"A decisão de liberar a licença para a BR-319 não só ignora os impactos ambientais e sociais documentados, mas também utiliza informações falsas para justificar um projeto que é economicamente inviável e ecologicamente desastroso".
O artigo é de Lucas Ferrante, publicado por Cenarium, 09-10-2024.
Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), mestrado e doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), onde, em sua tese, avaliou as mudanças contemporâneas na Amazônia, as dinâmicas epidemiológicas, os impactos sobre os povos indígenas e as mudanças climáticas e seus efeitos sobre a biodiversidade e as populações. É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois maiores periódicos científicos do mundo, Science e Nature. É pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
No dia 7 de outubro de 2024, o desembargador Flávio Jardim, do TRF1, suspendeu a liminar que interrompia a licença prévia para a pavimentação do trecho central da rodovia BR-319, que liga Porto Velho, no arco do desmatamento amazônico, até Manaus. Ele contestou argumentos científicos apresentados em periódicos como The Lancet, Science e Nature, ignorando evidências sobre os riscos associados ao projeto. Por exemplo, um argumento usado por ele foi que a crise de oxigênio em Manaus durante a pandemia de Covid-19 justificaria a necessidade da BR-319 para garantir suprimentos médicos à cidade. No entanto, essa alegação é falsa e também foi utilizada como fake news por lobistas que defendiam a rodovia. Pesquisas mostraram que o uso da BR-319 para transportar oxigênio durante a crise foi uma escolha ineficaz e perigosa, sendo o Rio Madeira uma opção mais rápida e barata. Notavelmente, em 14 de setembro, durante uma reunião online, apresentei esses dados ao desembargador, demonstrando que o argumento em questão era insustentável. Mesmo ciente dessas evidências, o desembargador optou por utilizá-lo no processo.
Estudos científicos destacam que o transporte por via fluvial seria a opção mais viável para Manaus, dado o acesso direto pelo Rio Madeira. O uso da crise de oxigênio como argumento para pressionar pela pavimentação da BR-319 é, portanto, um exemplo claro de desinformação, manipulando uma tragédia para impulsionar projetos com grandes impactos ambientais e sociais. Essa estratégia reflete uma agenda política que sacrifica a saúde pública e os direitos dos povos indígenas em prol de interesses econômicos como demonstrado no periódico científico Journal of Racial and Ethnic Health Disparities, editado pelo renomado grupo Springer Nature.
A conclusão do estudo que publiquei em parceria com o pesquisador e prêmio Nobel Philip Fearnside aponta:
“Concluímos que a crise do oxigênio em Manaus foi usada para promover a reconstrução proposta da Rodovia BR-319, um projeto com tremendas consequências ambientais e humanas que incluem impactos na saúde dos povos indígenas e aumento do risco de novas pandemias. O uso político da crise do oxigênio aumentou as disparidades de saúde pública no estado brasileiro do Amazonas, especialmente ao impactar a saúde dos povos indígenas — o grupo étnico mais vulnerável. A escolha da BR-319 como rota para levar oxigênio a Manaus custou centenas de vidas e agravou as disparidades de saúde na maior cidade da Amazônia. Estava claro na época que a melhor rota para transportar oxigênio e outros suprimentos médicos para Manaus não era a BR-319, mas sim por hidrovia no Rio Madeira. Nossos resultados também indicam que a reconstrução da Rodovia BR-319 aumentaria as disparidades na saúde pública e que apenas o projeto de manutenção da rodovia atual levou a um aumento no número de casos de doenças endêmicas, como a malária. A reconstrução da BR-319 também aumentaria o risco de saltos zoonóticos que poderiam dar origem a novas pandemias. Isso se soma aos muitos impactos que sugerem que as agências ambientais do Brasil seriam bem aconselhadas a interromper o projeto de reconstrução proposto”.
A decisão do desembargador ainda afirma: “Não cabe ao Poder Judiciário, assim, questionar a decisão estatal de decidir pavimentar a BR-319, visto que os riscos de isolamento do Estado, ao menos em momentos de estiagem como o presente, concretos e fundados”. Entretendo, a rodovia não conecta os municípios afetados pela seca, sendo esta também uma informação falsa utilizada para como justificativa da pavimentação, como já abordado aqui na Cenarium.
Além disso, a decisão judicial não levou em consideração o histórico de violações de direitos dos povos indígenas relacionadas ao projeto da BR-319. Desde o início do processo de licenciamento, as consultas obrigatórias segundo a Convenção 169 da OIT não foram realizadas de forma adequada, impactando comunidades que vivem até 150 km de distância da rodovia. A pavimentação da BR-319 ameaça diretamente 63 Terras Indígenas e pode resultar em um aumento drástico no desmatamento e na grilagem de terras, como documentado por um estudo que coordenei e foi publicado na Land Use Policy em 2020. Lideranças indígenas do Povo Mura e Apurinã informam que não foram consultadas ainda e que tal alegação é falsa.
O desembargador também desconsiderou evidências de que a pavimentação da rodovia favorece a migração de grileiros e outros agentes ilegais que promovem o desmatamento e a degradação ambiental. Esse cenário se intensificou nos últimos anos, com uma flexibilização das leis ambientais e incentivos para a expansão agrícola na Amazônia como demonstrado pela Environmental Conservation e Land Use Policy. Essa tendência coloca a região em um caminho perigoso rumo a um ponto de inflexão ecológica, ameaçando a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos, como a regulação climática como apontado pelo periódico científico Die Erde, editado pela renomada Associação Geográfica de Berlim.
Em um trecho de sua decisão, o desembargador também menciona os resultados que apresentei a ele sobre o risco de uma nova pandemia global, durante a reunião ocorrida no dia 14 de setembro.
Foto: Reprodução | Cenarium.
Entretanto, o cenário epidemiológico tratado como hipotético pelo desembargador já é uma realidade, e não um conceito abstrato, como ele sugeriu. Endemias, como a malária, já aumentaram mais de 400% em Manicoré, em decorrência do desmatamento no trecho central da rodovia. Um segundo estudo, publicado por nosso grupo de pesquisa no periódico Regional Environmental Change, apontou a formação de cadeias de produção animal na região que são vetores de saltos zoonóticos, como a criação de porcos e aves em confinamento. Ou seja, o fluxo do agronegócio que avança pela rodovia BR-319, conforme abordado no periódico Nature, fomenta condições propícias para saltos zoonóticos.
Destaca-se ainda que não estamos tratando de um local qualquer no mundo, mas sim do maior reservatório zoonótico do planeta, que está sendo aberto agora, conforme destacado pela Nature e The Lancet, maior periódico científico do mundo e maior periódico médico do mundo respectivamente. Em suma, embora existam evidências robustas publicadas em periódicos científicos, o desembargador parece considerar que sua compreensão do tema supera a dos especialistas, editores e revisores desses periódicos. É importante ressaltar que o risco de surgimento de uma nova pandemia na Amazônia tem sido amplamente reconhecido por diversos grupos de pesquisa, refletindo um consenso científico sobre essa preocupação, como exemplo as publicações lideradas pela Gisele Winck (Fiocruz), em artigo publicado na Science Advances, e Joel Henrique Ellwanger (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), em publicação nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, além de outros. Dessa forma, ele comete o mesmo erro daqueles que desconsideraram o risco de uma segunda onda de Covid-19 em Manaus, considerada hipotética na época, quando alertamos sobre o perigo no periódico Nature Medicine.
Fatores científicos relevantes, como o risco climático, também abordado aqui na Cenarium, foram completamente ignorados, talvez porque os estudos científicos tragam informações robustas demais para serem convenientemente contornadas pela falta de argumentação contrária. Afinal, por que deixar que evidências sólidas atrapalhem uma boa dose de desconhecimento deliberado?
Desta forma, a decisão de liberar a licença para a BR-319 não só ignora os impactos ambientais e sociais documentados, mas também utiliza informações falsas para justificar um projeto que é economicamente inviável e ecologicamente desastroso. A crítica ao parecer do desembargador é respaldada por uma extensa literatura científica que evidencia os riscos associados à pavimentação da rodovia. Além disso, expõe o uso de desinformação para favorecer interesses específicos na região, como o avanço da especulação ilegal de terras e da grilagem, já abordado no periódico científico Nature e Land Use Policy, em detrimento da proteção ambiental e dos direitos dos povos indígenas.