05 Outubro 2024
"Procedendo da comunhão trinitária, a missão diz respeito a “todos”. Não exclui ninguém. É o que afirma o papa Francisco em sua mensagem para o Dia Mundial das Missões deste ano: A missão para todos requer o empenho de todos. Por isso é necessário continuar o caminho rumo a uma Igreja, toda ela, sinodal-missionária ao serviço do Evangelho'", escreve Moisés Nonato Quintela Ponte, padre jesuíta, professor e pesquisador no Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.
No mês de outubro, a Igreja do Brasil celebra o mês das missões. Uma iniciativa surgida em 1972. Um ano após a dedicação de outro mês, o de setembro, à animação bíblica das comunidades eclesiais. É costume se afirmar que a escolha de outubro como mês missionário está associada à comemoração de Santa Terezinha do Menino de Jesus no dia 1º de outubro, assim como a decisão de se celebrar o mês da Bíblia, em setembro, está ligada à festividade de São Jerônimo, patrono dos biblistas, comemorado no dia 30 de setembro.
Na verdade, a celebração deste mês se encontra antes ligada à decisão do Papa Pio XI, em 14 de abril de 1926, de promover no penúltimo domingo de outubro “‘uma jornada de orações e de propaganda pelas Missões’, a ser celebrada no mesmo dia em todas as dioceses, paróquias e Institutos do mundo católico” (Acta Apostolicae Sedis [AAS], 19, 1927, p. 23).
Com a criação do “dia das missões”, visava-se “despertar o zelo do clero e do povo; constituir uma ocasião favorável para dar a conhecer melhor a Obra da Propagação da Fé; promover subscrições e solicitar donativos para as Missões; mas sobretudo, com doce violência, ao modo de uma santa cruzada, apressar o reconhecimento universal da divina realeza do Sacratíssimo Coração de Jesus” (AAS, ibidem).
Não precisa muito esforço para situar essa iniciativa de acordo com as coordenadas do paradigma de missão da época, refletidas no próprio lema escolhido pelo cardeal Achille Ratti ao subir ao trono de Pedro com o nome de Pio XI: pax Christi in regno Christi, isto é, paz de Cristo no reino de Cristo. Após a grande Guerra, numa época de crescente descristianização das sociedades ocidentais e de conflitos com a Igreja (somente em 1929 se encerrarão a “guerra cristera” mexicana e o litígio do Vaticano com o Estado italiano), o papa Pio XI estava convicto da necessidade de uma viva atuação católica (em 1929, Pio XI fundará a Ação Católica) em vista do resgate do Reino de Cristo (deve-se também a Pio XI a criação da solenidade de Cristo Rei, em 1925).
A urgência da missão era sinônimo de reconquista dos espaços perdidos após o fim da cristandade, para se restabelecer o reinado de Cristo. A ideia de missão estava vinculada a uma concepção da soberania da Igreja sobre outros poderes que remonta a Gregório VII e Inocêncio III. Em virtude da autoridade e direitos de Deus sobre toda autoridade e direitos dos povos, à Igreja é reconhecida “a dignidade e o posto no qual foi colocada por seu Fundador, como sociedade perfeita, mestra e guia das demais sociedades” (Encíclica Ubi arcano Dei consilio, Pio XI, 23 de dezembro de 1922).
Serão necessárias décadas para que a Igreja, com o nascimento do movimento missionário, despertasse para a ideia de que sua missão “não era a de impedir que este mundo passe, mas de santificar um mundo que passa” (Cardeal Suhard, Mensagem de Páscoa à Igreja de Paris, 1947). Não se tratava mais de fazer missões, mas de colocar a Igreja em estado de missão.
Essa nova consciência da missão transparece nitidamente no discurso de abertura do Vaticano II, proferido pelo Papa João XXIII no dia 11 de outubro de 1962. Sem a pretensão de condenar erros nem de empreender uma nova cruzada espiritual, João XXIII prefere antes “o remédio da misericórdia ao da severidade” (Gaudet Mater Ecclesia). A missão da Igreja já não é a de empreender, como dona da verdade, nova cruzada espiritual contra os erros de um mundo marcado pelo pecado: “Ao gênero humano, oprimido por tantas dificuldades, ela diz, como outrora Pedro ao pobre que lhe pedia esmola: ‘Eu não tenho nem ouro nem prata, mas dou-te aquilo que tenho: em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda’ (At 3,6)” (Idem).
Emerge, assim, no último Concílio, uma nova mentalidade: a de que a missão não está a serviço da Igreja nem de sua expansão. Enquanto “sacramento universal da salvação” (Lumen gentium, 48), a Igreja se redescobre inserida no “desígnio de Deus Pai, na ‘missão’ do Filho e do Espírito Santo” (Ad gentes, 2), recobrando, assim, sua própria natureza: a de peregrina e missionária. A missão, como traduziram os bispos latino-americanos na Conferência de Medellín, já não mais consistia em “uma pastoral de conservação (...) fruto de uma evangelização do tempo da Conquista” (Medellín, 6). Passava-se, assim, a uma conversão “pastoral de tipo missionário, que não se limitava a aperfeiçoar ou a conservar intactas posições adquiridas” (Papa Paulo VI, Discorso nel X anniversario del CELAM, em 23 de novembro de 1965).
Dez anos após a abertura do Vaticano II, e quatro anos após a Conferência de Medellín, o ano de 1972 não apenas testemunhou o nascimento do mês missionário, mas igualmente uma série de iniciativas que marcavam definitivamente uma mudança de paradigma em torno à missão na Igreja do Brasil. Elenquemos algumas.
Preocupada com as condições socioeconômicas e com a escassez do clero nas regiões Norte e Nordeste, a CNBB inicia o programa Igrejas-Irmãs. Um projeto missionário de duas vias, marcado por aquela nova consciência da missão, traduzida no Vaticano II pela ideia de corresponsabilidade (Decreto Ad gentes 35); ou de sinodalidade, como diríamos hoje com o papa Francisco. Parafraseando Paulo Freire, consolidava-se a consciência de que “nenhuma igreja evangeliza uma outra, e nenhuma igreja se evangeliza a si mesma, mas todas se evangelizam entre si”.
Neste mesmo ano, em 23 de abril de 1972, era criado o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), um marco para a transição de um paradigma missionário assinalado pela ideia de “civilização” ou de assimilação dos povos originários a outro de descoberta de Cristo nas culturas indígenas; de promoção de suas culturas, ao contrário de (sub)missão colonizadora.
O ano de 1972 viu também nascer quatro revistas missionárias no Brasil: Sem Fronteiras, dos missionários combonianos; Kosmos, dos xaverianos; Missões, dos padres e irmãos da Consolata; Mundo e Missão, dos missionários do Pontifício Instituto das Missões Exteriores (PIME).
No âmbito da teologia, a Revista Eclesiástica Brasileira (REB) publicava o dossiê (n. 128) Qual o Sentido da Missão Hoje?. Entre as contribuições, a reflexão instigante de José Comblin no artigo A Atualidade da Teologia da Missão, publicado em três partes, em números sucessivos da REB: “alguns leitores poderão (...) manifestar preocupações a respeito das instituições eclesiásticas de sempre. Como salvá-las? (...) o problema teológico não tem por objeto salvar as coisas de sempre (...). O problema é antes: como redescobrir alguma coisa da loucura de Jesus Cristo (...) que impede que o cristianismo se torne tão sábio, tão bem integrado...”.
Nesse contexto de grande efervescência missionária foi realizado, entre os dias 26 a 28 de setembro de 1972, o primeiro encontro de animação missionária, no qual se constituiu o Conselho Missionário Nacional (COMINA). Vinculado à CNBB, o Conselho visava articular os vários organismos e instituições missionárias do país, tendo como primeira e imediata tarefa – iniciada naquele mesmo ano de 1972 – a organização de um novo programa de celebração do Dia Mundial das Missões que abrangesse todo o mês de outubro. Com o mês missionário, visava-se promover uma maior animação e consciência missionária de todas as comunidades eclesiais do Brasil.
Desde então, a cada ano, a Igreja do Brasil segue a celebrar o Dia Mundial das Missões em conjunto com a celebração do mês missionário, cujo tema em 2024, “Com a força do Espírito, testemunhas de Cristo”, evoca a preparação do 6º Congresso Missionário Americano, o CAM 6, a ser realizado em Porto Rico, em novembro deste ano. Já o lema “Ide, convidai a todos para o banquete” (cf. Mt 22,9) foi escolhido pelo Papa Francisco, em sintonia com a segunda e última sessão da assembleia do Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade.
Procedendo da comunhão trinitária, a missão diz respeito a “todos”. Não exclui ninguém. É o que afirma o Papa Francisco em sua mensagem para o Dia Mundial das Missões deste ano: “A missão para todos requer o empenho de todos. Por isso é necessário continuar o caminho rumo a uma Igreja, toda ela, sinodal-missionária ao serviço do Evangelho”.
O anúncio e promoção da Boa Nova de Jesus Cristo – “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10) – encontra-se definitivamente no coração do novo paradigma da missão que emergiu em nossas Igrejas no processo de recepção do último Concílio. Um paradigma que o pontificado de Francisco traduz agora em termos de sinodalidade: apelo de todos para o bem de todos. Em um dinamismo sinodal que é por força missionário, bem como em uma missão que é por natureza sinodal, pois traz em sua própria essência a alteridade que visa guardar, promover e conviver. Não há mais espaços para conquistas nem assimilação do outro. Tudo está interligado (Laudato si’), “ninguém se salva sozinho” (Fratelli tutti, n. 32). Uma só é a nossa condição, uma só é a nossa casa, um só é o nosso chamado e missão: o de caminhamos juntos, enquanto Igreja ou humanidade, nas veredas que conduzem àquela promessa de vida e bênção (Dt 30,15) que ainda hoje alimenta nossos sonhos mais ancestrais e nos põe em marcha.
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Outubro, mês das missões: uma história de conversão missionária. Artigo de Moisés Nonato Quintela Ponte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU