19 Março 2025
Agenor Brighenti é um dos teólogos pastoralistas mais conhecidos na Igreja do Brasil e da América Latina, autor de Teologia pastoral: a inteligência reflexa da ação evangelizadora (Vozes, 2021).
A entrevista é de Mauro Castagnaro, publicada por Revista Família Cristã, 18-03-2025.
Francisco é o primeiro papa latino-americano. Em sua opinião, como esse contexto influenciou seu pontificado?
Foi uma agradável surpresa, pois ninguém esperava um Papa “do fim do mundo”. Mas foi também o renascimento de uma esperança, pois a tradição eclesial libertadora que havia nascido na periferia, tão maltratada nas três décadas de “involução eclesial” em relação ao Vaticano II que antecederam o pontificado de Francisco, estava chegando ao centro da Igreja. Mais tarde, a canonização de Dom Oscar Romero seria o reconhecimento de um novo perfil de santidade, forjado nestas terras: os santos das causas sociais. A Exortação Evangelli Gaudium, programática do seu pontificado, incorporaria em grande parte o Documento de Aparecida, que ele mesmo presidiu na Comissão de Redação da Assembleia. Por sua vez, o Sínodo da Amazônia universaliza a causa ecológica como uma causa evangélica e legitima a configuração de Igrejas indígenas, com o rosto de seus povos. Em suma, o Papa do “fim do mundo” iria causar um grande desconforto à estabilidade do establishment, ao fazer da periferia o centro da Igreja e de uma sociedade excludente.
O Cardeal Bergoglio foi protagonista na 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Aparecida, Brasil, em 2007. Como o pontificado de Francisco marcou o magistério da Igreja na América Latina, desenvolvido após o Concílio Vaticano II?
O Documento de Aparecida tem sua marca. A Conferência foi preparada com o mesmo controle das conferências anteriores em Puebla e Santo Domingo. Por exemplo, não se permitiu que a “Tenda dos Mártires” fosse montada nas proximidades da Assembleia. Nem que teólogos da perspectiva libertadora integrassem a Assembleia. A Marcha das Comunidades Eclesiais de Base, que caminhou durante toda a noite para culminar na Missa da Assembleia, esta, para não encontrar-se com a marcha, transferiu a celebração para um outro horário, mas o Cardeal Bergoglio estava lá, celebrando com os caminhantes. O Documento original de Aparecida teve 240 alterações, após aprovação da Assembleia. O Cardeal Bergolio não protestou, mas depois, como Papa, praticamente reintroduziu na Evangelii Gaudium o que havia sido retirado do Documento da Assembleia, uma Exortação que tem muito a ver com Aparecida. Mais tarde, ele convocou a Primeira Assembleia Eclesial da Igreja na América Latina e Caribe, justamente para reavivar Aparecida.
Como a Igreja na América Latina acolheu e vivenciou a presença de um argentino no trono de Pedro?
Por um lado, com assombro: um papa “do fim do mundo”, que ousa descer do trono, deixar o palácio apostólico e começa a desmontar o perfil imperial do papado. Parecia um sonho que respondia ao que Dom Pedro Casaldáliga argumentava ao justificar sua recusa em fazer visitas ad limina ao Papa. E ele disse isso a João Paulo II, quando, finalmente, obrigou-o a ir a Roma. Por outro lado, com esperança, pois se conhecia, sobretudo, sua contribuição à Conferência de Aparecida. Recém-eleito, em sua primeira viagem por ocasião da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, ele foi projetando em seus discursos os eixos centrais da Exortação Evangelii Gaudium. Em sua viagem à Bolívia e ao Paraguai, ele reconheceu a cumplicidade da Igreja nos horrores da colonização como um “pecado da Igreja”, não apenas um pecado de “filhos da Igreja”, e pediu perdão. Em um tom ainda mais forte, fez o mesmo em sua visita ao Canadá, reconhecendo a conivência da Igreja no genocídio dos aborígenes. Enfim, o pontificado de Francisco marcou o fim das suspeitas e perseguições de teólogos e bispos na América Latina e Caribe, que vivenciaram um estado de martírio contínuo, alguns mesmo depois de mortos, como reconheceu Francisco na canonização de Dom Romero.
Como o pontificado do Papa Francisco mudou a Igreja na América Latina?
Certamente, a Igreja na América Latina é a que mais havia avançado na “recepção criativa” do Concílio Vaticano II. No entanto, é também a que mais retrocedeu nas três décadas de “involução eclesial” que antecederam o pontificado de Francisco. Ao retomar o processo de implementação do Concílio, o Papa trouxe novos ares para a Igreja na América Latina e Caribe. A Conferência de Aparecida já havia apontado nessa direção, mas se não fosse Francisco, Aparecida teria desaparecido. Foi ele quem resgatou Aparecida com a Evangelium Gaudium. Um momento singular no pontificado de Francisco foi o Sínodo da Amazônia, que transcendeu a Região, pois incorporou na obra evangelizadora de toda a Igreja – ecologia, inculturação, ministerialidade, protagonismo da mulher, uma Igreja companheira de caminho da humanidade, etc. Além disso, foi um Sínodo que, para articular a Igreja em uma Região partilhada por nove países e com 105 Igrejas locais, criou não uma Conferência Episcopal, mas uma Conferência Eclesial – a Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA), a primeira e única até agora.
Que aspecto do ensinamento do Papa Francisco repercutiu particularmente na América Latina?
O Magistério de Francisco interpela por uma Igreja mais autêntica e profética, comprometida com a renovação do Vaticano II e a tradição eclesial libertadora, tendo a opção pelos pobres como seu centro. Nessa perspectiva, algumas das intervenções de Francisco repercutiram fortemente. Por exemplo, sua firmeza na tomada de posição frente à volta de tradicionalismos, especialmente na Liturgia, como no caso da missa tridentina. Esta estava alimentando o imaginário de diversos segmentos eclesiais que se contrapõem abertamente ao Vaticano II como um todo. Também a tolerância zero e a necessidade de transparência em relação aos abusos sexuais por parte de clérigos, especialmente envolvendo menores. Pode-se mencionar, igualmente, a intervenção na Igreja do Chile, em especial, no episcopado. Emblemática foi a intervenção nos Legionários de Cristo e a condenação do seu fundador – P. Marcial Maciel. Outro caso é a intervenção ainda em curso nos Arautos do Evangelho, movimento nascido no Brasil e, ainda mais contundente, a dissolução dos Sodalícios da Vida Cristã, no Peru, também com a condenação de seu fundador. Eram anomalias que estavam se tornando a regra.
Qual é, em sua opinião, o legado do Papa Francisco para a Igreja universal?
Seu grande legado nesses 12 anos é ter descentrado a Igreja de si mesma e apontado para os grandes desafios que a humanidade enfrenta hoje. E o fez a partir dos pobres, das periferias. Nessa perspectiva, ele foi o primeiro papa a ir além da Doutrina Social da Igreja ao afirmar, na Evangelium Gaudium, que “este sistema econômico é injusto em sua raiz”, que “esta economia mata”, uma condenação contundente do capitalismo. Além disso, desde o início de seu pontificado, com sua visita a Lampedusa, apontou para a questão da migração, fazendo apelo para “a construção de pontes, não de muros”. Apontou também para os que vivem nas ruas, dando-lhes atenção especial, começando pelo própria casa, o Estado do Vaticano. Um legado de grandes proporções e implicações está no campo da ecologia. Ao que já era um tema da Doutrina Social da Igreja, Francisco dedicou uma encíclica inteira sobre ecologia integral (Laudato Si’) e uma exortação sobre a crise climática (Laudate Deum).
No âmbito eclesial, destaca-se o trabalho de mais de uma década, dedicado à reforma da Cúria Romana, culminando na Constituição Praedicate Evangelium, superando seu perfil de organismo intermediário entre o Papa e as Igrejas Locais para se tornar um organismo de apoio a ambos. A essa reforma foi incluída a participação de mulheres em postos de governo, inclusive como Presidentes de Dicastérios. Obra transcendente é também a reforma do Sínodo dos Bispos pela Constituição Episcopalis Communio, transformando-o em um Sínodo da Igreja, com a participação do Povo de Deus e o direito de voto das mulheres. O Colégio Cardinalício também adquiriu um perfil não só mais universal, como integrado por membros de Igrejas da periferia e com estreita relação com os pobres. O Papa também veio ao encontro da comunidade teológica, propondo uma teologia intimamente ligada aos processos pastorais e com total liberdade de investigação, superando décadas de controle e desconfiança. Mas, sua maior obra é o Sínodo sobre a Sinodalidade, que retoma o processo de recepção do Concílio Vaticano II e consolida sua eclesiologia.
Francisco colocou a sinodalidade no centro de seu pontificado, e a América Latina talvez tenha sido o continente mais comprometido com essa questão. Que consequências práticas isso teve ou está tendo no continente?
A Igreja na América Latina já realizou cinco Conferências Gerais de Bispos, precedidas por um Concílio Plenário no final do século XIX, convocado por Leão XIII. Entretanto, há duas novas organizações – a CEAMA e o Sínodo da Igreja – que são um imperativo para a sinodalização das estruturas da Igreja, não apenas na América Latina. Elas desafiam, acima de tudo, a sinodalização das Conferências Episcopais Nacionais e Continentais. Em uma Igreja Povo de Deus, os Bispos não podem reservar-se o direito de decidir pelos demais, através de um organismo composto exclusivamente por Bispos. Nessa perspectiva, a Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe, realizada em 2021, também desafia processos de discernimento e tomada de decisões, em nível nacional e continental, por Assembleias formadas por representantes de todo o Povo de Deus.
Uma das principais consignas do Papa Francisco tem sido “iniciar processos e não ocupar espaços”. Em sua opinião, quais foram os principais processos iniciados por Francisco na Igreja Católica?
Juridicamente, Francisco poderia ter tomado decisões sozinho e de maneira definitiva. Contudo, coerente com uma Igreja sinodal, ele preferiu fazer processo, convidar à conversão e decidir entre todos o que diz respeito a todos. Assim, infelizmente, muito poucas mudanças estão juridicamente asseguradas, embora uma reforma do Código de Direito Canônico esteja em andamento. Francisco precisaria ainda uns dez anos de pontificado para consolidar mudanças já feitas e outras ainda em andamento. Continuam a depender fortemente do Papa: a continuidade do processo de recepção do Vaticano II; a implementação de uma Igreja sinodal; a consolidação da reforma da Cúria Romana; a superação de uma Igreja hierárquica, clericalista e autorreferencial; a acolhida na comunidade eclesial de católicos em situação irregular; em suma, uma Igreja comprometida com as grandes causas da humanidade hoje, como são a crise ecológica, as migrações, uma economia que mata, etc.
Quais são as principais questões em aberto, que o sucessor do Papa Bergoglio terá que abordar? E como essas urgências serão abordadas?
Oxalá o Papa Francisco viva mais alguns anos, pois, de fato, há muitas questões em aberto, a começar pela retomada da renovação do Vaticano II, pois, apesar do pontificado de Francisco, o processo de “involução eclesial” em relação à renovação conciliar, ainda não está estancado. Persiste o perfil de um cristianismo sacerdotalizado, centrado no culto e nos ministros ordenados, com função reduzida ao múnus sacerdotal, em detrimento do múnus profético e do serviço. Nessa perspectiva, é urgente a mudança de perfil dos seminários, ainda de estilo conventual e tridentino, que forma “sacerdotes do altar” e não “pastores com cheiro de ovelhas”.
Continuam pendentes duas agendas, que poderiam amenizar o drama da maioria das comunidades eclesiais não terem acesso à Eucaristia dominical, que é a ordenação de homens casados e de mulheres. Questão séria é o processo de nomeação de bispos, centrada nos Núncios Apostólicos, sem a participação do Povo de Deus, inclusiva com parca ou nenhuma participação das Conferências Episcopais enquanto tais. Por fim, se poderia mencionar a necessidade da reforma do Primado, que juridicamente continua centralizador, acima do Colégio Episcopal e do próprio Sínodo da Igreja. É urgente e necessário que o Papa volte a ser “sucessor de Pedro e não de Constantino”, como disse São Bernardo de Claraval ao seu confrade eleito Papa Eugénio III (1145-1153).
Há quem diga que o pontificado do Papa Francisco teve o mérito de colocar na mesa todos os grandes problemas da Igreja atual, desde o acesso das mulheres aos ministérios à inclusão de pessoas LGBT+; desde o compromisso radical com a paz, a justiça e a ecologia até o início de uma transformação da Igreja Católica em uma unidade de diversidades, que também envolve o oecumene cristã, etc., mas que um concílio é necessário para abordá-los. O que você acha disso?
Todas essas questões e outras tantas, urgentes e necessárias de serem implementadas, já estão incluídas no Vaticano II. O Concílio contém uma grande riqueza ainda não explorada ou suficientemente compreendida e, acima de tudo, implementada. Por enquanto, bastaria revisitar o Vaticano II, mas a partir do contexto de hoje. O mundo mudou, mas, felizmente, as intuições básicas e os eixos fundamentais do Vaticano II continuam pertinentes e podem continuar respondendo aos desafios do nosso tempo. O grande desafio, hoje, é fazer uma “segunda recepção” do Concílio no nosso contexto, o que exige, novamente, uma “recepção criativa”. Para encarnar-se no nosso tempo, o Vaticano II precisa de novas mediações, capazes de encarnar a novidade perene do Evangelho na precariedade da história. Um novo Concílio com o episcopado que temos, o Sínodo da Sinodalidade mostrou isso, dificilmente faria avançar o Vaticano II. Além do mais é preciso perguntar-se, em que medida o episcopado atual está à altura das exigências do nosso tempo, um tempo complexo e de travessia, que precisa ser tomado como um tempo pascal.