20 Março 2021
"O projeto teológico de Dorothee é, como se dizia, bem mais complexo: a centralidade da pessoa humana a conduzia à dimensão social e política da salvação e, nessa trajetória, ela se orientou para a teologia feminista, entendida não apenas como a inclusão da mulher na elaboração teológica e na responsabilidade eclesial, mas também como reinterpretação sistemática do Cristianismo", escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 07-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Figuras femininas na Bíblia. Das reflexões de teólogos, como Dorothee Sölle, às palavras do Papa Francisco, para quem esta presença "é realmente imprescindível".
Seu pai, o prof. H.C. Nipperdey era um conhecido jurista de Colônia, presidente do Tribunal Federal do Trabalho da Alemanha. Em 1929 nasceu a sua filha Dorothee, que cedo revelou uma inteligência superior (aliada também a certo fascínio estético), destinada a manifestar-se na paixão pelos estudos: com um ecletismo criativo, conseguiu passar da literatura clássica à germânica, da filosofia à sociologia e, sobretudo, à teologia, tendo acesso às mais prestigiosas universidades, de Colônia a Göttingen e Friburgo. Aos 25 anos ela se casou com Dietrich Sölle, cujo sobrenome manteve mesmo após o divórcio em 1969 e o novo casamento com um ex-monge beneditino, enquanto sua carreira acadêmica acumulava contínuos sucessos na Alemanha até lhe possibilitar assumir o cargo de professora também em Nova York.
Queríamos recordar esta teóloga, Dorothee Sölle, falecida em 2003, porque faz cinquenta anos desde a publicação de sua obra mais famosa, aquela Teologia política que ousou desafiar um dos monstros sagrados do firmamento teológico do século XX, Rudolf Bultmann.
Simplificando, poderíamos dizer que a visão do professor de Marburg centrava-se na existência autêntica e na fé do indivíduo segundo a mais clássica concepção protestante, a de Dorothee estava, ao contrário, aberta sobre a vida e a religião da comunidade, ao longo de caminhos de liberdade e libertação. Seu empenho era fazer florescer a mensagem social e "política" do cristianismo, nos passos de dois outros teólogos importantes, o protestante Jürgen Moltmann e o católico Johann Baptist Metz. É significativo notar que em 1971 surgiu a Teologia da Libertação do peruano Gustavo Gutiérrez, que se tornaria o manifesto ideal da teologia latino-americana de mesmo nome.
Com base no pensamento da Escola de Frankfurt, em particular de seu sucessor Jürgen Habermas, a teóloga de Colônia já havia elaborado uma definição mais completa de seu sistema teológico com sua obra principal com o título um tanto enigmático, Stellvertretung (1965), traduzido como Representação. Colocava-se no mesmo horizonte, mas por outro ângulo, o da "morte de Deus", vivida na moderna sociedade pós-teísta e pós-metafísica. Sempre simplificando, poderíamos dizer que para Sölle a identidade pessoal autenticamente crente só se realiza no encontro com Cristo que é "aquele que representa" o Deus ausente. É, portanto, uma "representação" que "apresenta" Deus, não o "substituindo" e deixando no centro a natureza humana à qual também pertence Cristo, homem e "presença" de Deus.
O projeto teológico de Dorothee é, como se dizia, bem mais complexo: a centralidade da pessoa humana a conduzia à dimensão social e política da salvação e, nessa trajetória, ela se orientou para a teologia feminista, entendida não apenas como a inclusão da mulher na elaboração teológica e na responsabilidade eclesial, mas também como reinterpretação sistemática do Cristianismo. De uma religião "patriarcal" e "autoritária" devia transformar-se numa fé fecunda e geradora, capaz de fazer experimentar a proximidade amorosa e "materna" de Deus, fonte de liberdade e de libertação (neste âmbito, se destacará a reflexão das colegas e compatriotas Elisabeth Moltmann-Wendel e Elisabeth Schüssler Fiorenza). Nessa linha podemos permitir-nos uma digressão, no limiar da tradicional data "feminina" de 8 de março.
Não se trata de revisar ou indicar, mas apenas de apontar - especialmente para aqueles que estão convencidos de que a teologia seja matéria de estudo exclusivo de sacerdotes, diáconos e agentes pastorais - que não só nas aulas acadêmicas, mas também no palco bibliográfico é incessante a presença de teólogas. Não faz muito tempo, sugerimos aos nossos leitores um comentário sobre o epistolário paulino completo elaborado por exegetas (Le Lettere di Paolo tradotte e commentate da tre bibliste, ed. Ancora), operação já realizada em 2015 sobre os Evangelhos. Vinte teólogas estrangeiras, apresentadas pela pastora da Igreja Valdense Letizia Tomassone, recentemente se comprometeram a abordar as passagens mais polêmicas, desconcertantes ou espinhosas da Bíblia a respeito da questão feminina. Claro, às vezes - e isso é verdade para não poucos textos de mulheres teólogas - a reivindicação e a indignação podem turvar um pouco a visão e frisar uma crítica mais radical, mas há, sem dúvida, a necessidade de um olhar novo e diferente sobre aquelas páginas sagradas que respiram não só a atmosfera de transcendência, mas também o ar mais estagnado da humanidade histórica. E isso vale não só para os versos paulinos sobre as mulheres silenciadas e veladas nas assembleias litúrgicas, mas também para as “Martas sobrecarregadas e as Marias silenciosas”, sem esquecer que existem muitas páginas bíblicas repletas de mulheres protagonistas e corajosas. Mas é um homem, um professor de economia política, Luigino Bruni, que coloca em cena as "mulheres escondidas" da Bíblia que, na realidade, são tudo menos figuras secundárias.
Pensamos em Hagar, escrava de Abraão, mas também mãe de Ismael, progenitora dos árabes; no terrível relato do estupro de Diná ou Tamar, uma advertência veemente inclusive para os nossos dias; na anônima parteira egípcia que salva o recém-nascido Moisés abandonou nas águas do Nilo; na irmã deste último, Miriam; na amada esposa do profeta Ezequiel, "deleite de seus olhos"; na rainha estrangeira de Sabá, na profetisa Hulda (em hebraico "doninha"), na comovente compaixão materna de Rispa e assim por diante. Sem ignorar figuras problemáticas como Atália, autora de um golpe de estado, ou a encantadora Bate-Seba ou a sanguinária Jezabel...
A última década assistiu, além disso, a uma disseminação para novos horizontes da teologia feminista encarnada por Dorothee Sölle e as outras mencionadas acima. Uma pastora batista, Elizabeth E. Green, que exerce seu ministério na Sardenha, tenta fazer um balanço desses percursos inéditos. Em seu ensaio identifica-se a abordagem feminina, por exemplo, também sobre a homossexualidade e sobre o queer, sobre a corporeidade, sobre a violência de gênero e a não violência, sobre a maternidade, sobre a criação de uma linguagem inclusiva e sobre a presença na Igreja. A leitura é agradável, sem contrapontos críticos em alguns casos necessários; no entanto o balanço é interessante pelo seu olhar panorâmico, colocado sob a insígnia de um movimento em "espiral" que lembra a continuidade, mas também a evolução não homogênea e linear.
O fato é, porém, que a relação das mulheres com a Igreja é "complicada", como afirma Ilaria Beretta, que é a porta-voz "do que as mulheres não dizem à Igreja", resignando-se a ser muitas vezes apenas "carregadoras de água": 80% dos catequistas italianos são compostos, efetivamente, por "catequistas" jovens, mães e religiosas. Há, portanto, muito a fazer para dar seguimento ao desejo do Papa Francisco: “A Igreja não pode ser ela mesma sem as mulheres e seu papel. A mulher para a Igreja é realmente imprescindível”. Para concluir, levando em consideração também o simbolismo bíblico feminino aplicado a Deus e a antiga representação da divina matriz feminina em tantas culturas, poderíamos substituir livremente ao estereótipo atribuído às mulheres de serem "a outra metade do céu" aquele que Ginevra Bompiani - embora prosseguindo por outros percursos, aliás de forma fascinante - impôs ao seu já conhecido ensaio: L’altra metà di Dio (A outra metade de Deus).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A Igreja fundada sobre a outra metade de Deus. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU