09 Agosto 2019
Natural do Rio de Janeiro, Luís Felipe Miguel (52) é professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UNB). Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ele é também mestre e doutor em ciência política e ciências sociais pela UNB e pela Unicamp, respectivamente.
Autor de livros como Consenso e conflito na democracia contemporânea (Editora Unesp, 2017) e Dominação e resistência (Boitempo, 2018), Miguel lança agora, pela editora Expressão Popular, O Colapso da Democracia.
Em 216 páginas, o carioca tenta explicar o período que vai da redemocratização do país - cujo marco é a Constituição de 88 - ao golpe de 2016, quando os alicerces democráticos voltaram a ruir.
“Tudo aquilo que, com esforço, fora construído a partir do final da ditadura militar, em termos de democracia e de promoção da justiça social, foi destruído em pouco tempo”, diz ele, referindo-se à devastação promovida pelos governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PSL).
“Como na antiga canção de Caetano Veloso, estamos 'na ruína de uma escola em construção': o que se desmonta jamais esteve inteiro”, escreve Miguel no livro.
Na entrevista ele diz que o Brasil caminha “paulatinamente” para um endurecimento do regime e que apenas a mobilização popular terá força para reverter o quadro.
“Não acredito que estejamos condenados. Agora, para reverter isso, é importante entender que é necessária a mobilização popular. Não vai ser depositando as nossas energias completamente nas instituições políticas formais, porque essas instituições já mostraram que estão a serviço da classe dominante”, diz.
Para Miguel, o caminho de “acomodação de forças” trilhado pelo ex-presidente Lula durante seu governo foi necessário e deu resultados importantes, mas foi também um limitador. “Quando as tensões começam a surgir, o lulismo está despreparado para resistir”, conclui.
A entrevista é de Marcos Hermanson, publicada por Brasil de Fato, 08-08-2019.
Em um trecho do seu livro, você diz que “vivemos um momento entre uma democracia que está morrendo e uma ditadura que ainda não pode ser”. O que isso significa?
Nos últimos anos a gente viu um fechamento do espaço para o real funcionamento de instituições democráticas no Brasil. Mesmo pensando em termos de uma democracia procedimental e eleitoral. Mas ainda não existe a possibilidade - e é por isso que eu falo de uma ditadura que não pode ser - de se abrir mão pelo menos de uma fachada de democracia.
Por que não existe essa possibilidade?
Porque a gente vive em um ambiente, tanto nacional quanto internacional, em que se entende que isso é necessário para dar legitimidade ao sistema. O Brasil sofre consequências dos governos pós-golpe, sobretudo do governo Bolsonaro, perdendo sua capacidade de ser aceito como parceiro nos diálogos internacionais. Isso ocorre ainda que o governo mantenha uma fachada de respeito às instituições democráticas. Se essa fachada se perde, o custo é maior ainda.
Essa fachada consiste no que, exatamente?
Por exemplo, o golpe contra a presidente Dilma foi travestido de impeachment constitucional. Bolsonaro chegou ao poder pelo voto em uma eleição que, no entanto, foi atingida na sua legitimidade pelo impedimento arbitrário do lançamento da candidatura do presidente Lula, mas esse impedimento também fingiu obedecer a um procedimento legal.
Ninguém diz que está rasgando a Constituição, mas o nosso judiciário garante o cumprimento da Constituição de forma completamente incerta, dependendo de caso para caso. Conforme o tempo passa, fica mais difícil manter essa fachada, porque as evidências de que a própria ordem da democracia liberal foi subvertida ficam cada vez maiores. Eu acho que o caso da Vaza Jato é o exemplo máximo disso. Mas existe ainda o esforço de manter a fachada do império da lei, do estado de direito e da democracia liberal.
Mas vai haver, então, um endurecimento do regime?
Eu acho que existe um processo de endurecimento acontecendo. Ele é paulatino, não é linear, mas está acontecendo. O fato de que Bolsonaro assumiu a presidência significa um passo além - em relação ao governo Temer - no projeto antidemocrático vinculado ao golpe.
As elites econômicas mantêm uma relação muito ambígua com o bolsonarismo porque, ao mesmo tempo que grandes setores ficam incomodados com os excessos, por outro lado Bolsonaro está sendo um instrumento para realizar uma parte importante do seu programa.
Privatização, arrancada de direitos da classe trabalhadora, desnacionalização da economia… Agora permitem que chegue ao governo alguém que está fragilizando ainda mais as instituições democráticas e os direitos individuais próprios do liberalismo.
A gente tem visto declarações claras no sentido do aparelhamento do Estado a favor de determinados grupos, de censura. Nós vemos a perseguição dentro e fora do próprio aparelho do Estado, o aumento da violência policial contra movimentos da oposição, da sociedade civil, de partidos da oposição.
Então a gente está vivendo uma escalada de redução do espaço da democracia e de liberalismo político que tinha sido construído no Brasil a partir do final da ditadura. Outro elemento desse processo é um protagonismo maior do exército e das polícias na política brasileira. Há dez anos, os generais não estavam nas páginas de política. Hoje a gente não pode acompanhar a política brasileira sem conhecer o nome de pelo menos meia dúzia de generais.
Existe uma redução do espaço de liberdade democrática. Eu não sei se isso vai culminar em algum evento emblemático, como um novo golpe, ou se vamos continuar nesse deslizamento na direção de menos democracia.
Em declarações recentes, o ministro Gilmar Mendes, do STF, criticou a Operação Lava Jato. Também o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), fez críticas duras ao governo, ao mesmo tempo que as casas do Congresso foram responsáveis por impor algumas derrotas a medidas provisórias e outras iniciativas do governo. Como o senhor enxerga essa disputa entre os poderes?
A partir do momento em que o grande bloco que se uniu para derrubar a presidente Dilma chega ao poder, suas diferenças internas vão aparecendo, porque ele nunca foi homogêneo. Os interesses da velha política, personificada por gente como Romero Jucá ou o próprio Rodrigo Maia, não eram os mesmos desses procuradores e juízes messiânicos da Lava Jato.
O próprio Supremo é dividido em uma ala mais próxima da velha política, que o próprio Gilmar representa, e uma ala mais próxima desse messianismo judiciário do qual o Barroso se tornou porta-voz.
A gente está vendo esse jogo de forças dentro da coalizão que deu o golpe. Mas no que é o programa geral do golpe, que é impedir que o campo popular seja aceito como interlocutor no jogo político, eles continuam todos juntos.
Não existe nenhum passo significativo para recompor as condições de que a esquerda seja levada em conta no debate. Pelo contrário. O que se vê é que nas questões programáticas chave - como por exemplo a desnacionalização da economia, a redução do papel do Estado, a desresponsabilização do Estado com as políticas sociais - eles continuam absolutamente alinhados.
Eu acho que nesse momento existe uma tensão entre o grupo vinculado ao Bolsonaro, disposto a dar passos mais claros na direção do fechamento autoritário, e o grupo do qual o Rodrigo Maia se tornou porta voz, com Gilmar no judiciário, que quer algo mais moderado.
Essa tensão existe, mas com todos contra o campo popular. E no momento em que o campo popular reaparece com alguma força eu não tenho dúvida de que eles não tem dificuldade de se reunir.
O senhor diz no livro também que “em meados de 2019, o campo democrático popular permanece em situação de atordoamento”. A esquerda está fora da disputa política?
O nosso lado apanhou tanto e tão forte nesses últimos anos que está com dificuldade de construir uma resposta.
Desde a capitulação no início do segundo mandato da Dilma, nós estamos tendo uma onda enorme de perdas de políticas sociais, direitos, legislação protetora, e mostrando uma capacidade de reação muito pequena.
Essa aprovação a jato da reforma da Previdência, por exemplo, enfrenta uma mobilização contrária muitíssimo inferior aquilo que isso representa em termos da ampliação do sofrimento dos mais pobres.
Existe uma tentação a se incorporar ao discurso da oposição de centro-direita e colocar os absurdos do Bolsonaro como sendo o nosso inimigo número um. Então a esquerda ainda está tateando, em parte porque o período dos governos do PT foi um período de profunda desmobilização.
Fazia parte do acordo que permitiu ao PT governar um esfriamento da mobilização política popular, e isso está cobrando um preço agora.
Em seu livro, o senhor também escreve que “a alternância no poder, representada pelos governos do PT, mesmo com as concessões que se fizeram necessárias, parecia ser a prova final de que tínhamos uma democracia eleitoral funcionando a pleno vapor”. Essas concessões eram necessárias ou contribuíram para as derrotas da esquerda nos últimos anos?
Eu acho que foram necessárias e contribuíram para as derrotas. O lulismo teve uma compreensão muito realista sobre a luta eleitoral e política no Brasil. O lulismo entendeu que não havia força para enfrentar os grandes interesses historicamente privilegiados no país e buscou um caminho de acomodação que permitiria tranquilizar esses grandes interesses e ao mesmo tempo fazer políticas que beneficiassem a imensa massa de miseráveis do país.
Eu não tenho como dizer que esse diagnóstico está errado, então era necessário apaziguar para implementar aquelas políticas. Quando as tensões começam a surgir, o lulismo está despreparado para resistir às pressões, porque uma parte da conta era desmobilizar os movimentos. Era parte do acordo que permitia ao PT governar.
Eu diria que o principal problema da gestão política durante os governos do PT foi não tentar aproveitar alguns momentos em que essa possibilidade existiu para mudar a correlação de forças. Quando a economia estava de vento em popa, quando a popularidade do Lula estava enorme, quando ele era capaz de angariar um grande apoio no Congresso, ele poderia ter dado passos no sentido de melhorar estruturalmente a posição da esquerda nessas batalhas.
Tem como reverter essa crise da democracia? Qual é o papel do campo democrático popular?
Todo processo histórico é reversível. Não acredito que estejamos condenados. Agora, para reverter isso, é importante entender que é necessária a mobilização popular. Não vai ser depositando as nossas energias completamente nas instituições políticas formais porque essas instituições já mostraram que estão a serviço da classe dominante.
Essas instituições só vão responder às demandas do campo democrático popular se houver pressão do lado de fora delas. É necessário romper com a acomodação que fez com que a gente jogasse praticamente todas as fichas na política institucional.
O senhor pode tentar responder sinteticamente a pergunta que você faz no seu próprio livro? “Como foi possível que o regime democrático e o sistema de direitos construídos no Brasil ao longo de mais de duas décadas ruíssem em tão curto prazo?”
A resposta é que nenhum sistema legal de direitos sobrevive simplesmente por estar enunciado em um pedaço de papel. É necessário ter força na sociedade para garantir a vigência desses direitos. Se os grupos dominados não têm força para garantir que os direitos que os beneficiam vão vigorar, esses direitos tendem a ser varridos.
A gente teve uma fé grande demais de que as instituições permaneceriam funcionando simplesmente pelo peso de sua própria existência, e isso não ocorre.
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Só mobilização popular pode reverter “colapso da democracia”, diz cientista social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU