20 Agosto 2024
"No que diz respeito ao ponto de partida da teologia Aquino Junior adverte que essa discussão não é uma questão banal nem meramente especulativa. O que está em jogo é o estatuto teórico da teologia: tanto no que diz respeito ao seu assunto (de que trata) quanto no que diz respeito o seu caráter intelectivo (como trata). Para o autor as discussões acerca do estatuto teórico da teologia da libertação, provocadas por Clodovis Boff em 2007, são uma amostra disso", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em resenha do livro Teologia em debate: sobre o estatuto epistemológico da teologia, 17-08-2024.
Os debates epistemológicos adquiriram uma importância enorme na teologia contemporânea. Isso explica a multiplicidade de estudo e publicações de cunho epistemológico na teologia, sobretudo a partir da segunda metade do século XX. E, por mais que se insista no primado da vivência da fé (práxis) sobre a reflexão teológica (teoria), bem como no primado da produção teológica (fazer teológico) sobre os debates epistemológicos (método teológico), não se pode esquecer que a fé tem uma dimensão intelectual fundamental (teoria como momento da práxis) e que toda teologia traz implícito um método teológico que, em algum momento, precisa ser problematizado e explicitado (forma de pensar e desenvolver um pensamento). Em boa medida, a credibilidade de uma teologia no mundo moderno passa por sua capacidade de reflexão e justificação críticas.
Neste sentido, o livro Teologia em debate: sobre o estatuto epistemológico da teologia (Paulus, 2024, 184 páginas), magistralmente escrita pelo doutor em Teologia Francisco de Aquino Júnior trata de questões referentes ao estatuto epistemológico da teologia. Os textos que compõem este livro retomam e discutem algumas compreensões da teologia e do fazer teológico (Concílio Vaticano II, teologia política, teologia hermenêutica, teologia da libertação, papa Francisco) e algumas questões teológicas fundamentais (ponto de partida, poder de libertação, evangelização, identidade católica).
Teologia em debate: sobre o estatuto epistemológico da teologia, livro de Francisco de Aquino Júnior (Foto: Divulgação)
A propósito do método teológico do Concílio Vaticano II (p. 17-30) o autor esclarece que não é tarefa de um concílio desenvolver, formular ou propor um método teológico completo com seus elementos constitutivos, com seus passos ou momentos e com seus pressupostos epistemológicos. Sequer pode-se exigir e esperar de um concílio o uso sistemático e consequente de um método teológico concreto. No entanto, diz o autor que em todo caso, ao fazer teologia, faz sempre de uma maneira ou de outra, com um método ou outro. E, não raras vezes, chega a explicitar e indicar alguns traços e/ou elementos fundamentais do método teológico. A partir dessa teologia concreta e de suas explicitações e indicações metodológicas, que, em boa medida, expressam seu modo de fazer teologia, é possível falar de um “método teológico conciliar” e esboçar sua orientação, seus traços e elementos fundamentais. Diante disso, Aquino Junior apresenta os textos relativos ao método teológico (p. 17-23); propondo, a partir desses textos, um esboço sistemático do método teológico (p. 23-25) e indica o que se pode considerar novidade (p. 25-27), e, limites fundamentais desse método teológico (p. 27-29).
Observando que a expressão “teologia política” (p. 31-48) não surgiu em ambiente cristão e, na verdade, só na metade do séc. XX foi assumida e desenvolvida em sentido estritamente teológico-cristão: o desenvolvimento estritamente teológico de uma teologia política, na segunda metade do séc. XX, está ligado a nomes como Jürgen Moltmann, Dorothee e, sobretudo, Johann Baptist Metz. É com eles que a expressão teologia política adquire estatuto teológico e marca uma nova etapa na teologia europeia, caracterizada pela passagem de uma perspectiva de cunho transcendental-personalista-existencial para uma perspectiva marcadamente social e política.
Para uma melhor compreensão desse movimento teológico que teve uma importância muito grande no processo de renovação da teologia europeia em diálogo com o mundo moderno, bem como no desenvolvimento da teologia da libertação latino-americana que começava a despontar o autor traz algumas considerações em relação a esta expressão, pois ela não surgiu nem foi utilizada sempre em contexto teológico-cristão e, seu desenvolvimento propriamente teológico nem sempre foi expresso nestes termos. Daí, segundo o autor se torna importante indicar sua origem (p. 31-34) e as perspectivas em que foi desenvolvida (p. 34-44) e delimitarmos o enfoque de sua abordagem (p. 44-47).
Na sequência, Aquino Júnior destaca que, sobretudo a partir da segunda metade do séc. XX, tornou-se comum falar em teologia como hermenêutica (p. 49-75). Uma das referências mais importantes e fundamentais na compreensão da teologia como hermenêutica é certamente o teólogo dominicano Claude Geffré. Além de assumir essa compreensão da teologia, dedica-se por longos anos à sua formulação e justificação teórica. A seu nome está vinculada a tese da “virada hermenêutica da teologia”, expressão que aparece inclusive como subtítulo de uma das suas obras dedicadas à compreensão da teologia como hermenêutica. Diante disso, o autor, não oferece neste capítulo um estudo amplo e profundo de sua vasta obra, nem no que se refere aos diversos temas abordados, nem sequer no que diz respeito à problemática da teologia como hermenêutica, mas, esboçar e problematizar a compreensão de teologia de Claude Geffré. Para isso, apresenta sua tese da “virada hermenêutica da teologia” (p. 50-54), indica os pressupostos teóricos (p. 54-61) e as implicações teológicas dessa tese (p. 61-68) discutindo alguns pontos que parecem problemáticos ou não suficientemente elaborados (p. 68-74).
As discussões em torno da teologia da libertação tanto no que diz respeito a seu estatuto teórico quanto no que diz respeito à sua densidade teológico-pastoral e sua relevância histórico-social (p. 77-110), são consideradas pelo autor. Salientando que o debate acerca do método ou de algumas questões epistemológicas da teologia da libertação, desencadeado pelas críticas de Clodovis Boff em 2007, apesar do tom polemicista um tanto reducionista e apelativo, explicitou um conflito teórico silencioso entre os teólogos da libertação que perpassa a história desse movimento teológico, deu-lhe nova visibilidade, despertou novo interesse por ela e impôs a necessidade e a urgência de retomada e reelaboração de suas bases teórico-teológicas. Neste sentido, Aquino Júnior trabalha algumas questões fundamentais da teologia da libertação que dizem respeito a seus fundamentos epistemológicos: espiritualidade e eclesialidade, assunto, interesse e orientação práxicos e lugar social. O autor traz alguns esclarecimentos prévios sobre a abordagem feita (p. 79-97) para em seguida indicar alguns desafios próprios do momento que estamos vivendo – tais desafios dizem respeito a seu estatuto teórico-teológico – indicados e minimamente formulados como tarefa a ser desenvolvida no contexto atual de retomada e reelaboração da teologia da libertação e de seus pressupostos epistemológicos: a tradição de Jesus de Nazaré, a complexidade do horizonte e dos processos de libertação, caráter teologal dos processos de libertação, a complexidade do processo de intelecção, a tendência ao docetismo, erudicionismo e academicismo (p. 97-104).
Aquino Júnior ressalta que por mais irredutível que seja enquanto atividade intelectual, o poder de libertação da teologia é inseparável do poder de libertação da fé, da qual constitui uma dimensão: sua dimensão intelectual. Daí o vínculo indissolúvel: Deus libertador – fé libertadora – teologia libertadora. Isso porque segundo o autor na medida em que a fé diz respeito à entrega confiante a Deus e ao fazer a vida de acordo com o dinamismo de Deus e seu desígnio para a humanidade, e na medida em que esse dinamismo e desígnio de Deus se mostra na história de Israel e na vida de Jesus Cristo como dinamismo-desígnio-salvífico-libertador, a fé tem uma caráter-dinamismo essencialmente salvífico-libertador (p. 111-124). E é esse caráter-dinamismo salvífico-libertador da fé que confere à teologia enquanto intellectus fidei, um caráter-dinamismo salvífico-libertador no duplo sentido de inteligência de uma fé libertadora e do serviço a uma fé libertadora. Por essa razão, antes de falar do sentido e do poder de libertação da teologia, Aquino Junior explicita o poder de libertação da fé (p. 112-117), da qual a teologia constitui a dimensão intelectual. Dessa forma, a teologia nem perde sua especificidade intelectual nem compromete seu caráter de momento da fé (p. 117-122).
No que diz respeito ao ponto de partida da teologia Aquino Junior adverte que essa discussão não é uma questão banal nem meramente especulativa. O que está em jogo é o estatuto teórico da teologia: tanto no que diz respeito ao seu assunto (de que trata) quanto no que diz respeito o seu caráter intelectivo (como trata). Para o autor as discussões acerca do estatuto teórico da teologia da libertação, provocadas por Clodovis Boff em 2007, são uma amostra disso. Frente a isso Aquino Júnior retoma uma problemática fundamental desse debate apresentando e confrontando duas perspectivas e abordagens acerca do ponto de partida da teologia: fé positiva ou dogmática e ato de fé ou vida de fé. Dessa forma, ao mesmo tempo em que aborda uma questão fundamental e decisiva do fazer teológico (ponto de partida), explicita um conflito latente no referido debate sobre a teologia da libertação (pressupostos teóricos). Em boa medida, esse texto Teologia como “intellectus fidei” sobre o ponto de partida da teologia (p. 125-144), mostra como as tensões e os conflitos teológicos têm a ver com a problemática do ponto de partida da teologia.
Por sua vez, o documento Teologia hoje: perspectivas, princípios e critérios da Comissão Teológica Internacional, publicado em 2012, trata da identidade católica da teologia e do fazer teológico enquanto tal. No entanto este escrito não recebeu a devida atenção por parte dos teólogos. O autor entende que por mais que haja questões de urgência na teologia, é necessário voltar-se com certa frequência sobre o fazer teológico, inclusive em vista da qualidade do tratamento teológico dessas questões mais urgentes e, por isso, busca contextualizar, indicar e problematizar as preocupações e orientações teórico-teológicas deste documento, oferecendo para isso uma visão de conjunto do documento: contexto (p. 146-149), motivações, estrutura (p. 149-151) e, em seguida, provoca a discussão do texto a partir de seu objetivo e de algumas de suas características fundamentais (p. 151-155), bem como uma apreciação global deste documento (p. 155-158).
Por fim, Aquino Júnior destaca qual é a contribuição do papa Francisco para o que fazer teológico (p. 161-182). Observando que o pontífice não formula nem propõe um método teológico, mas, além de ter um estilo e um modo próprios de fazer teologia, em várias ocasiões, sobretudo em encontro com teólogos/as ou ao falar da importância da teologia e dos teólogos/as, tem problematizado o fazer teológico, destacando as exigências fundamentais para uma teologia que tome a sério seu lugar e sua função na missão evangelizadora da Igreja no mundo atual. Ao fazer isso, ressalta Aquino Júnior Francisco acaba indicando um caminho/método para fazer teologia ou, em todo caso, alguns passos/procedimentos que conferem ao fazer teológico e às elaborações teológicas determinadas características e perspectivas. Nesta perspectiva as páginas deste capítulo retomam e sistematizam algumas de suas orientações que não deixam de ser características fundamentais de seu modo de fazer teologia – uma teologia feita no sulco traçado pelo Concílio Vaticano II (p. 163-167), como parte da missão salvífica da Igreja (p. 167-171), em fidelidade criativa à Tradição (p. 171-175) nas fronteiras e periferias do mundo (p. 175-178).
A teologia em que habitamos... No Prefácio (p. 5-12), o teólogo Luiz Carlos Susin ressalta que cada modo de fazer teologia tem limites e só se alarga e supera seus limites no diálogo e, portanto, na aceitação de outro modo de falar de Deus e fazer teologia, e por assim ser, neste livro, Francisco de Aquino Júnior nos toma pela mão para indicar-nos os diversos caminhos da teologia, e quais são os caminhos melhores deixando claro que nos sucessos e nas deficiências de cada modo de fazer teologia, que há algo decisivo para a consistência da linguagem teológica: o contexto desde onde fala, o locus theologicus, a casa ou a paisagem que ela habita.
Neste escrito Francisco de Aquino Júnior ajudará o leitor a compreender que qualquer teologia usa uma pluralidade enorme de métodos parciais ou instrumentais no estudo da Escritura, da teologia, do magistério, da história da Igreja, da realidade etc. São métodos mais ou menos objetivos úteis para o conhecimento de determinados textos ou realidades. Nenhuma teologia inventa os métodos concretos que utiliza em sua investigação. O que é próprio ou específico de uma teologia não são os métodos concretos ou particulares que utiliza, mas sua concepção ou perspectiva global da teologia e do fazer teológico.
Certamente a publicação desta obra contribuirá com a reflexão teológica no Brasil, alimentando e enriquecendo os debates acerca do estatuto teórico da teologia entendendo antes de tudo que a teologia é serva na casa em que ela habita, serva de uma metafísica que sustente uma dimensão ética e mística ao infinito, mas começando por ser serva da misericórdia e da libertação, ao se debruçar e pensar as feridas deste mundo de carne e de fome. Ela é como a taça humilde cuja dignidade está no líquido precioso que ela serve.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Teologia em debate: sobre o estatuto epistemológico da teologia. Artigo de Eliseu Wisniewski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU