29 Abril 2024
Rudá Ricci comenta o artigo 'Cabelos brancas' de Frei Betto.
O artigo é publicado no Portal das Cebs, 27-04-2024.
Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara. É autor de Terra de ninguém (Unicamp, 1999), Dicionário da gestão democrática (Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010) e coautor de A participação em São Paulo (Unesp, 2004), entre outros.
Há poucos dias, Frei Betto escreveu um artigo intitulado “Cabelos brancos” em que citava, quase em tom de alerta, um encontro nacional de Fé e Política realizado em BH em que apenas 30% tinham cabelos escuros. O restante, perto das faixas de idade dele (perto dos 80 anos) e da minha (acima de 60).
O artigo assume a função de para-raio e sintetiza o que tantos engajados de minha geração vêm se queixando: envelhecemos, o que parece normal, mas, conosco, envelheceu o engajamento pela mudança social, pela justiça social, pela ousadia política, pela solidariedade. Viceja pela sociedade o hiperindividualismo, a projeção do sucesso individual e certo desencanto com a aventura humana.
Resolvi comentar o artigo não para fazer coro ao seu conceito, mas para problematizá-lo.
O primeiro obstáculo que gostaria de saltar é sobre as novas gerações. Vou destacar dois aspectos, dentre tantos. Não se trata de juventude, mas de juventudes, no plural. São tribos, coletivos e comunidades virtuais que professam de tudo, até mesmo os hikikomoris japoneses que não saem de seu quarto e se fecham em grutas urbanas. Temos os identitários que, não sabem, mas professam individualismos e conservadorismos porque, a despeito da agressividade na defesa de seu direito de fala e existência, não se projetam em discursos solidários, não falam sobre o mundo, sobre política econômica, sobre muitos outros assuntos que não sejam de seu interesse grupal exclusivo.
Podemos pinçar, dentre tantas juventudes, a Geração Z, tão comentada atualmente. Ela pode ser a lâmina a ser examinada no nosso microscópio. Esta geração nasceu a partir de 1995 e se forjou a partir das redes sociais e múltiplos aplicativos, de maneira que possuem uma vida dupla, entre o mundo concreto, offline, e o mundo virtual, online. Alguns autores sugerem que não possuem uma visão sequencial do tempo, mas tempos sobrepostos. São pragmáticos e práticos, tolerantes em relação às diferentes formas de viver e se apresentar, ativistas de coletivos e causas gerais, avessos a rótulos, adeptos da acessibilidade e simplicidade. O estranho para minha geração é que esta fica alheia ao ambiente e às relações interpessoais de primeira hora, se fechando no teclado do celular por horas. Aqui aparece uma dissonância cognitiva, entre o que pensa e projeto e o que realmente faz. Projeta um mundo melhor e participação em pautas de lutas por direitos – incluindo os dos animais -, mas vive fechado no mundo das comunidades virtuais. Uma maneira de socialização profundamente distinta das de Frei Betto e da minha.
Há, ainda, a derivação desta geração para a altamente sexualizada, como a dos funkeiros: coloridos, exuberantes, agressivas e quase debochadas, que operam nas redes sociais e se expressam pela música, sensualizando e se apresentando por inteiro, nas confusões e insuficiências. Esta é a geração de Anitta, uma das personalidades mais ousadas e inventivas desta subcultura juvenil.
Em meio a esta explosão de juventudes peculiares, emerge a dos jovens conservadores e reacionários. Não tão conservadores, mas que são vistos pela minha geração como tal. Comecemos pelos jovens aparentemente conservadores. A revista evangélica americana Relevant divulgou uma reportagem apontando que muitos evangélicos solteiros mantêm relações sexuais antes do casamento com a mesma frequência que os jovens não-cristãos: 80% dos solteiros evangélicos entre 18 e 29 anos afirmaram que já tiveram relações sexuais, quase o mesmo percentual que os 88% de solteiros adultos não evangélicos. Há igrejas e vertentes evangélicas que envolvem jovens com comportamentos e vestimentas pouco conservadoras.
No caso dos jovens reacionários, o cenário é ainda mais dissonante. Não apresentam, evidentemente, semblantes pacatos e recatados. Gritam, estrebucham, e agridem beirando o sadismo, como fazem os jovens do MBL. Mas, há casos ainda mais instigantes, como os de Carluxo e Nikolas Ferreira. Sabemos de suas aventuras sexuais até mesmo retratados em fotos. O olhar dos dois tem algo provocador e sexualizado. Parecem professar o não binário, tons não muito definidos de sua vida íntima, algo de misterioso e histriônico. Se falam algo que tateie o ideário conservador, seu semblante e sua história apontam para outra direção. Carluxo, nas redes sociais, estimulava o mistério. No primeiro Carnaval brasileiro sob o domínio do governo Jair Bolsonaro, ocorreu a postagem nas redes sociais, atribuída à Carluxo, de um vídeo exibindo um Golden Shower. Adota uma postura “g0y”, homens que não se identificam com a homossexualidade e a bissexualidade, mas que também não se identificam com a heterossexualidade.
Este lusco-fusco e alta pluralidade de ideários e comportamentos jovens confundem as gerações mais velhas e não se alinham com padrões pré-estabelecidos.
Aliás, o que dizer dos mais velhos? Novamente, o plural para nos descrever. Se temos idosos progressistas, subproduto da revolução sexual e cubana, temos os idosos destroçados pelo tédio, pregados em seus porta-comprimidos ou à espera de alguma aventura tresloucada como a de 8 de janeiro.
Mas, para não fazer novo périplo à pluralidade de uma geração, vou destacar a dos progressistas. E, aqui, destaco um ícone quando jovem: Zé Dirceu. Zé foi um líder dos estudantes universitários. Até hoje, desperta suspiros de mulheres que vivenciaram aqueles dias de passeatas e palavras de ordem em praças públicas e avenidas. Cabelos compridos, alto, discursos explosivos e seguros, transpirava um “sex appeal” que causava invejas e ressentimentos.
Pois bem, nos últimos meses, Zé Dirceu assumiu o papel de cavaleiro do anti-clímax. Repreendeu publicamente o diretório nacional de seu partido e Gleisi Hoffman por terem criticado a política econômica do governo federal. Exigiu que se alinhassem ao governo e apoiassem o ministro Haddad sob pena de .... não ficou muito claro o que a rebeldia petista poderia provocar de estrago. Ora, esta fala de Zé Dirceu é exatamente o inverso do que o PT propunha quando foi criado. A palavra central do petismo era autonomia. Autonomia dos movimentos sociais frente aos comandos políticos centrais, autonomia dos filiados frente às deliberações dos parlamentares do próprio partido, autonomia para viver. Autonomia é palavra central do método Paulo Freire que sugere que temos que assumir nossos atos com consciência. No caso, a consciência é uma leitura de nossa função e papel num coletivo ou num projeto. Não é liberdade individual absoluta, mas minha visão do que devo ser no todo, sem me subordinar. Foram tantos petistas que trataram disso nas origens do PT, de Eder Sader à Marilena Chauí.
A fala de Zé Dirceu se choca e demole este ideário libertário do petismo original.
Numa fala subsequente, disse que a conjuntura atual impõe um governo lulista de centro-direita. Pouco importa se tentou corrigir o que disse. O fato é que sua fala é coerente com sua fase anti-clímax, mais próximo do chá de camomila que de ingredientes excitantes. Se o PT, quando criado, seguisse este ideário radical do pragmatismo, não teria futuro. O petismo empurrou a correlação de forças durante duas décadas. Ousou ousar e a destilar autonomias. E venceu.
Zé Dirceu retoma as teses do Partidão das décadas de 1950 e 1960, do etapismo e alianças preferenciais com a burguesia. Houve resistências de lideranças regionais e da base comunista que organizaram greves e estruturas descentralizadas. Mas o enfrentamento com as direções centrais foi constante.
Enfim, o que sugiro é que Zé Dirceu está sendo um nítido representante das cabeças brancas citadas no artigo de Frei Betto: recuadas, castradoras, envelhecidas, com lampejos da energia e frescor de tempos atrás, mas que sugerem a passividade e o conformismo.
É fato que, como há juventudes, há idosos distintos e é justamente essa pluralidade que faz o mundo girar. Nem sempre conseguem se expressar e convencer rapidamente. Mas, estão lá. A vida está na ousadia, não no conformismo. O artigo de Frei Betto, afinal, propõe a vida.
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O artigo de Frei Betto e as gerações com sinais trocados. Artigo de Rudá Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU