07 Fevereiro 2025
“No contexto de crises, os políticos, religiosos ou não, utilizam o religioso e as suas formas contemporâneas mais individualistas e dogmáticas como forma de apresentar alternativas que prometem o retorno à ordem, à previsibilidade, à segurança e à unidade. Na política brasileira atual, a religião é um recurso discursivo de pertencimento e recuperação da ordem utilizado pelos ultraconservadores, ou neoconservadores, para fazer avançar suas agendas nos espaços institucionais”. A reflexão é de Ana Carolina Evangelista, em artigo publicado por Le Monde Diplomatique Cono Sur, edição de fevereiro de 2025. A tradução é do Cepat.
Ana Carolina Evangelista, cientista política, é diretora-executiva e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) do Rio de Janeiro.
A religião parece brotar da terra toda vez que se analisa hoje a política no Brasil, e não apenas no Brasil. Seja durante os processos eleitorais ou nos corredores dos poderes Executivo e Legislativo, não passa um dia sem que falemos sobre como está a intenção de voto do segmento evangélico, ou sobre o posicionamento do deputado A, B, C... que tem manifestado suas referências religiosas para justificar seu voto ou seu novo projeto de lei, e as repercussões que isso teria no Governo. Mas o que aconteceu? Por que vemos mais religião na política? Ela sempre esteve aí e simplesmente não prestávamos atenção nisso? Por que já não é mais possível falar de eleições e de política sem que um pouco de religião queira aparecer?
E será que tudo realmente tem a ver com religião? Eu diria que não. Se extrapolarmos para o contexto brasileiro uma pesquisa recente publicada nos Estados Unidos, talvez mais pessoas comecem a se perguntar se de fato estamos falando de uma invasão indiscriminada da religião na política ou se estamos testemunhando uma incorporação sistemática, radicalizada e instrumental da religião por um dos polos político-ideológicos. A segunda opção parece mais precisa.
O Pew Research Center entrevistou cerca de 12.600 adultos em fevereiro de 2024 e constatou que a grande maioria dos adultos estadunidenses concorda que a influência da religião na vida pública está diminuindo: 80% deles, a percentagem mais alta já registrada pelo instituto nas suas pesquisas. Porém, metade considera isso algo negativo. Mas qual metade? Existem diferenças importantes entre republicanos e democratas, entre evangélicos e católicos, entre adultos mais velhos e adultos jovens.
Entre os republicanos, 68% consideram o declínio da influência da religião na sociedade uma coisa má, em comparação com apenas 33% entre os democratas. A mesma pesquisa indica que a maioria apoia o princípio da separação entre Igreja e Estado, e poucos acreditam que o Governo Federal deveria declarar o cristianismo como religião oficial do país. No entanto, existe uma aparente divisão entre aqueles a favor e contra a promoção dos valores morais cristãos pelo Governo: 44% contra 39%. Nem tudo tem a ver com a religião, mas muito tem a ver com a polarização.
Os adultos jovens são mais propensos do que os adultos mais velhos a dizer que o governo não deve declarar o cristianismo como religião oficial ou promover os valores morais cristãos. Da mesma forma, são os mais jovens que rejeitam com mais veemência a ideia de que a diminuição da influência da religião na vida pública seja algo negativo. Há também um sentimento crescente de que as próprias crenças religiosas das pessoas entram em conflito com a sociedade em que vivem e que é melhor não discutir diferenças religiosas.
No geral, há sinais generalizados de desconforto com a trajetória da religião na vida estadunidense. O descontentamento não é exclusivo dos estadunidenses religiosos. Pelo contrário, tanto os religiosos como os não-religiosos dizem sentir que as suas crenças os colocam em conflito com a cultura dominante, as pessoas que os rodeiam e o outro extremo do espectro político.
A população está dividida em partes praticamente iguais. A maioria democrata (72%) e sem filiação religiosa (72%) afirma que os cristãos conservadores foram longe demais na tentativa de promover os seus valores religiosos no governo e nas escolas públicas. Por seu lado, a maioria dos republicanos (76%) e dos cristãos (63%) diz que os liberais seculares foram longe demais ao tentar manter os valores religiosos fora destas instituições. Para os cristãos, a política é “muito secularizada” (63%) e para os não religiosos, a política é “muito religiosa” (73%). Os polos também estão presos em suas próprias bolhas.
Talvez possamos extrapolar para o Brasil parte desta reflexão sobre o real papel da religião na polarização política. Para que serve tudo isso? Quem está usando quem?
Hoje, são as forças de extrema-direita que mais mobilizam a religião quando enfrentam os desafios do dia a dia das pessoas no meio da crise social, econômica, política e de segurança pública. Neste contexto, os políticos, religiosos ou não, utilizam o religioso e as suas formas contemporâneas mais individualistas e dogmáticas como forma de apresentar alternativas que prometem o retorno à ordem, à previsibilidade, à segurança e à unidade. Na política brasileira atual, a religião é um recurso discursivo de pertencimento e recuperação da ordem utilizado pelos ultraconservadores, ou neoconservadores, para fazer avançar suas agendas nos espaços institucionais. Não se trata apenas de determinados grupos religiosos que procuram impor a sua moral através de políticas estatais, mas também de novas facetas do conservadorismo que utilizam a religião para estabelecer laços simbólicos e emocionais com as pessoas. Esta construção torna praticamente impossível dissociar a moral religiosa, as agendas políticas, as reivindicações sociais e os dilemas pessoais.
A presença de líderes religiosos no espaço público e na política tem uma enorme influência na configuração deste cenário. No Brasil de hoje, as figuras religiosas com maior força política e voz pública são cristãs e ultraconservadoras. Trata-se de um duplo movimento: o político utiliza a religião para se comunicar melhor e ampliar suas bases, enquanto os líderes religiosos, em sua maioria evangélicos, aproveitam o espaço da política institucional para impor a moralidade de seu segmento específico como agenda geral.
Foi somente em 2010 que as pesquisas de opinião e intenção de voto no Brasil começaram a destacar divisões em relação à identidade e pertença religiosa. Antes não era questão de entender o perfil do eleitor, mas naquele ano o debate sobre o aborto explodiu e se tornou a questão central das eleições presidenciais. A partir de então, e só de lá para cá, os institutos de pesquisa de opinião passaram a destacar a religião em suas análises.
Nada disso aconteceu por acaso. Foi o período das reações ao Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), apresentado no segundo governo Lula. Reações que levaram a uma articulação inédita entre católicos e evangélicos no Congresso Nacional em “defesa da família”, com o foco principal no combate à descriminalização do aborto e no reconhecimento dos direitos da população LGBTQIA+. Essas questões passaram a dominar as disputas eleitorais e até hoje não saíram do debate público e da agenda central do ativismo político dos grupos religiosos.
A aliança entre parlamentares ultraconservadores religiosos e não religiosos expandiu-se para outras áreas, como educação e segurança pública, formando uma espécie de nova e mais radicalizada “agenda religioso-conservadora” que se tornaria um pilar do bolsonarismo na política brasileira contemporânea.
O deslocamento, portanto, de parte significativa do eleitorado para a extrema-direita já havia sido observado em eleições anteriores, mas se aprofundou com a eleição de Jair Bolsonaro. Foi o fortalecimento de uma possível “versão brasileira da direita cristã”, fator importante na radicalização política de um dos polos ideológicos, com caráter mais intolerante, excludente e que busca impor sua moral a toda a sociedade.
Assim como nos Estados Unidos, mais do que um problema de polarização, enfrentamos um uso fundamentalista, providencial e perigoso da religião como arma política. E esse uso é feito por uma extrema-direita que se apega à Bíblia, ao ultraconservadorismo e a uma forma específica de cristianismo para demonizar o outro, o diferente.
Mas quais são as nuances do campo religioso cristão no Brasil e o que explica o crescimento da participação política dos evangélicos? Na década de 1990, quando começou o crescimento acelerado da população evangélica no país, o Instituto de Estudos da Religião realizou a pesquisa “Novo Nascimento – Os Evangélicos em Casa, na Igreja e na Política”, uma espécie de “censo” evangélico. O estudo já mostrava que a política estava muito presente nos templos religiosos e que isso marcava uma diferença na vida das pessoas. O aumento das igrejas evangélicas ocorria principalmente nas periferias urbanas e se misturava com a modernização autoritária das décadas de regime militar.
Mas foi depois da Assembleia Constituinte de 1986 que o mundo institucional evangélico começou a se organizar de forma mais explícita e sistemática para eleger os seus representantes. Uma das razões foi a reação ao avanço das agendas progressistas, em chave mais moral, mas foi sobretudo uma resposta a um possível crescimento da influência da Igreja Católica nos rumos do Estado brasileiro e na formulação da nova Constituição de 1988. Isso contribuiu para uma mudança no envolvimento do campo evangélico na política eleitoral e institucional.
Ao mesmo tempo, o campo evangélico já crescia em termos de filiação religiosa na sociedade e buscava um espaço mais legítimo na política, como qualquer outro segmento. Contudo, a questão central que começou a se aguçar a partir de 2010 foi a utilização da fé como ferramenta política para promover agendas específicas, mais corporativistas para determinados grupos, menos universalistas e mais excludentes. Os intermediários da fé começaram a usar a narrativa de que todas as crises que as pessoas enfrentam – econômicas, de insegurança urbana, de falta de perspectiva para o futuro – têm um responsável: a esquerda e os governos progressistas. Esta acusação exerceu importante influência na interpretação política e no voto daqueles que mais frequentam os templos religiosos, especialmente os evangélicos.
Mas é sempre importante observar que os evangélicos não são um bloco homogêneo. Há diversidade e movimentos dentro do próprio campo que reagem a esta lógica. Tampouco significa que o que o líder religioso diz se traduz automaticamente nas ações dos fiéis. As pessoas interpretam a partir de seus desejos, medos e sonhos. Para além das vivências na igreja, as experiências do dia a dia funcionam como referência no seu posicionamento, percepções e definição de voto.
Apesar de todo este cenário de maior radicalização da política baseada no uso da religião pelo campo ultraconservador, é importante não considerar a religião como o único marcador social que constitui a identidade das pessoas.