08 Outubro 2024
"A ideia da paróquia como uma prestadora de serviços para aqueles que tem uma condição econômica mais equilibrada é perceptível. Alguns ainda trazem da velha concepção aristocrática de uma Igreja pré-moderna e com as sanhas do catolicismo feudal o seu modo de relacionar-se com a instituição. A conversão pastoral querida pela V Conferência de Aparecida e desejada pelo Papa Francisco na Alegria do Evangelho ainda espera isso das nossas comunidades", escreve Matias Soares, padre, pároco de Santo Afonso M. de Ligório, Natal, Rio Grande do Norte.
A Igreja, especialmente com o magistério do Papa Francisco, tem insistido na necessidade de uma ‘conversão missionária’ das nossas estruturas (cf. EG, cap. I). Isso tem gerado tensões nos esquemas eclesiásticos, desde o Vaticano até as pequenas comunidades da catolicidade. Assim como no pós-Concílio Vaticano II, o efeito que temos é complexo; mas profundamente necessário. Uma Igreja que petrificou seus corações e mentes em vista duma tradição que não é receptiva às novidades dos sinais dos tempos, não está abrindo as suas portas para os impulsos do Espírito. A experiência pastoral, acompanhada de discernimento, vai abrindo os nossos olhos para este fato. Quando contemplamos a realidade, vemos que o ‘clericalismo’ não é um problema só da cabeça do Clero. Existe um que está na mentalidade dos fiéis leigos, que querem viver ainda atrelados a uma prática sem conversão ao Evangelho e com uma eclesiologia exclusivista.
O Vaticano II tentou solucionar esse dilema, trazendo para a vida da Igreja uma postura pastoral na qual o ponto de partida para o dinamismo eclesial fosse a categoria Povo (cf. LG, cap. II). Todos pertencemos à Igreja a partir do nosso batismo. Francisco tem assumido essa concepção com fundamentos filosóficos e teológicos bem estruturados, principalmente com as construções epistemológicas da América Latina (cf. J. Carlos Scanonne. “Teologia do Povo”; J. Comblin. “O Povo de Deus”). O substantivo tem uma orientação teológica que deve ser considerada com profundidade e sem preconceitos ideológicos. A perspectiva nos orienta a pensarmos o dado da subjetividade e os seus delineamentos na cultura. Em Francisco há sinais da antropologia de Romano Guardini (1885-1968). A pessoa é o lugar a partir do qual os elementos sociais são pensados. Nestes são inclusos a própria religiosidade popular e, por isso, nesta linha de reflexão, temos que situar a própria ação pastoral da Igreja na América Latina.
Historicamente, a eclesiologia católica latino-americana tem os fortes traços da forma como os nossos antepassados foram evangelizados. A centralidade dos sacramentos como meio imediato de confirmação da catolicidade, quando a presença dos ministros ordenados era direta e das devoções aos santos como garantia da vida eclesial, sem a presença mais da Igreja institucional. Os sinais positivos e negativos são perceptíveis até hoje. Na qualidade do processo de fortalecimento das convicções evangélicas faz-se notória a sua defasagem. Na quantificação dos milhões de católicos ainda podemos perceber uma maioridade numérica; contudo, há um decrescimento contínuo em nossa realidade apontado pelas pesquisas. Mesmo com sinais de presença nos centros, são as periferias das grandes cidades as mais sitiadas por agrupamentos religiosos de várias matizes. O apelo aos impulsos das sensibilidades hipermodernas está posto e ganhando cada vez mais espaços, inclusive na política e demais ambientes da sociedade civil organizada. O que antes era fator de unidade social, nos nossos tempos tem sido canal de divisões e polarizações. A pastoral da Igreja católica entrou nessa roda e, por isso, podemos dizer que é uma construção que também está em crise: dificuldade na metodologia, nos objetos e nas relações da pastoral de conjunto.
O nosso desafio, enquanto Igreja, é sempre o de encontrar um justo meio para pensarmos e aplicarmos a nossa ação pastoral. A V Conferência de Aparecida já nos ofereceu uma proposta. Todavia, ainda não a recepcionamos plenamente. O desenvolvimento teórico e aplicado do sentido do discipulado e da missão, como paradigmas e programas da ação evangelizadora, ainda está a desejar, tem que encontrar o seu lugar de existência, mesmo em meio aos desafios que são inerentes ao processo de proposta e implantação dos valores do Reino de Deus. Na Alegria do Evangelho, o Pontífice direciona a perspectiva missionária à catolicidade também como via de transformação de todas as forças vivas das comunidades. Por causa dos esquemas históricos, que mesmo sendo necessários, em determinados contextos, ainda condicionam a relutância em aceitar e aplicar os princípios da dimensão missionária, as resistências são patentes e freiam as necessárias mudanças ao aprimoramento das metodologias e estilos. Isso tem gerado uma ‘tensão pastoral’ em muitas comunidades. Na Arquidiocese de Natal não é diferente. ‘Ver para julgar e agir’, a partir dos ensinamentos evangélicos, é o método tomado da ‘ação católica’ que ainda tem a sua importância, mesmo que apareça no magisterial mais recente com outras expressões. Essa bússola precisa ser seguida para que façamos as grandes reformas desejadas pelo Papa Francisco à Igreja na sua universalidade e complexidade.
A presença presbiteral na área totalmente urbana da nossa Igreja Particular vem levando-me a enriquecer mais as percepções e reflexões sobre os desafios e as potencialidades da pastoral da cidade grande, especialmente na zona sul de Natal. Dois fenômenos são reconhecidos de imediato nessas paróquias: 1) – A prestação de serviços sacramentais; 2) – Os serviços como ECC e SEGUE-ME, que há décadas arregimentaram gerações, a começar pelos idos dos anos setenta até hoje, e a intensificação da relação com a Igreja de todos que por estes meios foram alcançados. Sem dúvida, quantos casais e jovens, graças a Deus, não encontraram nestes serviços-escolas uma porta de entrada para a vida eclesial? As experiências vividas nestas ações são intensas e belíssimas. Depois destas, muitas estão a surgir e serem implementadas tendo em vista o acolhimento e a preparação das demais faixas etárias para o ‘encantamento’ cristão e a presença na vida da Igreja. Falar destes serviços é falar de festa, alegria, organização, espiritualidade e rosto de uma Igreja que é mãe e mestra. Todavia, o que não pode ser esquecido é que todos estes acontecimentos, sendo Encontro com Jesus Cristo, devem nos levar ao discipulado e à missão. O apostolado e a prática pastorais são os resultados credíveis de que o que é vivido naquele final de semana permanece para a vida familiar e eclesial dos participantes. Essas propostas precisam estar bem atentas aos fenômenos sociais pós-modernos, que exigem de cada membro da Igreja a conversão das mentalidades e atos eivados de prudência, sem a perda da ousadia evangélica.
O pensamento é pessoal. O intento é promover discussão pastoral, iluminados pela sabedoria do evangelho e pelos ensinamentos eclesiais. O juízo não é de valor moral. Sem dúvida, muitas pastorais hodiernas que fazem acontecer o cotidiano da evangelização em nossas paragens são filhas deste jeito de ser Igreja nas nossas conjunturas locais. Mesmo firmando o reconhecimento e o agradecimento pela beleza destas ações para o dinamismo das nossas paróquias, no decorrer destas décadas fomos assumindo a postura de deixar que as mesmas tomassem o espaço e o tempo da pastoral enquanto atitude permanente, ordenada e metodológica do agir da Igreja. Pela nossa carência metodológica, estes serviços foram ganhando motivações que, mesmo legitimas, não atingem o objetivo de uma prática pastoral que fortaleça o comprometimento da maioria das pessoas com a identidade da Igreja, como aquela que é sacramento universal de salvação e que existe para evangelizar. A forma emotiva, mesmo que com parâmetros bem definidos, que não são transportados à metodologia pastoral, tem dificultado esse engajamento da maioria das pessoas que fazem os encontros, mas não permanecem na caminhada eclesial com afinco e de modo continuado. Sem culpabilizar ninguém, não existem também estruturas pastorais que acolham e acompanhem os que fazem os encontros. Tudo isso tem que ser repensado e amadurecido. O rosto das paróquias da nossa zona sul tem muito dessas características e sinais inquietantes. A ideia da paróquia como uma prestadora de serviços para aqueles que tem uma condição econômica mais equilibrada é perceptível. Alguns ainda trazem da velha concepção aristocrática de uma Igreja pré-moderna e com as sanhas do catolicismo feudal o seu modo de relacionar-se com a instituição. A conversão pastoral querida pela V Conferência de Aparecida e desejada pelo Papa Francisco na Alegria do Evangelho ainda espera isso das nossas comunidades.
Nessa trajetória há um agravante: alguns ministros ordenados alimentaram essa construção mental. A ideia da sacramentalização, sem a preocupação mais profunda com o anúncio e a denúncia das situações incoerentes com a Verdade do evangelho, nem sempre foi considerada com critérios condizentes com a dimensão profética e mística das virtudes teologais. Uma evangelização envernizada é uma idiossincrasia dessas posturas. A preocupação numérica com batizados, casamentos e missas particulares, até hoje, tem sido a marca registrada de algumas atitudes sacerdotais. O interessante é que não há tanta atenção ao sacramento da penitência e, quando o realizam, é comunitariamente. Tudo isso alimentou gerações de católicos sem uma consciência eclesial bem formada. A procura pela Igreja é esporádica e coisificada. A apreensão dos desafios postos pela secularização, sem dúvida, é levada em conta. Todavia, a continuidade deste processo que está sendo assumida por alguns dos ‘novos ministros ordenados’ é preocupante. A quantificação e a busca pela presença na vida das pessoas, com preocupações que não sejam prioritariamente evangélicas e eclesiais, tendem a perpetuar um catolicismo liquido e de indiferença ao que é proposto pela chamada à conversão e à fé na Boa Notícia (cf. Mc 1,15). Essa sensibilidade não ser renegada e tratada como se nada estivesse acontecendo. Uma olhada profunda e ordinária tem que ser feita. Novas práticas, inclusive na distribuição dos novos ministros pelas cidades do interior e periferias das cidades, devem ser implementadas. Essa desconstrução burguesa é um desafio eclesial a ser enfrentado. É só mais uma das tantas urgências verdadeiramente eclesiais a serem reformuladas.
Tudo isso pode trazer a tensão pastoral. O que é vivido pelo Papa Francisco passa por aí. Essa tentativa de desqualificar e sabotar as mudanças eclesiais necessárias à ‘saída missionária’ de todos, que estão na Igreja e contemplando as situações no e do mundo, é um sinal de que as acomodações para alguns é mais importante do que o bem para toda a Igreja. A fidelidade à catolicidade cobra de quem tem responsabilidades pastorais essa tomada de atitude. Ela é doutrinal, mas também é existencial. O coração – mãe – e a mente – mestra – da Igreja devem voltar-se para todos. Essa insistência do Pontífice não deveria incomodar a quem tem um espírito autenticamente eclesial. A Igreja de Natal tem carência dessa ‘tensão pastoral’. Uma proposta missionária, que veja todas as pessoas e as pessoas todas, como nos é ensinado pela antropologia cristã (cf. Paulo VI, Populorum Progressio, números 6 e 15), é um ponto de partida que, para ser assumido, exige oração e aprofundamentos sinodais. Deste modo, afirmo que essa meditação está em continuidade com o que tenho apresentado sobre o significado do nosso Sínodo arquidiocesano e a construção de um plano pastoral que tenha a ‘missionariedade’ como linha transversal ao processo de revigoramento da nossa ação pastoral, enquanto Igreja Particular de Natal. Assim o seja!
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A tensão pastoral e a Igreja de Natal. Artigo de Matias Soares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU