Emergência climática e o novo normal: o grito da Mãe Terra ecoa do Sul. Artigo de Gabriel Vilardi

Enchentes no RS | Foto: Ricardo Stuckert PR

04 Julho 2024

Sem ignorar que não há mudanças fáceis à vista e para além de qualquer visão utilitarista que queira transferir uma responsabilidade que não é deles, os povos originários muito podem contribuir nessa ruptura, na medida em que partilhem seus conhecimentos ancestrais do Bem Viver. Também chamado de “teko porã” para os Povos Guarani, esse princípio explicita que a relação com a Mãe Terra pressupõe a harmonia e está fundada em bases espirituais e existenciais, jamais econômicas e financeiras. De outro modo, o planeta não está à disposição da humanidade para ser consumido como um “recurso natural” a ser transformado em mercadoria. 

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Artigo publicado no subsídio Lendo e Refletindo do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida - Olma, 02-07-2024.

Eis o artigo.

“Se os poderosos não pararem com essa agressividade contra a natureza, muita gente vai morrer”[1], alerta André Benites, do Tekoa Ka Aguy Porã Mata Sagrada, em Maquiné, no Rio Grande do Sul. Recentemente, o estado foi assolado pela força das águas que até agora já deixou 180 mortos, 32 pessoas desaparecidas e outras 806 feridas. Isso compreende 21,5% dos gaúchos afetados, em 95% dos municípios sul-riograndenses. Ainda assim, o cacique do Povo Guarani Mbya teme que tenha sido insuficiente, porque “se os grandes não perceberem, nós vamos sofrer”.

Os desalojados passaram de 580.000, ao passo que os desabrigados chegaram a quase 80 mil pessoas. Os números impressionantes – e terríveis – mudam a todo momento e não conseguem traduzir a dura realidade que enfrenta a região. Nas primeiras semanas, os esforços todos estavam concentrados para salvar vidas. Famílias inteiras ilhadas, animais exaustos nos telhados, equipes de resgates incansáveis... A sucessão de imagens era chocante, o cenário desolador. E, mesmo assim, as cruéis fake news e a desinformação manipuladora não pouparam um povo completamente fragilizado.

Os impactos do novo regime climático

Vários representantes da extrema-direita foram rápidos em afirmar que o acontecido no sul do país não tinha ligação alguma com as mudanças climáticas. O negacionismo científico resiste com uma insistência temerosa. Contudo, em uma perspectiva estão certos. Não se deve usar mais meias palavras e falar em “mudanças climáticas”, como um futuro que ameaçadoramente há de vir. Como defendeu o filósofo Bruno Latour, o mundo já vive um Novo Regime Climático e as repostas dadas até o presente pela política, economia e a própria ciência são inapropriadas.

Depois de anos de indecisões e total falta de consensos multilaterais mínimos sobre a proteção do meio ambiente, precisou vir um líder do Sul global para falar com autoridade. Após a impactante encíclica Laudato Si' (2015) e o conceito de ecologia integral, o Papa Francisco dirigiu-se a todas as pessoas de boa vontade, com a exortação apostólica Laudate Deum, em que falou com clareza sobre a gravidade da crise climática:

“Por muito que se tente negá-los, escondê-los, dissimulá-los ou relativizá-los, os sinais da mudança climática impõem-se-nos de forma cada vez mais evidente. Ninguém pode ignorar que, nos últimos anos, temos assistido a fenómenos extremos, a períodos frequentes de calor anormal, seca e outros gemidos da terra que são apenas algumas expressões palpáveis duma doença silenciosa que nos afeta a todos. É verdade que nem todas as catástrofes se podem atribuir à alteração climática global. Mas é possível verificar que certas mudanças climáticas, induzidas pelo homem, aumentam significativamente a probabilidade de fenómenos extremos mais frequentes e mais intensos. Pois, sempre que a temperatura global aumenta 0,5 grau centígrado, sabe-se que aumentam também a intensidade e a frequência de fortes chuvaradas e inundações nalgumas áreas, graves secas noutras, de calor extremo nalgumas regiões e fortes nevadas ainda noutras”.[2]

No noticiário econômico os especialistas se revezam para apresentar gráficos e tabelas com os dados sobre a perda do PIB e o custo da tragédia ambiental. Se por um lado o neurótico mercado se preocupa com o aumento do gasto público e a infração ao arcabouço fiscal, por outro já estima as oportunidades de negócios e a privatização da longa e lucrativa reconstrução.

Mesmo com uma ampla mobilização nacional e até internacional, com forte solidariedade e doações de múltiplas origens, diante de um evento climático extremo como este, é do Estado que se espera políticas públicas assertivas, desde o salvamento das pessoas em perigo até o planejamento da retomada socioeconômica das localidades atingidas. O tão propalado “Estado Mínimo”, que enfraquece os órgãos públicos e tolhe a força estatal de resposta, mostra a sua absurda irracionalidade em situações-limite como essa.

Em tempos em que a sanha privatista avança sobre empresas de saneamento e fornecedoras de energia elétrica, o campo de reação do Estado se fragiliza. Apenas a título de exemplo, quem trouxe toneladas de doações de todo o Brasil até os desabrigados não foram as transportadoras privadas, mas a empresa estatal federal Correios, com o apoio não de empresas de segurança particular, mas das Forças Armadas e outros órgãos do poder público.

Irresponsabilidade político-ecológico-climática

Muito se tem dito de que não se deve procurar culpados nessa situação, que o mais importante é a união dos vários entes políticos para dar respostas às inundações no Rio Grande do Sul. Se é verdade que os interesses partidários não podem se sobrepor aos deveres dos governantes em trabalhar em prol do bem comum, isso não implica na desresponsabilização de suas condutas na administração pública. Isso de que todos possuem a mesma responsabilidade é uma falácia perigosa. Afinal, se os políticos e os partidos são todos iguais o que resta como saída? Para as falsas soluções do fascismo e do autoritarismo, a distância é mínima.

Por mais que se esteja em face de uma situação extrema e complexa, existiam ações que deveriam ter sido tomada pelos municípios e pelo governo do estado para diminuir a probabilidade do caos que se vive. Dizer que tudo foi imprevisível e não havia nada a ser feito, com o passar dos dias se torna cada vez mais insustentável. Faz décadas que os cientistas vêm incansavelmente avisando. Os estudos existem aos milhares, o consenso da comunidade de pesquisadores há muito alerta com eloquência.

Diante da emergência climática é inaceitável que os governantes repitam o velho padrão de sempre que consiste em se eximir das responsabilidades e fazer promessas vazias que, tão logo dão por superada a crise, são esquecidas. Ainda que as responsabilidades não possam ser exclusivamente imputadas aos atuais governantes, em razão de anos de administrações falhas, cada um possui sua maior ou menor parcela de culpa. E por ela deve responder perante a sociedade.

O próprio governador admitiu que foi avisado dos riscos e da necessidade de agir, mas que “tinha ouras agendas”. Já o prefeito de Porto Alegre cometeu uma série de erros ao não investir em prevenção ou na manutenção do sistema de contenção das águas do rio Guaíba. E assim sucessivamente cada administração municipal deve ser escrutinada pelo atento cidadão, porque como mais do que ficou evidente, as decisões políticas custam vidas.

Por isso, revela-se imprescindível que se atribuam as responsabilidades e se politize a emergência climática, no sentido de traze-la para o centro das discussões políticas. Só assim o debate das rupturas inadiáveis poderá avançar. Caso contrário, as mesmas e destrutivas respostas continuarão a ser dadas, sem se assumir novos princípios e paradigmas fundamentais para a construção de um novo sistema que não seja antropocêntrico.

Os povos do Bem Viver e os Direitos da Natureza

Se “mesmo os poderosos fechados em condomínio também foram atingidos pela força das águas”, como reconhece o cacique André Guarani Mbya, os afetados não estão no mesmo barco. A situação de vulnerabilidade varia conforme a classe social das vítimas. Ainda que pessoas ricas tenham perdido seus bens, recomeçarão a partir de bases bem distintas daquelas dos moradores empobrecidos das periferias. Nesse sentido já reconhecia o Papa Francisco, “a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis do planeta” (LS, nº 48).

Como bem assinala o pontífice, com sua visão sistêmica, no nº 49 da Laudato Si', “hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”. Logo, é preciso ouvir as comunidades indígenas e as populações tradicionais, que muito têm a contribuir nesse processo de cuidado com a Casa Comum.

Ao falar sobre o legado de seu pai Chico Mendes, a ativista ambiental Ângela Mendes, pontua a marginalização das vozes dos povos das florestas e das águas, que há muito vem alertando sobre a destruição ambiental:

“Mas existe uma sabedoria que é a sabedoria da convivência, o conhecimento de quem está ali no território, de quem está nos lugares que são estratégicos. A gente está falando, por exemplo, de quem está na floresta, da sabedoria ancestral dos povos indígenas, da sabedoria da vivência, de quem teve que chegar nesse lugar, se adaptar da forma mais dolorosa possível, que foram os seringueiros, e todas as sabedorias que envolvem essas populações, que historicamente têm essa relação. A gente está falando também da sabedoria dos quilombolas, dos ribeirinhos que vivem essa rotina diária com os elementos da natureza e conseguem enxergar, nessa rotina, todo o mínimo detalhe, toda minúcia, de comportamento”.[3]

Infelizmente, toda essa sabedoria ancestral é desprezada por governos, empresários e parte da sociedade civil que permanecem com uma visão deturpada e preconceituosa sobre os Povos do Bem Viver. Nesse sentido, Jason W. Moore diz que se está na era do Capitaloceno, em que o modo de desenvolvimento econômico coloca o lucro acima dos demais fatores, inclusive do equilíbrio natural. Trata-se de uma economia que mata e que precisa, pois, ser “realmada”, como pede o Papa Francisco, quando convocou os jovens para pensarem uma Economia de Francisco e Clara.

Para tanto existem alguns perigos que devem ser evitados. Entre eles o capitalismo verde está longe de ser o caminho, como alguns entusiastas insistem. Deve-se rechaçar aqui qualquer tentativa de captura da preocupação por um meio ambiente ecologicamente equilibrado pelas artimanhas falsas e ilusórias do deus-mercado, que busca a perpetuação desse sistema de exploração econômica a qualquer custo. Outra faceta desse mesmo sistema tem defendido que as tecnologias serão a solução para se adaptar ao novo regime climático e a revolução tecnológica bastará, com uma visão no mínimo ingênua.

Apostar nas tecnologias, mas manter o modelo predatório extrativista, consiste em continuar a destruição da Casa Comum, ainda mais considerando que muitas dessas jazidas se encontram em territórios indígenas ou pertencentes às populações tradicionais. Essa é a crítica apresentada pela Laudate Deum:

“Os recursos naturais necessários para a tecnologia, como o lítio, o silício e tantos outros não são certamente ilimitados, mas o problema maior é a ideologia que está na base duma obsessão: aumentar para além de toda a imaginação o poder do homem, para o qual a realidade não humana é um mero recurso ao seu serviço. Tudo o que existe deixa de ser uma dádiva que se deve apreciar, valorizar e cuidar, para se tornar um escravo, uma vítima de todo e qualquer capricho da mente humana e das suas capacidades”[4].

Nesse caminho de ruptura com o paradigma capitalocêntrico, os Povos Indígenas e as populações tradicionais, como os ribeirinhos e os quilombolas, podem ajudar a compreender que “somos Natureza”, como expõe a jurista Vanessa Hasson de Oliveira. E como “seres interdependentes na Natureza” é preciso “realizar um giro tão radical que a própria estrutura do Direito, por sua própria natureza antropocêntrica, se rompa, admitindo-se ritos próprios do ‘direito comunitário ancestral’”[5]. Persistir nesse caminho tecnocrático significa ser surdo ao grito cada vez mais estridente da Pachamama, como reforça o papa latino-americano:

“Contrariamente a este paradigma tecnocrático, afirmamos que o mundo que nos rodeia não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites. Nem sequer podemos considerar a natureza como uma mera «moldura» onde desenvolvemos a nossa vida e os nossos projetos, porque «estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos», de tal modo que se contempla «o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro»”. [6]

Sem ignorar que não há mudanças fáceis à vista e para além de qualquer visão utilitarista que queira transferir uma responsabilidade que não é deles, os povos originários muito podem contribuir nessa ruptura, na medida em que partilhem seus conhecimentos ancestrais do Bem Viver. Também chamado de “teko porã” para os Povos Guarani, esse princípio explicita que a relação com a Mãe Terra pressupõe a harmonia e está fundada em bases espirituais e existenciais, jamais econômicas e financeiras. De outro modo, o planeta não está à disposição da humanidade para ser consumido como um “recurso natural” a ser transformado em mercadoria.

Nesse caminho de aliança e humilde aprendizado, o Brasil não indígena, após as intensas inundações no sul e secas no norte, tem a oportunidade de aproximar-se do Brasil indígena. Para descobrir os meios para lidar com o novo regime climático, como um novo normal, é preciso aceitar que a Terra não pertence à humanidade, mas é puro dom. Do contrário, o cacique Guarani Mbya terá profetizado: “quando tudo acabar, os ricos vão perceber que não se come dinheiro”. Que o som dos maracás possa despertar a tempo o Brasil deitado eternamente em berço esplêndido!

Notas 

[1] Enchentes: Como se a gente não existisse. Podcast Natureza em foco. Edição de Heverton Lacerda. 22 de maio 20204. Disponível aqui. Acesso em: 24 maio 2024.

[2] PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Laudate Deum. nº 5. Disponível aqui. Acesso em: 25 maio 2024.

[3] BRASIL DE FATO. Brasil ignorou aviso de crise climática porque Chico Mendes não era engravatado e da academia, diz filha do seringueiro. Brasil de Fato. Entrevista com Angela Mendes. 22 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em: 25 maio 2024.

[4] PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Laudate Deum. nº 22. Disponível aqui. Acesso em: 25 maio 2024.

[5] OLIVEIRA, Vanessa Hasson de. Direitos da Natureza. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 183/184.

[6] PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Laudate Deum. nº 25.

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