27 Outubro 2014
Garanto a veracidade da anedota, pois quem me contou foi o seu protagonista: um bispo, cujo nome não me recordo, a quem Francisco, atual bispo de Roma, lhe disse literalmente em conversa privada: “Reze por mim; a direita eclesial está tirando a minha pele. Estão me acusando de dessacralizar o papado”.
O comentário é de José Ignacio González Faus, teólogo, jesuíta, publicado no seu blog Miradas Cristianas, 20-10-14. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Permitam-me perguntar se o que Francisco está fazendo é dessacralizar o papa ou cristianizá-lo.
Há cerca de 10 séculos, São Bernardo escreveu uma carta ao Papa Eugênio III em que falava sobre aquilo que seria uma “dessacralização” do papado: que estava se parecendo não com Pedro e sim com Constantino, lembrando que Pedro não precisou de grandes palácios, nem manto de arminho ou luxuosos meios de transporte para anunciar a Cristo.
Como se não bastasse, o nada suspeito Bento XVI declarou, pouco antes de sua renúncia, que esta carta de São Bernardo deveria ser livro de cabeceira a todos os papas.
Pedro foi bastante popular em seu tempo, mas o Livro dos Atos dos Apóstolos não apresenta nenhum testemunho de que isto aconteceu por causa de uma sacralização de sua pessoa ou ministério: as pessoas o queriam porque ele tinha intuições de liderança sobre os novos caminhos que a Igreja primitiva deveria empreender, talvez também porque era humano e podia ser responsabilizado quando dava um passo que alguns não compreendiam (como entrar na casa de um pagão), ou mesmo porque se poderia repreendê-lo publicamente, como fez Paulo...
Francisco está fazendo algo parecido com o que São Bernardo falava na carta.
No entanto, isto significa cristianizar o papado. Ou iremos acusar o próprio Jesus Cristo de “dessacralizar” a Deus, por ter se esvaziado de sua posição divina e assumido a figura de um servo? (Fl, 2:6ss)
Não: em vez disso, deveríamos dizer que o ministério sacralizado de Pedro não torna mais fácil a evangelização nem faz mais autêntica a fé dos católicos. Serve apenas para que a Cúria Romana sacralize a si mesma sob a sombra do papa.
Para compreender esta questão, poderíamos dizer que ela brota daquilo que, em geral, se apresenta como o mais característico, a grande virtude e o grande perigo [do termo] “católico”. Kat-hólico significa universal, mas não no sentido quantitativo, e sim qualitativo: significa que nenhuma dimensão natural fica fora do cristianismo. [O termo] católico deriva do mesmo vocábulo grego (“holon”, em vez de “pan”), donde vem a palavra “holístico”, hoje em moda e que se refere a uma totalidade, porém com sentido diferente, podendo formar as palavras “pan-germanismo” ou “pan-sexualismo”, por exemplo.
Na verdade, a Reforma luterana buscou uma concentração do cristianismo essencial, o que prontamente alguns tacharam de redução. Por outro lado, a Reforma acabou permitindo também chamar algumas pessoas ou posturas católicas de “muito católicas, mas muito pouco cristãs”, advertência terrível que Fernando de los Ríos já havia enunciado em 1933. Os shows multitudinários de Karol Wojtila, com os gritos de “totus tuus” ou “santo subito”, poderiam ser rotulados de muito católicos, mas talvez pouco cristãos. Por fim, não sei se cabe dizer que o protestantismo é como o canto gregoriano, enquanto que o catolicismo é como a polifonia barroca (e quem escreve isto é um católico admirador do gregoriano).
Todo este ambiente de vestimentas especiais (feitos por alfaiates especiais), residências reais, genuflexões, apelativos de “Santo Padre”, viagens especiais... são, na realidade, um tanto secundários. Quando se exagera neles e quando se lhes absolutiza, acaba-se contribuindo para criar uma auréola idolátrica em torno do sucessor daquele pescador da Galileia, chamado Pedro. Jesus não se serviu destas auras sagradas para anunciar a Deus e o seu Reino. Com o cristianismo, aboliu-se a distinção entre o sagrado e o profano: porque, segundo Jesus, o único sagrado é o ser humano, que está acima de todos os “sábados” da história. Assim, seguramente o Mestre repetiria hoje, a todos estes monsenhores preocupados, as suas palavras de outrora: “Deixem que os mortos sepultem seus mortos; mas você, vai anunciar o Reino de Deus” (Lc, 9:60).
Então, por que estaria Francisco dessacralizando o papado? Demos graças a Deus por tudo o que tem feito, pois sua prática irá contribuir para purificar a fé dos católicos, além de facilitar a aproximação de outras igrejas cristãs. Pois, embora seja verdade que só chegamos a Deus através de mediações, isto não significa que devemos sacralizá-las.
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Dessacralizar o papado? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU