O dilema do envio de armas para a Ucrânia pela Itália e a EU está no centro de um confronto difícil e dilacerante que atravessa a consciência pessoal e coletiva. É necessário dar espaço a um diálogo exigente, capaz de enfrentar os nós complexos e até agora amplamente removidos no debate social e político. Vamos começar com uma entrevista com o filósofo e ensaísta Massimo Borghesi, autor de “Jorge Mario Bergoglio, uma biografia intelectual”.
O confronto em curso na Ucrânia desde a noite de 24 de fevereiro nos coloca diante de perguntas até o momento removidas e de conflitos dilacerantes na consciência de cada um. Em particular, partindo do dilema gerado pela escolha do governo italiano e da cúpula da UE de enviar sistemas de armas ao exército ucraniano para responder ao ataque lançado pelo exército russo sob a liderança de Vladimir Putin.
É difícil, mas necessário, dar espaço a um diálogo exigente, capaz de dar voz a posições diferentes e até opostas, mas partindo da busca comum de caminhos possíveis para alcançar a paz na justiça. O critério permanece sempre o de partir do olhar das vítimas na consciência do tempo extremo que se coloca diante de nós com a ameaça real de um conflito nuclear.
Além das táticas e estratégias militares, os olhos se voltam para o papa para entender o papel que a Igreja pode exercer ao facilitar a abertura de caminhos diplomáticos capazes de interromper o conflito, de outra forma destinados a se estender com consequências catastróficas. De modo mais geral, é inevitável questionar-se sobre a posição dos cristãos nesta guerra em curso no coração da Europa.
São perguntas inevitáveis que estamos nos fazendo nestes últimos dias, pedindo a opinião de vários interlocutores. Questões em aberto que estão, portanto, na origem deste diálogo com Massimo Borghesi, professor titular de filosofia moral na Universidade de Perugia, autor de numerosos e importantes ensaios como “Jorge Mario Bergoglio, uma biografia intelectual” e “Francisco. A igreja entre teologia teocon e ‘hospital de campanha’ (em tradução livre)”.
A entrevista com Massimo Borghesi é de Carlo Cefaloni, publicada por Città Nuova, 07-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como pode ser lida a citação do artigo 11 da Constituição italiana por Francisco no Angelus de domingo, 27 de fevereiro?
Não simplesmente como um apelo quase obrigatório, de parte do Papa, pela paz contra a guerra, mas sobretudo como um chamamento ao presidente russo e sua infame decisão de declarar guerra à Ucrânia. O Papa disse: “Quem faz a guerra esquece a humanidade, não olha para a vida concreta das pessoas, mas põe acima de tudo interesses e poder. Confia-se à lógica diabólica e perversa das armas e distancia-se das pessoas comuns, que querem a paz; e que em todo conflito são as verdadeiras vítimas, que pagam com a própria pele as loucuras da guerra”. Na Ucrânia, as "pessoas comuns" querem a paz. Também na Rússia, grande parte da população quer a paz. Os déspotas também usam de violência contra seus próprios povos. O nacionalismo é uma patologia, da mente e da alma.
No Angelus de 6 de março, o papa reiterou veementemente seu não à guerra.
Sim, o papa disse textualmente, contra a propaganda de Putin, que a mídia russa até mesmo nega a existência da guerra: “na Ucrânia correm rios de sangue e lágrimas. Não se trata apenas de uma operação militar, mas de uma guerra, que semeia morte, destruição e miséria. As vítimas são cada vez mais numerosas, assim como as pessoas em fuga, especialmente mães e crianças”. Acrescentou então: “A guerra é uma loucura! Parem por favor! Olhem essa crueldade!”.
Estamos agora diante do dilema da explicitação da política da não-violência ativa proposta pelo papa na mensagem pela paz de 2017 e relançada a cada oportunidade. O que significa hoje na sua opinião?
O papa pediu que sejam paradas as armas e cesse a guerra. Ele pede isso na consciência da enorme tragédia que está se desenrolando no coração da Europa e no presságio de que cada continuação da guerra só levará a mais massacres e destruição na atormentada terra ucraniana. Francisco sabe que o mundo depois desta guerra nunca mais será o mesmo, o fosso entre as nações se amplia, novos ventos de guerra estão se preparando. A profecia da terceira guerra mundial em pedaços se torna realidade. É por isso que o conflito deve parar o mais rápido possível e dar lugar à diplomacia. A Rússia terá que ceder em algumas de suas reivindicações e o governo ucraniano, é claro, terá que conceder alguma coisa. É preciso um mediador à altura. Angela Merkel seria perfeita.
Durante sua viagem aos EUA em 2015, Francisco indicou como exemplo a seguir Thomas Merton e Dorothy Day, que assumiram posições extremas contra a guerra, até o convite à deserção expresso por Day e pelo movimento dos trabalhadores católicos. O que significa hoje? Bonhoeffer também era a favor da escolha não violenta dos cristãos, mas diante de Hitler decidiu apoiar a ação da força para sua remoção.
Diante de uma invasão militar, a resistência armada é legítima. A doutrina social da Igreja prevê isso. A coragem dos jovens ucranianos em se opor ao invasor é inquestionável. No entanto, toda resistência deve medir forças e resultados. Se não tiver condições de deter o adversário no terreno, se estiver condenada à derrota, não deve prolongar a agonia do próprio povo, mas escolher corajosamente o caminho da negociação.
Na Europa, muitos políticos e jornalistas zelosos enfatizam o confronto até o fim, na esperança de enfraquecer a Rússia. Eles jogam com a vida dos ucranianos, usam-nos como armas contra Putin. Isso é puro cinismo. Se a via da negociação for possível, deve ser adotada imediatamente, antes da queda de Odessa ou de Kiev. Qual é o sentido de prolongar uma guerra que enche a Ucrânia de escombros e a reduz a um cemitério fumegante? A Europa deve exercer pressão sobre a Rússia para chegar a uma solução de compromisso que salve a integridade territorial da Ucrânia que, embora não aderindo à OTAN, poderá fazer parte da UE.
O Ocidente e, portanto, também os EUA, deve agir imediatamente, não enviando mais armas, mas propondo uma solução real de negociação capaz de colocar russos e ucranianos ao redor da mesa e interromper instantaneamente o avanço das tropas russas. Se o Ocidente envia armas, como poderá mediar as negociações? Quem apoiará a integridade territorial ucraniana diante da Rússia na hipótese previsível da vitória de Moscou?
Mas, no final das contas, todas essas posições tomadas pelos papas não podem parecer nada mais que declarações retóricas? Em 2017, o convite para parar a inútil matança foi dirigido aos líderes das nações enquanto os fiéis eram obrigados a obedecer às ordens. Uma posição constante sobre a obediência devida à autoridade legítima que foi confirmada inclusive contra os regimes nazifascistas. E também em 2003 o apelo contra a guerra no Iraque não comportou um convite à desobediência. O que impede hoje de lançar de ambos os lados o convite para desobedecer a matar?
João Paulo II, idoso e doente, opôs-se de todas as formas, em 2003-2004, à infeliz guerra estadunidense contra o Iraque de Saddam Hussein. Muitos católicos que o exaltaram em anos anteriores viraram as costas para ele e o deixaram sozinho. Eles preferiam o imperador ao papa. São os mesmos que nos anos seguintes se opuseram ao pontificado de Francisco. Todos os papas do século XX, de Bento XV em diante, se manifestaram contra as guerras.
Isso evidentemente não os autoriza a mobilizar os povos contra os Estados, convidando-os a abandonar suas armas em um contexto de guerra. Eles não teriam nem a força nem o poder. Qualquer um que aceitasse seu convite, os católicos em primeiro lugar, seria acusado de alta traição, preso, fuzilado, e o pontífice seria acusado de ingerência, conluio com o inimigo, de ser um irresponsável. A Igreja não poderia mais desempenhar a função de mediação e pacificação que constitui sua tarefa fundamental.
Os teóricos do realismo político nos dizem que podemos nos dar ao luxo de fazer esses discursos porque existe a bomba atômica para nos proteger além do guarda-chuva da OTAN sob o qual até Berlinguer disse se sentir mais protegido. Não é, no fundo, a aceitação daquele ateísmo prático denunciado por Merton em "Paz na era pós-cristã" que leva à substituição da fé na salvação que vem de Cristo pelo ídolo bestial da bomba nuclear?
O equilíbrio do terror, fundado na posse de arsenais nucleares, governou o mundo após a Segunda Guerra Mundial. O medo da reação impediu que a competição entre os impérios se degenerasse até o ponto de não retorno. Depois houve a época do desarmamento nuclear propiciado pelo fim da Guerra Fria e pelo processo de distensão entre Leste e Oeste. A invasão da Ucrânia nos leva de volta a pré-89, nos devolve a um tempo que pensávamos ter acabado. Com o risco de um conflito "convencional" degenerar em nuclear. A ideia de uma Ucrânia neutra, fora da OTAN, apoiada há muito tempo pela Alemanha-França-Itália, constitui uma garantia de equilíbrio entre as potências. Uma OTAN na fronteira com a Rússia não favoreceria a paz, mas alimentaria o risco de uma terceira guerra mundial que, como muitas vezes acontece, poderia explodir pelos motivos mais fúteis.