estado de pequeno não tem nada quando se trata de regular em favor do capital.
Hoje temos clareza de que tivemos políticas sociais que, do meu ponto de vista, foram completamente equivocadas porque levaram não só a um processo de endividamento das famílias, mas também de esgarçamento social. A polarização que temos hoje nas classes médias existe porque elas se sentiram lesadas; querem vingança porque acreditam que foram prejudicadas. Elas foram prejudicadas na medida em que para elas ficou cada vez mais difícil pagar pelo ensino particular, porque o ensino público é ruim, porque os gastos com saúde são crescentes, porque sempre há um idoso na família precisando de tratamento e o SUS não garante, e tampouco é satisfatório o atendimento assegurado por planos privados, cuja regulação é favorável a esses planos e a grandes corporações da saúde, embora em mãos de uma agência pública (a ANS). As classes médias no país acumularam frustrações e decepções muito grandes nos últimos anos, pois seu processo de mobilidade social ascendente foi colocado em xeque.
Ao mesmo tempo, julgamos que a política de combate à pobreza foi exitosa. Atenção: funcionou à custa de linhas de pobreza muito baixas. O Banco Mundial acabou de refazer a linha de pobreza e diz que agora é preciso aplicar aos países de renda média alta uma linha de cinco dólares/dia. Com esse novo cálculo, o número de pobres no Brasil pulou para 52 milhões (25% da população). É claro que dependendo do parâmetro, teremos menos ou mais pobres. Por exemplo, se o parâmetro é muito baixo e a situação melhorou um pouco, então é possível dizer que acabamos com a miséria. Mas essa não foi a tendência de longo prazo, porque com a primeira crise aumentou de novo o contingente de pobres. Então, aquele mito de que o Brasil se tornara um país predominantemente de classe média não se sustentava. As classes médias, em nosso caso, são muito heterogêneas.
Na Europa, no Japão, na Coreia do Sul não é assim, porque por lá classe média se caracteriza por um padrão de homogeneidade muito grande. Ela acaba também jogando um peso na defesa da democracia, é importante na sustentação do consumo, incentivando o investimento produtivo e a inovação, na medida em que quer sempre coisas novas, mais modernas, ou seja, a classe média europeia é um elemento dinâmico do processo de inovação tecnológica. Aqui as classes médias reforçaram um padrão de imitação, como já demonstraram no passado Celso Furtado, Anibal Pinto e outros cepalinos. Isso não mudou.
Além disso, as classes médias têm patrimônio: diante de uma crise, têm uma poupança ainda que pequena, podem vender um carro, um imóvel, ou conseguem pegar um empréstimo no banco porque conseguem reembolsá-lo etc. As classes médias, em tese, têm ativos que lhes permitem enfrentar crises sem que isso as leve para baixo da linha da pobreza. Agora, essa tal “nova classe média brasileira”, aquela que achávamos que tinha engordado numericamente, essa segue profundamente vulnerável, com uma renda volátil e uma inserção ocupacional igualmente instável. Retorna, muitas vezes, à pobreza assim que surge uma crise. Portanto, não eram classes médias justamente porque não conseguiram constituir ativos nesse processo recente de “mobilidade social” ascendente. Consumismo é uma característica da globalização e não apenas sinal de que todo mundo virou classe média. Além disso, não há política social no Brasil que previna de forma efetiva um retorno à pobreza, como vimos no período recente.
Depois da crise de 2008 a pobreza e a desigualdade cresceram em vários países europeus. Isso não aconteceu na França, por exemplo, porque o país tem um sistema de proteção social que está ali para impedir tais riscos. Então, quando existe um problema no mercado de trabalho, o sistema social vai lá e cobre. Gasto social é para isto, tem função anticíclica: é para suavizar o consumo daqueles em dificuldade, é para evitar que percam seu capital humano se empobrecerem, para evitar que tirem os filhos da escola, ou seja, é para contribuir para enfrentar a crise e, assim, reduzir o impacto social de uma desaceleração, ou ainda mais, de uma recessão — a maior que o Brasil já teve (por dois anos consecutivos o crescimento negativo do PIB somou mais de 7%). O gasto social é uma âncora para o crescimento econômico; é isso que precisamos entender.
Em tempos de financeirização, quem se substitui ao Estado, portanto, à política social, são os bancos, o setor financeiro, que passa a vender “segurança”, que passa a conceder empréstimos para as soluções de curto prazo. Essa foi uma mudança e tanto no cenário nacional ao longo dos anos 2000 (e também no cenário internacional). Nós sabemos que não teremos como sair da crise em que vivemos se não for através de uma retomada do investimento social, do gasto social e do papel do Estado, de modo a criar um New Deal. Essa é, aliás, a proposta de uma organização do sistema ONU, a UNCTAD, que lançou ao final de 2017 uma proposta para vencer a crise econômica, que é mundial, diga-se de passagem. Propôs, para além da austeridade que nos imobiliza hoje, um novo pacto de crescimento, um novo New Deal. Ou seja, uma política que faça com que seja possível controlar o capitalismo, porque o capitalismo não pode ficar solto, sem nenhuma amarra.
A liberalização financeira, a abertura econômica e a desregulamentação financeira levaram a tudo que estamos vendo e vivendo: retração do emprego, queda do investimento privado, baixo crescimento por longos períodos, fenômenos de bolhas de consumo, que, de distintas maneiras, levam a crises reiteradas, a crises dramáticas em termos de perda de bem-estar, como presenciamos em 2008. Crise esta, aliás, cujas consequências ainda se fazem sentir no presente.
Nos anos 1990 e 2000, houve uma série de crises internacionais, na Coreia, na Rússia, a crise do México e da Argentina. Não são casos isolados. Essa é a dinâmica do capitalismo. Precisamos entender isso para formular alternativas, propostas novas para frear a dinâmica do capital financeiro para que ele não seja o motor do crescimento, porque o crescimento gerado pelo capital financeiro alimenta o capital portador de juros, a especulação, mas não permite, justamente, que tenhamos uma redistribuição do ponto de vista da economia real.
IHU On-Line – Hoje há um consenso de que o Estado de bem-estar social enfrenta dificuldades no mundo todo. O que aconteceu com esse modelo? A crise do Estado de bem-estar social pode ser explicada totalmente pela lógica da financeirização ou existem outros fatores que favoreceram esse fenômeno? O que se tem discutido entre os teóricos que estudam essa temática?
Lena Lavinas – As ameaças que pairam sobre os chamados Estados de bem-estar, lá onde existem, ou sobre os sistemas de proteção social em geral, são um fenômeno global. Porém, temos instituições que são tão fortes que impedem uma reconfiguração por completo de tais modelos de bem-estar. Na Inglaterra hoje, com o recuo do Estado no financiamento da educação pública superior — embora todas as universidades inglesas sejam públicas —, os alunos precisam pagar uma taxa, que é uma matrícula, que custa, para quase todas as universidades, nove mil libras esterlinas por ano, cerca de quase 50 mil reais na taxa de câmbio de hoje. Além disso, os alunos que vão para a universidade precisam tomar também um empréstimo de aproximadamente 3.500 libras esterlinas para poder viver no alojamento e pagar alimentação, ou seja, necessitam cerca de uns 65 mil reais. Suas famílias, para bancar a entrada de seus filhos na universidade, vão para o setor financeiro pedir um empréstimo e muitas vezes usam a moradia da família como colateral. A dívida total estimada dos empréstimos estudantis — veja que absurdo — é de 100 bilhões de libras esterlinas; é uma loucura, é uma dívida impagável. Se houver uma mudança no governo com a chegada de [Jeremy] Corbyn na Inglaterra, provavelmente essa dívida será perdoada ou terá que ser negociada a qualquer custo.
Nos Estados Unidos a situação é semelhante, mas por outras razões, porque lá nunca houve um sistema público de educação superior gratuito. Nos EUA, os estudantes universitários têm uma dívida que gira em torno de um trilhão de dólares. Quem vai pagar, ainda mais considerando que, ao sair com um diploma da universidade, os jovens formados ou não encontram emprego, ou têm de aceitar remunerações baixas que não lhes permitem fazer frente às suas obrigações financeiras?
Na França, onde existe um sistema de saúde público gratuito e universal, o Estado financia 75% de todas as despesas, e as famílias têm acesso ao que se chama de “medicina complementar”, as chamadas Associações Mutualistas. Essas associações começaram a existir no final do século XIX e início do século XX, estavam ligadas aos sindicatos e a determinadas profissões da classe trabalhadora e eram não lucrativas. Além de a pessoa pagar seu seguro social, como pagamos aqui o INSS, os trabalhadores ainda descontavam uma parcela pequena dos seus salários para um fundo dessa Associação Mutualista que, portanto, iria cobrir as despesas para além dos 75% financiados pelo Estado. Na França, quando alguém tem uma doença muito grave, uma doença crônica, um acidente ou algo que é extremamente oneroso, o Estado cobre 100%, caso contrário, o cidadão vai comprar um remédio na farmácia e o Estado reembolsa 75%.
Ora, o que estamos vendo na França, com o processo de financeirização? Essas Associações Mutualistas sem fins lucrativos vêm sendo substituídas por grandes seguradoras internacionais, como a AXA, francesa. Essas seguradoras internacionais funcionam de forma diferente, pois a lógica delas é o lucro. É por isso que os preços estão subindo. As seguradoras estão cobrindo menos serviços e, como o Estado também deixa de pagar ou cobrir alguns serviços, as pessoas, além de ter a Associação Mutualista para cobrir os 25%, pagam um terceiro seguro de saúde para complementar uma eventual parcela extra de algum serviço ao qual nenhuma das duas outras dê cobertura. Uma das formas de o Estado se retirar pouco a pouco é restringindo a cobertura dos serviços prestados. Assim, as pessoas, na incerteza, diante de doenças de longo prazo, começam a subscrever seguradoras privadas.
Realmente, o processo de financeirização abarca tudo. Evidentemente, o setor tem recursos e é um setor de grande inovação. Um exemplo básico para entendermos o que é a financeirização são os sistemas de aposentadoria por capitalização. Todos querem que o seu sistema de capitalização renda suficientemente para daqui a 20 ou 30 anos. Com isso, a pessoa quer que seu fundo de capitalização aplique num fundo de pensão, num fundo de investimentos, em título da dívida pública brasileira que garantam alta rentabilidade. As contradições começam aí. Ao cotizar para um regime de capitalização, a pessoa não quer que a taxa de juros caia, porque se cai, ela estará perdendo dinheiro. Então, qual é um dos efeitos mais sub-reptícios da lógica financeira? Ela perpassa a mentalidade das pessoas; todo mundo quer se tornar um pequeno investidor de sucesso, para lucrar. E a gente sabe que a finança não é lucro certo, mas alto risco.
Quando Ciro Gomes vai para a televisão e mostra que as ações na Bolsa de Valores da empresa Taurus, que é a maior empresa de armas nacional, cresceram, em 60 dias, 180%, quem for esperto vai lá e compra ações da Taurus. Isso mostra que a pessoa já tem a mentalidade de acionista, que ela quer ganhar, não quer perder. Se eu tivesse um fundo de capitalização, não gostaria que aplicassem meu dinheiro na indústria bélica, por questões morais. Mas a gente nem sabe qual o portfólio de aplicação do nosso dinheiro, porque o que interessa é a rentabilidade. Se o fundo não der uma boa rentabilidade, a pessoa irá passar para outro fundo.
Como caímos na armadilha? Estamos todos cerceados por essa lógica, que é a da rentabilidade financeira e do curtíssimo prazo, porque a insegurança hoje é muito grande. Todos temos medo e é por causa dessa insegurança e dessa incerteza que estamos vivendo o momento que estamos vivendo no Brasil, onde as pessoas acham que vamos arrumar a casa com ordem e controle nas mãos dos militares, com armas, com repressão e com autoridade desmedida. As pessoas precisam entender que a incerteza é o marco dos tempos que vivemos, em virtude da globalização e desse processo de financeirização. Temos, portanto, não que adotar estratégias de risk-taking, mas voltar a práticas inteligentes de risk-sharing, como no passado. Lutar contra a individuação e fortalecer práticas coletivas e universais, fundadas na solidariedade. Isso é possível. Temos que prestar atenção em nossos comportamentos, em como passamos a viver pendurados em cartões de crédito — não tem nada mais financeirizado do que cartão de crédito. Isso é o que o Fernando Fajnzylber, grande economista da Cepal, denominava, nos anos 90, a ‘modernidade de fachada”. Continuamos com tais máscaras e longe da compreensão da realidade.
IHU On-Line – Como deveriam ser formuladas as políticas públicas? Há ou não alguma alternativa ao modelo financeirizado que predomina hoje?
Lena Lavinas – É difícil, não é simples. Mas sempre há alternativas. Cabe a nós construí-las. O Banco Mundial fez avançar muito de 2008 para cá a discussão de que todo mundo tem que ter direito a uma renda mínima — o que é verdade, porque vivemos em uma economia de mercado e não pode ser diferente. Acontece que há muitos países pobres que não têm nem capacidade fiscal para isso e, muitas vezes, o Banco Mundial consegue que através de acordos bilaterais se consiga ajudar alguns países de modo a que assegurem um benefício assistencial à sua população mais carente. É um Bolsa Família ou algo similar para muita gente.
Para termos uma ideia, existem hoje sete bilhões e meio de pessoas no mundo. Dois bilhões e meio de pessoas recebem um benefício de combate à pobreza tipo Bolsa Família de forma regular, na maioria das vezes sem contrapartida; aliás há cada vez menos contrapartidas, porque o essencial é dar dinheiro mesmo, cash, para que as pessoas permaneçam na economia de mercado. Qual o verdadeiro papel desse benefício assistencial? Tornou-se um vínculo com o sistema financeiro, e vai servir de colateral, colateral de qualidade porque pago pelo Estado. O que é um colateral? É uma garantia que assegura o reembolso de um empréstimo. Os pobres geralmente não têm colateral, pois não possuem ativos (casa, carro, máquinas etc.).
Como essa renda de subsistência é paga pelo Estado, ela tem a chancela do Estado, o que significa que ela é segura. Como o benefício é de valor pequeno, ao precisar de mais dinheiro para viver, o tal beneficiário do programa assistencial vai ao banco e toma um empréstimo. Em contrapartida, o banco passa a retirar automaticamente do benefício pago pelo Estado, antes mesmo que ele caia na conta do beneficiário, o valor que corresponde ao reembolso mensal da dívida. A relação é direta entre banco e Estado, o que reduz ou mesmo elimina riscos para o setor financeiro.
As políticas sociais de combate à pobreza e o microcrédito são os maiores mecanismos de financeirização da pobreza no mundo. Hoje, o Programa Bolsa Família tem, segundo o Banco Central do Brasil, um milhão e meio de famílias que estão inadimplentes com empréstimos que tomaram. Isso acontece porque, primeiro, o benefício é baixíssimo, e ninguém pode viver com um benefício médio de 187 reais mensais; segundo, porque as pessoas não têm serviços públicos de qualidade que lhes permitam não precisar comprar um remédio, um caderno, óculos, ou o que for necessário. Para quem é pobre, qualquer despesa além das incontornáveis, que já não são suficientes, é muito grande. Com isso, as pessoas acabam indo para o banco, com seu dinheirinho do Bolsa Família pago pelo Estado. Esse tipo de programa não tem risco para o banco, mas o banco vai cobrar um juro maior da pessoa pobre do que de outra pessoa, só porque ela é pobre. Ser pobre ainda é fator de discriminação no acesso ao crédito. Assim, vemos a lógica louca sob a qual vivemos.
Na África do Sul e na Índia acontece a mesma coisa. O microcrédito permeou tudo de forma dramática, como se sabe. Então, é importante entender que hoje temos um processo de monetização das famílias pobres que é inerente ao avanço do capitalismo financeirizado. Os pobres passaram a ter aquilo que se chama, abusivamente, de uma “cidadania social global”. Alguns sociólogos ingleses e alemães criaram essa definição, mas ela é abusiva. Segundo essa definição, ao receberem esse benefício os pobres passam a ter a oportunidade de tomar empréstimos, ou seja, existe um processo de “democratização financeira”, que nada mais é que uma vertiginosa lógica de inclusão financeira. A inclusão financeira se generaliza à medida que se tem acesso a bancos para obter liquidez e compra de seguros e outros serviços. Os programas de combate à pobreza com base nas transferências de renda lastrearam o processo de inclusão financeira no mundo em desenvolvimento, em consonância com mudanças tecnológicas de grande alcance, porque hoje tudo é feito através dos celulares. Portanto, o mundo das finanças é uma revolução permanente.
Agora não precisamos mais de infraestrutura física em muitos casos; precisamos somente de energia elétrica e de Wi-Fi, ou seja, satélite. Isso significa que não é preciso mais fazer casas para ninguém. Antes era necessário que a classe operária, que tinha que ir para o trabalho diariamente, morasse bem, estivesse com boa saúde para que não estivesse ausente do trabalho. Agora não é preciso mais nada disso, não precisamos mais fazer infraestrutura de saneamento, deixa cada um viver como vive. Se eles quiserem saneamento, vão ao banco e pegam dinheiro e fazem eles mesmos sua fossa séptica. Isso se torna responsabilidade individual. O processo de financeirização é de uma violência, de uma radicalidade para a qual nós não conseguimos, ainda, atentar. Embora ele também traga benefícios pela facilidade e acessibilidade, não entendemos o que está acontecendo. A expropriação pelo capital de juros se dá em dimensões fantasmagóricas.
IHU On-Line – Como está se desenvolvendo esse processo de financeirização das políticas em países desenvolvidos?
Lena Lavinas – O processo de financeirização varia de país para país. Nas economias desenvolvidas, inclusive na Suécia e na Dinamarca, ele tem como ponta de lança os novos modelos previdenciários e a aquisição de imóveis, como poupança, dada a elevação constante dos preços dos imóveis em razão da especulação urbana. A Alemanha também introduziu uma perna de capitalização no seu sistema de aposentadoria. Existe ainda a ampliação da participação de seguros privados na provisão de saúde.
Antigamente, nos anos 1960/1970 existia moradia social, que foi uma provisão muito importante no pós-guerra. Seu impacto foi extraordinário, não só pela farta oferta pública, mas porque regulava os preços de mercado, impedindo que o preço dos aluguéis subisse de forma exorbitante. Por exemplo, se 20% ou 30% da população vivem em moradia social, o preço dos aluguéis vai cair, porque se tiver um aluguel muito alto, as pessoas vão buscar moradia social. Na medida em que não se tem mais oferta de moradia social, todos ficam reféns do mercado imobiliário: o dono fecha o apartamento se o preço do aluguel não é satisfatório para ele. Com menos oferta, os preços dos aluguéis sobem, e ele volta a abrir seu bem para inquilinos, já na alta. Pode agir assim por ter outros rendimentos ou riqueza que lhe permitem especular.
Hoje, todos querem ter acesso à casa própria porque acreditam que esse será um patrimônio para o futuro, caso suas aposentadorias não tenham valor. O nível de insegurança joga as pessoas para a lógica financeira: há que ter ativos, patrimônio, uma casa, um bem. Antes não era assim, antes se pensava que era preciso contribuir para o INSS para um dia ter uma aposentadoria que permitisse viver. Foi isso que deu densidade e musculatura aos sistemas de seguro social.
IHU On-Line – Diante desse cenário, a tendência é que o Estado de bem-estar social enfraqueça ou ressurja?
Lena Lavinas – As mudanças no mercado de trabalho, os impactos da robótica e essa radicalidade com que vemos a transformação dos processos de produção com a precarização do emprego, a obsolescência muito rápida de mão de obra e de determinados processos produtivos, mostram que mais do que nunca nós precisamos de uma provisão pública universal. Não por acaso hoje novamente se fala muito de renda básica universal. Recentemente estive na Finlândia, num Congresso internacional, e o clamor unânime por renda básica era geral: porque o emprego é precário, porque faltam empregos, porque as novas tecnologias suprimem milhares de postos de trabalho e porque as pessoas não podem viver expostas à incerteza e à insegurança. E é verdade. Nada mais legítimo.
Mas de que serve uma renda básica universal para todos se não houver provisão pública de saúde, educação, segurança? Quem são os mais recentes defensores da renda básica de cidadania? O setor financeiro, o Goldman Sachs, até o Banco Mundial propõe introduzir uma renda universal e incondicional no México. Os cofundadores do Facebook, [Mark] Zuckerberg e Chris Hughes, também defendem a ideia. Mas não adianta dar uma renda monetária de mesmo valor para todo mundo, 500 dólares por mês como propõe o Chris Hughes, para que cada um pague seu plano de saúde, a escola etc., porque não vai dar para cobrir necessidades crescentes. O custo de vida é muito superior ao de uma renda básica, a menos que passássemos a viver numa utopia de forte redistribuição. Dada a tendência de cortes de impostos e queda na taxação dos ricos e das empresas, essa utopia nem de longe vinga no horizonte. Como associar renda básica de cidadania universal e incondicional com provisão pública universal?
Percebemos como o mundo mudou: estamos redefinindo a lógica do que são os benefícios sociais, do que é um sistema de proteção. O que está claro é o seguinte: todo mundo tem que ter uma renda garantida, porque a volatilidade dos rendimentos das famílias é muito alta e elas não podem estar expostas a riscos e pobreza. Mas o que é uma renda básica se não tivermos provisão pública de todo o resto que é indispensável a uma vida digna e genuína, uma vida de liberdade? Essa é a utopia que não podemos abandonar. Uma renda básica deve ser um fator de emancipação. Tem de vir acompanhada de política de moradia, saúde universal e gratuita, educação gratuita e universal em todos os níveis, capacitação permanente para todos os trabalhadores, para que não tenhamos um processo cumulativo de obsolescência de mão de obra, que hoje é muito rápido.
Para que seja assim, precisaremos, é fato, elevar fortemente a produtividade do trabalho. Elevando a produtividade do trabalho, as pessoas poderão pagar mais impostos, a economia crescerá e será possível financiar o que precisamos. Então, temos que repensar como fazer isso. Sem abandonar, contudo, o compromisso de assegurar a todos uma provisão pública universal daquilo que nos é essencial.
Hoje a rota parece ir na contramão desses princípios. Caminhamos para ter aquilo que a Organização Internacional do Trabalho - OIT, logo depois da crise de 2008, definiu, juntamente com o FMI e com o Banco Mundial, como pisos de proteção social. A ideia dos pisos de proteção social significa dar uma renda de subsistência para todos que sofrem de déficit agudo de renda, bem como alguns serviços básicos, como ensino fundamental, atenção materno-infantil e vacinação para evitar que haja epidemias. As pessoas que integram as clientelas ditas altamente vulneráveis — mulheres sozinhas chefes de família com crianças, idosos sem aposentadorias, desempregados de longo prazo, jovens sem qualificação — recebem um benefício monetário pago pelo Estado, caso comprovem falta de renda. Com esse benefício assistencial podem escolher usá-lo para comprar algo, ou para obter mais um dinheirinho, por exemplo, solicitando um empréstimo de pequeno porte no banco para outros fins. A ideia dos pisos de proteção social é que todo mundo precisa de uma renda monetária mínima. O resto fica por conta de cada um, de seu esforço pessoal. Esse é o novo modelo de proteção social que temos pela frente, liderado pela grande finança. O desafio consistirá em transformar patamares de sobrevivência em escadas para galgar novos degraus sociais. Para quem acredita ser possível tirar leite de pedra, talvez essa aposta seja viável em grande escala.
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“Há um clamor unânime e geral por renda básica de cidadania universal e incondicional”. Entrevista especial com Lena Lavinas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU